Tunísia: a revolução que ainda pode correr bem

O caminho ainda se vai fazer de obstáculos, uns óbvios, outros imprevisíveis, mas o período de transição pós-Ben Ali está a acabar e os tunisinos têm razões para acreditar na estabilidade e na democracia.

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Manifestação de tunisinos em Julho de 20013 contra o governo islamista Anis Mili/Reuters

Foi em Tunes que os ventos de mudança de 2011 primeiro se fizeram sentir. A imolação pelo fogo do vendedor ambulante Mohamed Bouazizi provocou uma vaga de protestos imparável e quando a avenida Habib Bourguiba da capital se encheu de gente que não arredava dali tudo começou a mudar para nunca mais ser igual. E é assim, mesmo que muitos tunisinos estejam desiludidos com a sua revolução, mesmo que muitos jovens progressistas desconfiem dos políticos que governaram a Tunísia desde 2011 e não consigam acreditar que é possível a um islamista ser moderado.

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Foi em Tunes que os ventos de mudança de 2011 primeiro se fizeram sentir. A imolação pelo fogo do vendedor ambulante Mohamed Bouazizi provocou uma vaga de protestos imparável e quando a avenida Habib Bourguiba da capital se encheu de gente que não arredava dali tudo começou a mudar para nunca mais ser igual. E é assim, mesmo que muitos tunisinos estejam desiludidos com a sua revolução, mesmo que muitos jovens progressistas desconfiem dos políticos que governaram a Tunísia desde 2011 e não consigam acreditar que é possível a um islamista ser moderado.

O Ennhada (direita conservadora religiosa) venceu as primeiras eleições pós-revolução com uma maioria de 40%, mas abdicou de muito no debate constitucional. Provavelmente, não tinha outra opção. A violência dos radicais salafistas assustou todos os tunisinos, incluindo os islamistas no poder. Ataques contra mulheres que não tapam o cabelo, sucessivas ameaças a artistas e, acima de tudo, os assassínios de Chokri Belaïd e Mohamed Brahmi, dois deputados de esquerda, mortos por extremistas religioso em Fevereiro e Julho de 2003, fizeram temer que o país resvalasse para a violência descontrolada e que a transição descarrilasse.

Os islamistas do Ennhada queriam que o islão fosse fonte de direito e abdicaram disso. Ainda não estão aprovados todos os 146 artigos da Constituição, mas já houve acordo para os mais polémicos. A Tunísia “é um Estado livre, independente e soberano, a sua religião é o islão, a sua língua é o árabe e o seu regime a República”, lê-se no artigo 1. O Estado não é laico mas a sharia (lei islâmica) não vai inspirar a lei.

O artigo 6 reconhece a liberdade de consciência, facto que foi aplaudido por organizações de direitos humanos tunisinas e observadores internacionais, mas também estipula que o Estado é “o protector do sagrado”, o que abre a porta a futuras leis que proíbam a blasfémia ou limitem a liberdade de expressão.

Apesar de tudo, a oposição laica conseguiu fazer aprovar a “neutralidade das mesquitas e locais de culto face a instrumentalizações partidárias” e uma emenda que “proíbe a acusação de apostasia [renúncia à fé, negação de Deus] e a incitação à violência” – esta emenda só foi aprovada à segunda e depois de uma paralisação do debate provocada pelas declarações de um deputado do Ennhada, Habib Ellouze, que disse de um deputado de esquerda, Mongi Rahoui, que é “conhecido pela sua animosidade face ao islão”.

Rahoui recebeu ameaças de morte depois das palavras de Ellouze e isso levou outros deputados da oposição a exigir a revisão do artigo 6.

Aprovado está já também o artigo 21, que estipula que “o direito à vida é sagrado, ninguém pode atentar contra este direito salvo em casos extremos fixados pela lei”, um compromisso que não abole a pena de morte, como muitos desejavam, incluindo o Presidente, o defensor dos direitos humanos, centrista e laico Moncef Marzouki. Uma emenda que previa o fim da pena de morte foi rejeitada, ainda que não se execute ninguém na Tunísia desde o início dos anos 1990. São os piores sinais.

Igualdade total
Bem mais positivo foi a aprovação da igualdade entre homens e mulheres – em 2012, o Ennhada escandalizou ao debater publicamente o conceito de “complementaridade” homem-mulher. “Todos os cidadãos e cidadãs têm os mesmos direitos e os mesmos deveres. São iguais perante a lei sem nenhuma descriminação”, define o artigo 20, aprovado por 159 dos 169 deputados que participaram na votação.

É uma vitória para o activismo das tunisinas, mesmo se mais poderia ter sido conseguido. A Human Rights Watch e a Amnistia Internacional consideram redutora a fórmula “cidadãos e cidadãs” e pediram para o texto precisar que “homens e mulheres são iguais e têm direito à plena igualdade de direito e de facto”, defendendo ainda que falta consagrar a não descriminação por motivos de “raça, cor, sexo, língua, religião e opinião política”.

As feministas festejaram – “Era a nossa reivindicação e foi uma vitória”, disse Ahlem Belhaj, ex-presidente da Associação Tunisina das Mulheres Democratas. Afinal, nem na Tunísia da ditadura, país que era desde 1956 o que dava mais direitos às mulheres no mundo árabe, esta igualdade estava consagrada.

Há mais boas notícias, como o artigo onde se lê que “as liberdades de opinião, de pensamento, de expressão e de informação estão garantidas”. A igualdade na justiça e a proibição da tortura também foram aprovadas, princípios muito simbólicos após 50 anos de autoritarismo e perseguição de opositores e críticos.

A Constituição importa pelo que consagra para os tunisinos e pela imagem da Tunísia que vai passar para o mundo – o investimento externo ficou em suspenso desde a crise política aberta com as mortes dos deputados. Sinal disso mesmo foi o desaparecimento de um artigo que proibia a normalização dos laços com Israel.

Moderado, modernista
“A Constituição é geralmente boa ao nível da democracia”, diz à Al-Jazira Iyadh Ben Achour, um professor de Direito Constitucional secular e de esquerda. “Garante direitos e liberdades de acordo com as normas internacionais.”

O Ennhada não deixou de querer o que queria. Mas aprendeu que em democracia é preciso fazer compromissos. “Podemos dizer que o Ennhada mostrou que é um movimento moderado e também que não tinha escolha, a sociedade tunisina é moderna e progressista”, diz Sami Brahem, investigador em civilizações islâmicas. “Se o Ennhada quer fazer política tem de apanhar o comboio deste modernismo, a opção é tornar-se num movimento radical.”

O incidente que fez parar os debates, com as acusações do deputado do Ennhada e a discussão sobre a apostasia, mostrou que há ainda um longo caminho a percorrer para que o debate sobre a relação entre o Estado e a religião seja mais aberto e pacífico. Mas a forma como foi resolvido mostra que a Tunísia pode estar nesse caminho, no caminho certo. Mesmo se quase todos os dias há incidentes com manifestantes que pedem trabalho e melhores condições de vida, mesmo se a verdadeira democracia e uma melhor distribuição da riqueza, como pediam os manifestantes de 2011, ainda estão muito longe de ser alcançadas.

A Tunísia não está a salvo do extremismo. Como o Presidente Marzouki admitiu numa entrevista recente ao jornal francês Libération, “a ameaça jihadista foi subestimada”, assim como os riscos para o país da desestabilização regional. “Quem poderia imaginar que as coisas se iam degradar tão depressa na Líbia?”, interrogou-se o chefe de Estado.

Ao mesmo tempo, “as forças do antigo regime não abdicaram”: “Não há só ameaças salafistas nas nossas fronteiras, também há ameaças de redes mafiosas do antigo regime”, nota Marzouki. Mas agora os líderes políticos estão atentos e o Exército, por exemplo, está mais bem equipado do que há dois anos e tem novos poderes para combater o terrorismo.

Se nada de muito imprevisível acontecer nos próximos dias, a nova Constituição e a formação de uma comissão eleitoral estarão prontas a tempo do aniversário da queda de Ben Ali, na terça-feira. Em breve, serão marcadas novas eleições legislativas. E a Tunísia está prestes a terminar em paz a sua transição política.