Tartaruga do Jurássico português evoca criaturas aquáticas de lendas japonesas

O que é que o fóssil português com 145 milhões de anos tem que ver com figuras mitológicas japonesas? A equipa de paleontólogos portugueses e espanhóis que apresenta este fóssil único conta como se lembrou dessa ligação, que remete para a chegada dos portugueses ao Japão no século XVI.

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Vivia num ambiente fluvial, numa zona salpicada de canais serpenteando a paisagem. Não muito longe dos domínios por onde andava, dividindo-se ora pelos braços do rio ora pela terra, o Atlântico Norte começava a formar-se e ia separando a Europa da América do Norte. Ia assim nascendo entre a Europa e a América do Norte o Atlântico Norte, que naqueles tempos do Jurássico Superior não era a vastidão azul que agora temos.

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Vivia num ambiente fluvial, numa zona salpicada de canais serpenteando a paisagem. Não muito longe dos domínios por onde andava, dividindo-se ora pelos braços do rio ora pela terra, o Atlântico Norte começava a formar-se e ia separando a Europa da América do Norte. Ia assim nascendo entre a Europa e a América do Norte o Atlântico Norte, que naqueles tempos do Jurássico Superior não era a vastidão azul que agora temos.

Acontece que com o início da abertura do Atlântico Norte formou-se na faixa oeste da Península Ibérica, em águas pouco profundas, a bacia Lusitânica. E era aí, na maior das bacias interiores daquela altura em território actualmente português, uma faixa compreendida entre o Norte de Aveiro e a península de Setúbal, que se aventurava a tartaruga desta história puramente científica.

Tal como outros fósseis encontrados nos sedimentos da bacia Lusitânica, a nova tartaruga, cujo fóssil está na Sociedade de História Natural de Torres Vedras (nas suas colecções há lá outra de igual importância), vem enriquecer o conhecimento sobre os animais que povoavam a Europa na altura da sua separação da América do Norte. Neste caso, permite conhecer melhor como eram os ecossistemas no Jurássico Superior – e não só, como se verá adiante.

Apresentemo-la, antes de mais. Chama-se, cientificamente falando, Hylaeochelys kappa. Media cerca de meio metro de comprimento e a sua carapaça arredondada muito baixa permite dizer que era um animal capaz de nadar. “Tinha hábitos mistos: nadava e andava em terra, como os cágados. Mas não estava adaptada a nadar como as tartarugas marinhas actuais”, explica o paleontólogo Bruno Camilo Silva, director do Laboratório de Paleontologia e Paleoecologia da Sociedade de História Natural (SHN) de Torres Vedras.

Através dos seus restos, dois paleontólogos espanhóis, Adán Pérez García e Francisco Ortega, também da SHN, puderam concluir que a nova tartaruga de água doce pertence a um género (o Hylaeochelys) que até agora era conhecido apenas na Grã-Bretanha. Já quanto à espécie, os paleontólogos, que descrevem a tartaruga portuguesa num artigo a publicar na revista Comptes Rendus Palevol, da Academia de Ciências francesa, consideram que é nova para a ciência. Como mandam as regras, puderam baptizar a espécie. Escolheram chamar-lhe kappa.

Agora vem uma parte menos científica, onde realidade e ficção se cruzam, misturando o nome da espécie da tartaruga com figuras mitológicas japonesas e monges portugueses do século XVI no Japão. Na cultura popular japonesa, os kappa são seres que vivem em rios e lagos, geralmente maléficos, atacando pessoas e animais, e de aspecto humanóide e atartarugado. Têm uma cavidade no centro da cabeça, rodeada de pêlo, escamas no corpo e carapaças nas costas.

Ainda que se pense que a sua origem seja mais antiga, tornaram-se populares no século XVII (ainda hoje se encontram estátutuas deles em vários locais do Japão e livros e filmes), e considera-se que o seu nome moderno está relacionado com a chegada dos monges portugueses do século XVI àquele país. Os kappa terão ido buscar o nome às vestimentas (capas) usadas pelos monges, fazendo lembrar as carapaças das criaturas atartarugadas. Além disso, os monges rapavam a cabeça no centro, o que se assemelhava à cavidade representada na cabeça dos kappa. “Combinando criaturas mitológicas ou do passado, tartarugas e portugueses, achamos que o termo ‘kappa’ poderia ser uma boa referência para a nova tartaruga”, conta Francisco Ortega, também da Universidade Nacional de Educação à Distância, em Madrid.


Porquê sempre em Torres Vedras?
Voltando à realidade mais científica, com os seus 145 milhões de anos, a tartaruga portuguesa é mais antiga, em cerca de cinco milhões de anos, do que a britânica, que já é do período geológico seguinte ao Jurássico Superior, o Cretácico Inferior. É daqui que resulta grande parte da importância deste achado.

O início da abertura do Atlântico Norte começou a surgir, no Jurássico Superior, uma barreira cada vez maior entre a Europa e a América do Norte, que passaram assim a ter uma fauna diferente. Nessa altura, na Europa, alguns grupos de tartarugas exclusivamente europeias desapareceram. E durante o Cretácico ocorreu uma transformação profunda das faunas de vertebrados, com a substituição da maior parte dos grupos antigos e o aparecimento de linhagens novas.

“Esta tartaruga amplia a distribuição geográfica e temporal do grupo [o género Hylaeochelys], o que nos permite voltar a analisar a sua história evolutiva e obter algumas conclusões gerais sobre de onde vieram, como viviam, quando e como – e às vezes porquê – alguns organismos desapareceram”, explica Francisco Ortega.

“Um dos nossos objectivos ao analisar as faunas do Jurássico Superior português é entender como a abertura do Atlântico Norte ocorre e como é a relação de organismos continentais dentro do território europeu”, refere o paleontólogo espanhol, a quem cabe a coordenação científica da SHN. “Temos visto que alguns grupos de dinossauros, por exemplo os carnívoros, eram muito semelhantes em ambos os lados do Atlântico durante o Jurássico Superior. Outros tipos de organismos, entre os quais as tartarugas, mostram uma maior regionalização. De alguma forma, as tartarugas estão a dizer-nos que o contacto das faunas através do Atlântico não era tão simples como mostra o estudo de alguns dinossauros e que a biogeografia da região é um problema complexo e terá, provavelmente, a sua solução na análise combinada de muitos grupos de organismos”, refere ainda Francisco Ortega.

Protegida na bacia Lusitânica, a história que a nova tartaruga conta é esta: “As tartarugas cretácicas europeias não apresentavam até agora parentes directos no Jurássico e, portanto, não se conhecia nenhum género de tartarugas europeias que atravessasse esta fronteira temporal. À luz deste achado, sabemos agora que pelo menos o Hylaeochelys já existia no Jurássico”, sublinha um comunicado da SHN.

“Tudo parece indicar que alguns géneros de répteis jurássicos europeus de água doce, como o Hylaeochelys (mas também crocodilos), conseguiram sobreviver, alcançando o Cretácico com menos dificuldade que os seus parentes marinhos. Alguns ecossistemas continentais terão tido mais estabilidade do que os ambientes costeiros, que se viram submetidos a importantes câmbios no nível do mar no final do Jurássico, afectando drasticamente as suas populações de répteis”, acrescenta o comunicado.

Há ainda a sublinhar que a Hylaeochelys kappa é um membro primitivo do grupo a que pertence a maior parte das tartarugas actuais (as criptodiras), que engloba quase todas as tartarugas de água doce, as terrestres e as marinhas.

O fóssil vem juntar-se ao de uma outra tartaruga, igualmente com cerca de 145 milhões de anos, descoberto junto à foz do rio Alcabrichel, perto de Torres Vedras. Também era de água doce. Também vivia nos cursos de água sinuosos da bacia Lusitânica. Também tem o seu fóssil nas colecções da SHN de Torres Vedras e serviu, tal como o desta agora, de referência à descrição de um ser vivo até aí desconhecido dos cientistas. A diferença é que esta outra tartaruga, a Selenemys lusitanica, é não só de uma espécie nova mas ainda de um género novo. As duas são as tartarugas de água doce mais antigas da Europa.

“E por que é que é sempre em Torres Vedras?”, pergunta, retoricamente, Francisco Ortega. “São as desgraças da ciência. Provavelmente, porque somos os únicos a estudar tartarugas no registo [fóssil] português e porque começámos pelas colecções de Torres Vedras”, diz o paleontólogo, que co-orientou a tese de doutoramento de Adán Pérez (também da Universidade Complutense de Madrid) sobre as tartarugas mesozóicas (era compreendida entre os 251 milhões de anos e os 65 milhões) da Península Ibérica.

Há muito para estudar pelos sete paleontólogos actualmente envolvidos no Laboratório de Paleontologia e Paleoecologia da SHN. Entre tartarugas, crocodilos, dinossauros, peixes ou plantas, a SHN tem uma colecção de importância ibérica, com cerca de 12 mil exemplares, ainda em fase de inventariação. A juntar aos dois mil exemplares recolhidos em trabalhos de campo nos 15 anos de vida da SHN, a Câmara Municipal de Torres Vedras adquiriu, em 2008, a colecção de cerca de dez mil espécimes de fósseis da orla costeira da região oeste, reunidos ao longo de mais de duas décadas, por José Joaquim dos Santos (que se tornou funcionário da SHN).

“É uma das colecções mais interessantes de vertebrados do Mesozóico da Península Ibérica neste momento”, frisa Francisco Ortega. A Selenemys lusitanica e, agora, a Hylaeochelys kappa são duas das suas estrelas.