Tim Etchells: “Temos mais passado do que futuro, isso é um facto”
Ao longo dos anos Tim Etchells andou a escrever peças de teatro que pareciam histórias banais com as quais nos identificávamos. Ao fim de 30 anos essas histórias fazem o percurso original do novo Artista na Cidade.
Trinta anos de criação contínua, alguma vez sentiu que parte importante do trabalho da companhia passa por terem consciência de que não podem andar em círculo?
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Trinta anos de criação contínua, alguma vez sentiu que parte importante do trabalho da companhia passa por terem consciência de que não podem andar em círculo?
Sim [risos], às vezes entramos numa espiral [discursiva] sobre performatividade e teatralidade que se é uma espécie de metáfora política, não deixa de ser reflexo do circuito fechado onde nos movemos. De qualquer forma, nunca achei que controlasse o “aqui e agora”. Trinta anos depois é interessante perceber que algumas coisas mantêm um fascínio contínuo que não desapareceu no interior de uma estratégia. E isso é uma batalha constante. Há a tendência para uma reacção que provoque que a próxima coisa seja a libertação de um processo mais elaborado, caótico e com muitas camadas, que faça com que cada espectáculo seja mais frágil, como As Festas de Amanhã ou algo mais espectacular, como Quizoolla! (apresenta-se em Novembro). Há em todos, para os intérpretes, um desafio de continuarem atentos ao que estão a fazer e não caírem num automatismo repetitivo.
Também é assim durante os ensaios?
Em As Festas de Amanhã, por exemplo, todos colaboraram nas improvisações e fizeram sugestões. Mas improvisar é muito difícil. As ideias gastam-se muito depressa. E quando a peça é mais curta, ainda mais difícil se torna. É diferente de peças onde o tempo joga a favor das diferentes energias e tempos do próprio espectáculo, como aconteceu com Quizoolla! e E à Milésima Noite (22 Março, Culturgest). A grande diferença entre As Festas de Amanhã e A Tempestade que aí vem (19 a 21 Março, Culturgest), foi, e é, o diálogo A-B, de um para outro actor - têm que reagir ao que o outro está a dizer muito rapidamente e sem mais nada em seu socorro. Em A Tempestade que aí vem, por exemplo, tudo começa com uma questão simples: contar uma história. Assim que as histórias se começam a cruzar, a própria estrutura se começa a deteriorar. As regras são menos claras do que no esquema que sustenta As Festas de Amanhã.
E são decisões colectivas?
Gosto de pensar que chegamos a uma decisão e não tanto que tomamos uma decisão. De certa forma, ninguém decide. Eu, por exemplo, sou péssimo a decidir de forma austera, e muito mais inclinado a perder seis semanas pelas várias opções. Mas também acho que sou aquele que é mais tolerante, precisamente porque os posso observar. Mas às vezes penso que deveríamos ser mais eficientes. Muitos espectáculos começam como estruturas caóticas, vagas, intuitivas e orgânicas e depois tornaram-se peças conceptualmente mais claras, ao ponto de acharmos que são tão simples que as podíamos ter feito em três semanas.
É a consciência de que a linguagem que vos define não se pode transformar numa marca?
Sim, acho que sim. E nós temos as nossas próprias expectativas. Quando se tem um passado, como se escapa a ele? Como permitir que o questionamento sobre o trabalho surja de diferentes formas? O que nos impressiona é a ansiedade que existe no público quando as nossas peças não piscam o olho ao espectador ou não começam com um “olá”.
O que é que a idade acrescentou a uma maior consciência sobre o vosso trabalho?
Tenho 52 anos e aquilo que percebo é que quando eramos miúdos, muito do trabalho andava à volta do potencial destes corpos e naquilo em que se podiam transformar. Nesta forma fictícia de ocupar o mundo que é fazer teatro, quando se é mais velho, percebe-se que há muito menos potencial. Temos mais passado que futuro, e isso é um facto. O que pode ser feito é menos do que aquilo que já foi feito. Os intérpretes já não têm 24 anos mas ainda têm que viver as suas vidas e o trabalho é muito mais sobre equilíbrios entre o que está por vir e o que já passou do que a construção de um espaço para esse potencial surgir. Os seus corpos já contêm muita informação e experiência, não são uma tela em branco – e nunca ninguém o é – mas é menos branco do que já foi. O que reconheço como mudança foi um abrandar dos espectáculos, tornaram-se mais lentos. Se olhar para o trabalho dos anos 1990, reconheço que vivíamos num estado agitado, a fazer zapping, e cada espectáculo tinha dez ideias lá dentro. Hoje os espectáculos têm menos coisas à sua disposição e expandem-se a partir dessas “limitações” tanto quanto possível.
O corpo de que andavam à procura há 30 ou 20 anos, tornou-se, através do modo como foram ocupando o centro dos espectáculos, por exemplo, no uso dos vossos próprios nomes, no principal sujeito teatral, como se fossem intérpretes da vossa própria História?
Sim, ainda não o tinha pensado dessa forma. Chegámos ao corpo de que andávamos à procura. Há ainda outro aspecto ligado a isso: ao olhar para o trabalho que fizemos, posso gostar dele mas também posso perceber como estamos assustados por o fazermos. É um desafio, e ficamos tão interessados no desafio de fazer o que fazemos e de estar onde estamos, que só isso pode justificar o abrandamento. Tem a ver com precisarmos de estar enraizados no presente.
Continuar a fazê-lo é reclamar um território onde têm que estar por vocês e não por aquilo que esperam de vocês?
Sim. E é verdade que o uso dos nomes sublinha uma espécie de narrativa marginal à construção fictícia do espectáculo. Creio que a primeira vez que os usámos foi há dez anos, no Bloody Mess [2004], e de forma muito violenta. A Cathy [Naden] dizia ao Robin [Arthur]: “Já estava na altura de te livrares dessa cabeça de cavalo." Os actores tornaram-se, com o tempo, nestas figuras que atravessam o espectáculo porque são eles que vão gerindo o material. Isso não era claro há 15 ou 20 anos quando vivíamos num território mais ficcional. Hoje caminhamos em direcção a uma outra ideia de tempo mais ligada ao presente e a uma negociação desse presente com o próprio público.
É também admitir que se há 30 anos imaginavam começar uma revolução a partir do palco, hoje discutem muito mais as possibilidades e limitações do dispositivo teatral?
Sim, é verdade [risos]. Não é uma questão que se torne mais fácil de responder com o tempo, mas é nisso que penso o tempo todo. Como é que estas coisas que fazemos tocam e mudam as pessoas? Numa só questão: estou ou não, a desperdiçar (o meu, o vosso) tempo? Qualquer discussão sobre o que pode um espectáculo fazer obedece a duas forças: uma dimensão política que tem a ver com o lugar onde estamos e os problemas que nos rodeiam e outra que tem a ver com a resposta que somos capazes de dar. E quanto a esta segunda força, nos últimos dez anos tem sido dado ênfase, sobretudo no plano cultural, a uma dimensão interactiva e de comprometimento do público, que procura uma forma menos passiva de se ser espectador, como se a participação num projecto propusesse uma relação mais activa do que sentar-se no escuro e ver um espectáculo.
Tem a ver com a imediatez que se tornou na condicionante essencial da vida?
Sim. A participação e interacção tornaram-se chavões que, na prática artística, desafiam a presença do espectador na plateia limitando-o a uma presença e uma experiência passivas. Nunca achei que o fosse. No melhor dos cenários, estas ruas de sentido único são, na verdade, extraordinários momentos de interacção precisamente porque não há botões de escape nem uma paisagem para vaguear. Mas a questão, que é política, é como se criam experiências? Não é sequer evidente que as pessoas que participam nas peças, realmente participem.
Como é que a companhia o vê?
[pausa] Não sei. Não é uma organização idílica. Acho que a natureza das colaborações depende da confiança, da democracia e de uma relação utópica. A companhia é tudo isso mas é também uma história pessoal complicada entre seis pessoas, com todas as tensões, irritações e discussões que se possam imaginar dentro das famílias. É uma relação cuidadosa e de confiança mas é também aguda, impaciente e frustrada.
Continuam juntos porque se tornaram uma família à qual não conseguem escapar?
Seja como for que a queiramos definir, é nítida uma relação de cumplicidade, por mais difícil, entediante, frustrante e irritante que possa ser ouvir, uma vez mais, a opinião de alguém. Somos todos reconhecidos à dimensão do que conseguimos, por mais doloroso que possa ser, até em termos pessoais. São 30 anos de escolha em estarmos juntos.
Já vos chamam de velhos?
É inevitável. Mas sortes destas não acontecem sempre. Mas enquanto conseguirmos dar toques com a bola sem tocar no chão…Há quem consiga trabalhar sozinho, mas com colectivos como o nosso, ou o [nova-iorquino] Wooster Group, o que se vai fazer? Fico a pensar que nunca fizemos parte do sistema económico que é o teatro. As nossas peças nunca foram apresentadas por outros e nem é algo que sequer me interesse. Que iriam fazer? Imitar-nos?
Há 30 anos conseguiam imaginar este futuro?
Acho que não. A ideia de que estaríamos a trabalhar e numa conversa contínua como a que temos, não era imaginável. Mas eu sei que nunca me imaginei a fazer outra coisa para além de arte. A longevidade e continuidade, a vitalidade e a força do grupo são algo que era inimaginável. [pausa longa] É uma surpresa porque, quando penso realmente nisso, isto aconteceu num contexto tão frágil e em circunstâncias tão específicas… podia imaginar diferentes formas de funcionamento a partir de coisas que aconteceram. Pode parecer insano e ridículo pensar que este trabalho continua a existir. E é quase impossível acreditar que, de facto, continua a existir. Acho que tenho, que temos, imensa sorte.