Tédio Boys: uma vida no fio da navalha
E eis que Vitor Torpedo, nu em palco, está virado de costas para o público quando sente alguém a apalpá-lo e a tentar insinuar-se um pouco mais. Estamos num clube de Los Angeles, meados dos anos 1990. A banda era os Tédio Boys e quem apalpava Torpedo era Vaginal Davis, travesti e artista performativa que no final daquele concerto insultaria o público pela sua gritante falta de cultura: como era possível aquelas pessoas de LA não conhecerem Bocage, autor de alguma da melhor poesia erótica do planeta?
A história com Vaginal Davis é uma das muitas que atravessam Filhos Do Tédio, documentário de Rita Alcaire e Rodrigo Lacerda que conta a história dos Tédio Boys, a banda rock’n’roll desalinhada que tomou de assalto Coimbra nos anos 1990. É um documentário tão precioso quanto divertido (os Tédio Boys eram muito divertidos) e inspirador (eram uma coisa muito séria e, como nos dirá o baterista Kaló, “romântica: vamos fazer porque vamos fazer”).
Os Tédio Boys foram um sonho rock’n’roll. Talentoso, tresloucado, confrontante. Gente irrequieta a lutar contra a modorra dos dias e contra o confortozinho tão chatinho. Pessoal muito vivo sem qualquer interesse em encaixar: interessava criar música e fazer da música vida. Está tudo neste documentário de 50 minutos que, estreado em 2007 em festivais como o IndieLisboa ou o MostraLíngua, chega agora ao mercado de DVD (edição recheada de extras como concertos e entrevistas e acompanhado de CD áudio com o EP Voodoo Jungle).
Filhos do Tédio, o título, explica muita coisa. Tanto quanto não o dizem os dados biográficos: banda formada em Coimbra em 1989, teria como formação clássica Toni Fortuna (vocalista), Paulo Furtado (guitarrista), Victor Torpedo (guitarrista), André Ribeiro (baixista) e Kaló (baterista); activa até 2000 editou três álbuns,Porkabilly Psychosis (1994), Outer Space Shit (1996) e Bad Trip (1998), e dois EPs, Fuck The Beatles, Go Country (1997) e Jungle EP (2000); fez três digressões nos EUA, sendo convidada numa delas por Joey Ramone para actuar na sua festa de aniversário e viveu o momento de maior impacto mediático nacional quando alguns dos seus membros actuaram na Queima das Fitas de Coimbra nus, corpo coberto de sangue coalhado e frangos depenados atados à cintura.
Mas aquilo não explica porque decidiu a antropóloga conimbricense Rita Alcaire dedicar-lhe a sua tese de licenciatura (transformada em livro em 2005, editado pela Pé de Página). Nem porque, depois de a ler, o amigo Rodrigo Lacerda, então estudante de cinema em Londres, viu ali um documentário. “Os Tédio Boys foram a face mais visível de um fenómeno social que alterou a paisagem de Coimbra e que se opunha à tradição universitária dos fados e das guitarradas”, diz Rita. Estava lá: “O primeiro disco sai quando eu tinha 15 anos e apanha-me no meio daquela realidade, com os concertos, os espaços nocturnos, um circuito e um sentimento de comunhão que se formava”. Uma nova cartografia da cidade a formar-se: “As pessoas iam ter à Praça da República. Depois Casa de Trás-os-Montes, Cave das Químicas [estacionamento da Universidade que se tornaria um emblemático espaço de concertos no período], States [clube em Celas que funcionava como ponto agregador nocturno]”. Rodrigo Lacerda aponta algo importante: esse circuito e aqueles que o faziam eram “produto dos Tédio Boys e eram aquilo que os produziu”. Rodrigo diz algo mais, igualmente importante. “Coimbra era uma cidade pequena, provinciana e universitária. E só a Universidade é que era vista como cultura. Putos aos berros com aquela rebeldia? Se isso em Portugal era demais, em Coimbra mais ainda”.
“Havia a necessidade de nos incluirmos na cidade, só que a cidade não nos incluía”, desabafa Toni Fortuna em Filhos do Tédio. Eis o início dos Tédio Boys, a banda que nasceu de “gostos muito próximos [os Cramps, o rockabilly, o blues, a country, o garage, o punk, a sci-fi série B, o film noir] e de um desejo muito semelhante em relação à música”. A frase é de Victor Torpedo. Juntemo-la a esta de Fortuna: “Foi uma união de vontades e empenho: ‘Não há mais nada que queira fazer excepto isto’”. Se a cidade os prendia – não é inocente que em “Filhos do Tédio” os depoimentos da banda sejam recolhidos numa ala prisional -, os Tédio Boys libertavam-se.
Vemo-los no documentário: em concerto de guerrilha à porta da loja do pai de André Ribeiro, uma pequena multidão a acumular-se e o rock’n’roll a sair à rua até a polícia acabar com a festa. Vemo-los novamente: uma sala escura e o caos em palco e fora dele, com Furtado a partir a guitarra, com Fortuna aos saltos, com a polícia a cortar o som de palco. “Não éramos coitadinhos”, diz Victor Torpedo. “Dava-nos gozo o choque e precisávamos dessa contracultura”.
Sem saída
A história dos Tédio Boys é uma das mais fascinantes aventuras rock’n’roll que por cá vimos nascer. O documentário mostra-o: os concertos onde tudo podia acontecer e acontecia, a energia da música, o entusiasmo romântico e os excessos. Esta era a banda que se deslocava num decrépito “Tédio Mobile”, carrinha funerária da década de 1950. A banda que não queria perder tempo ou oportunidades. Onde quer que houvesse no país palco para tocar, eles tocavam. “São quase surreais os sítios em que tocámos e em que condições. Em cima de tractores, com o palco a cair-nos em cima...”, diz Victor Torpedo. Furtado: “Estamos a falar de ir dar concertos a sítios onde estavam habituados a ver bandas de baile. E depois podias ter um gajo nu, uma guitarra a voar, microfones e baterias partidas. Logo ao primeiro acorde incomodávamos as pessoas. Essa sensação constante de perigo era o desespero de não haver saída”.
Podem ter transformado o panorama da sua cidade, mas sempre foram no país banda à margem. Editar era difícil e, por mais concertos que dessem, por mais que esses concertos fossem memoráveis, tensos e libertadores, continuavam sem repercussão mediática. Excepção: a actuação na Queima de 1995 – devido a um fait-divers, a da nudez. Seria depois de mais um concerto polémico, este na Festa do Avante – os seguranças confundiram mosh com violência gratuita e desataram a espancar o público -, que novos horizontes se abriram. Fernando Pinto, português radicado nos EUA, viu toda aquela confusão e não teve dúvidas. Marcou-lhes a primeira das três digressões americanas. Período marcante para todos. Porque, como diz Rita Alcaire, ali a banda sentia-se “mais uma”, sentia-se musicalmente em casa. E porque, como explica Kaló, foi ali que viveram o que ambicionavam. “Aquela experiência da viagem, de chegar à terra do rock’n’roll e tocar todos os dias. Não consigo perceber como é se pode querer esta vida sem estar sempre a tocar”. Não se limitaram a tocar.
Gravaram ali Bad Trip, no estúdio de Matt Verta-Ray, dos Speedball Baby e dos Heavy Trahs, e um segundo álbum americano, Pussynest, que conheceu apenas edição online em 2009, quando a banda acabara há muito. A experiência nos EUA foi o momento alto e o início do fim. “Depois daquilo era difícil voltar à terra. Em todos os sentidos. À tua terra e ao planeta Terra”. Ao final da terceira digressão americana, presos na rotina de concertos esporádicos, com um disco preso sem edição e com os membros do grupo divergindo quanto aos próximos passos, os Tédio Boys terminam sem aparato após um concerto em Figueiró dos Vinhos. Sabemos o que aconteceu depois. Torpedo foi para Londres formar os Parkinsons e os Blood Safari antes de regressar a Portugal e criar os Tiguana Bibles – mantém, a solo, o Victor Torpedo Karaoke Show. Paulo Furtado, formou os WrayGunn e tornou-se Legendary Tiger Man. Toni Fortuna é o vocalista e guitarrista dos d3ö e Kaló formou os Bunnyranch, sendo depois baterista dos Tiguana Bibles e, mais recentemente, da última encarnação dos Parkinsons. Os Tédio Boys, por sua vez, foram crescendo em mito e são hoje mais conhecidos do que durante a sua vida. Quando Furtado reviu Filhos do Tédio, houve algo que o deixou feliz: “Já estavam espelhadas naquele grupo de pessoas o viver quotidianamente para a arte e para a música. Essa perspectiva continua a ser real”. No documentário agora editado em DVD tudo isso encontra-se espelhado de forma apelativa num registo do it yourself que representa a banda e o seu percurso como ela merece. Através dele, é um prazer e uma inspiração voltar a esta história.
Filhos do Tédio
De Rita Alcaire e Rodrigo Lacerda
Lux Records / Sony Music
****
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
E eis que Vitor Torpedo, nu em palco, está virado de costas para o público quando sente alguém a apalpá-lo e a tentar insinuar-se um pouco mais. Estamos num clube de Los Angeles, meados dos anos 1990. A banda era os Tédio Boys e quem apalpava Torpedo era Vaginal Davis, travesti e artista performativa que no final daquele concerto insultaria o público pela sua gritante falta de cultura: como era possível aquelas pessoas de LA não conhecerem Bocage, autor de alguma da melhor poesia erótica do planeta?
A história com Vaginal Davis é uma das muitas que atravessam Filhos Do Tédio, documentário de Rita Alcaire e Rodrigo Lacerda que conta a história dos Tédio Boys, a banda rock’n’roll desalinhada que tomou de assalto Coimbra nos anos 1990. É um documentário tão precioso quanto divertido (os Tédio Boys eram muito divertidos) e inspirador (eram uma coisa muito séria e, como nos dirá o baterista Kaló, “romântica: vamos fazer porque vamos fazer”).
Os Tédio Boys foram um sonho rock’n’roll. Talentoso, tresloucado, confrontante. Gente irrequieta a lutar contra a modorra dos dias e contra o confortozinho tão chatinho. Pessoal muito vivo sem qualquer interesse em encaixar: interessava criar música e fazer da música vida. Está tudo neste documentário de 50 minutos que, estreado em 2007 em festivais como o IndieLisboa ou o MostraLíngua, chega agora ao mercado de DVD (edição recheada de extras como concertos e entrevistas e acompanhado de CD áudio com o EP Voodoo Jungle).
Filhos do Tédio, o título, explica muita coisa. Tanto quanto não o dizem os dados biográficos: banda formada em Coimbra em 1989, teria como formação clássica Toni Fortuna (vocalista), Paulo Furtado (guitarrista), Victor Torpedo (guitarrista), André Ribeiro (baixista) e Kaló (baterista); activa até 2000 editou três álbuns,Porkabilly Psychosis (1994), Outer Space Shit (1996) e Bad Trip (1998), e dois EPs, Fuck The Beatles, Go Country (1997) e Jungle EP (2000); fez três digressões nos EUA, sendo convidada numa delas por Joey Ramone para actuar na sua festa de aniversário e viveu o momento de maior impacto mediático nacional quando alguns dos seus membros actuaram na Queima das Fitas de Coimbra nus, corpo coberto de sangue coalhado e frangos depenados atados à cintura.
Mas aquilo não explica porque decidiu a antropóloga conimbricense Rita Alcaire dedicar-lhe a sua tese de licenciatura (transformada em livro em 2005, editado pela Pé de Página). Nem porque, depois de a ler, o amigo Rodrigo Lacerda, então estudante de cinema em Londres, viu ali um documentário. “Os Tédio Boys foram a face mais visível de um fenómeno social que alterou a paisagem de Coimbra e que se opunha à tradição universitária dos fados e das guitarradas”, diz Rita. Estava lá: “O primeiro disco sai quando eu tinha 15 anos e apanha-me no meio daquela realidade, com os concertos, os espaços nocturnos, um circuito e um sentimento de comunhão que se formava”. Uma nova cartografia da cidade a formar-se: “As pessoas iam ter à Praça da República. Depois Casa de Trás-os-Montes, Cave das Químicas [estacionamento da Universidade que se tornaria um emblemático espaço de concertos no período], States [clube em Celas que funcionava como ponto agregador nocturno]”. Rodrigo Lacerda aponta algo importante: esse circuito e aqueles que o faziam eram “produto dos Tédio Boys e eram aquilo que os produziu”. Rodrigo diz algo mais, igualmente importante. “Coimbra era uma cidade pequena, provinciana e universitária. E só a Universidade é que era vista como cultura. Putos aos berros com aquela rebeldia? Se isso em Portugal era demais, em Coimbra mais ainda”.
“Havia a necessidade de nos incluirmos na cidade, só que a cidade não nos incluía”, desabafa Toni Fortuna em Filhos do Tédio. Eis o início dos Tédio Boys, a banda que nasceu de “gostos muito próximos [os Cramps, o rockabilly, o blues, a country, o garage, o punk, a sci-fi série B, o film noir] e de um desejo muito semelhante em relação à música”. A frase é de Victor Torpedo. Juntemo-la a esta de Fortuna: “Foi uma união de vontades e empenho: ‘Não há mais nada que queira fazer excepto isto’”. Se a cidade os prendia – não é inocente que em “Filhos do Tédio” os depoimentos da banda sejam recolhidos numa ala prisional -, os Tédio Boys libertavam-se.
Vemo-los no documentário: em concerto de guerrilha à porta da loja do pai de André Ribeiro, uma pequena multidão a acumular-se e o rock’n’roll a sair à rua até a polícia acabar com a festa. Vemo-los novamente: uma sala escura e o caos em palco e fora dele, com Furtado a partir a guitarra, com Fortuna aos saltos, com a polícia a cortar o som de palco. “Não éramos coitadinhos”, diz Victor Torpedo. “Dava-nos gozo o choque e precisávamos dessa contracultura”.
Sem saída
A história dos Tédio Boys é uma das mais fascinantes aventuras rock’n’roll que por cá vimos nascer. O documentário mostra-o: os concertos onde tudo podia acontecer e acontecia, a energia da música, o entusiasmo romântico e os excessos. Esta era a banda que se deslocava num decrépito “Tédio Mobile”, carrinha funerária da década de 1950. A banda que não queria perder tempo ou oportunidades. Onde quer que houvesse no país palco para tocar, eles tocavam. “São quase surreais os sítios em que tocámos e em que condições. Em cima de tractores, com o palco a cair-nos em cima...”, diz Victor Torpedo. Furtado: “Estamos a falar de ir dar concertos a sítios onde estavam habituados a ver bandas de baile. E depois podias ter um gajo nu, uma guitarra a voar, microfones e baterias partidas. Logo ao primeiro acorde incomodávamos as pessoas. Essa sensação constante de perigo era o desespero de não haver saída”.
Podem ter transformado o panorama da sua cidade, mas sempre foram no país banda à margem. Editar era difícil e, por mais concertos que dessem, por mais que esses concertos fossem memoráveis, tensos e libertadores, continuavam sem repercussão mediática. Excepção: a actuação na Queima de 1995 – devido a um fait-divers, a da nudez. Seria depois de mais um concerto polémico, este na Festa do Avante – os seguranças confundiram mosh com violência gratuita e desataram a espancar o público -, que novos horizontes se abriram. Fernando Pinto, português radicado nos EUA, viu toda aquela confusão e não teve dúvidas. Marcou-lhes a primeira das três digressões americanas. Período marcante para todos. Porque, como diz Rita Alcaire, ali a banda sentia-se “mais uma”, sentia-se musicalmente em casa. E porque, como explica Kaló, foi ali que viveram o que ambicionavam. “Aquela experiência da viagem, de chegar à terra do rock’n’roll e tocar todos os dias. Não consigo perceber como é se pode querer esta vida sem estar sempre a tocar”. Não se limitaram a tocar.
Gravaram ali Bad Trip, no estúdio de Matt Verta-Ray, dos Speedball Baby e dos Heavy Trahs, e um segundo álbum americano, Pussynest, que conheceu apenas edição online em 2009, quando a banda acabara há muito. A experiência nos EUA foi o momento alto e o início do fim. “Depois daquilo era difícil voltar à terra. Em todos os sentidos. À tua terra e ao planeta Terra”. Ao final da terceira digressão americana, presos na rotina de concertos esporádicos, com um disco preso sem edição e com os membros do grupo divergindo quanto aos próximos passos, os Tédio Boys terminam sem aparato após um concerto em Figueiró dos Vinhos. Sabemos o que aconteceu depois. Torpedo foi para Londres formar os Parkinsons e os Blood Safari antes de regressar a Portugal e criar os Tiguana Bibles – mantém, a solo, o Victor Torpedo Karaoke Show. Paulo Furtado, formou os WrayGunn e tornou-se Legendary Tiger Man. Toni Fortuna é o vocalista e guitarrista dos d3ö e Kaló formou os Bunnyranch, sendo depois baterista dos Tiguana Bibles e, mais recentemente, da última encarnação dos Parkinsons. Os Tédio Boys, por sua vez, foram crescendo em mito e são hoje mais conhecidos do que durante a sua vida. Quando Furtado reviu Filhos do Tédio, houve algo que o deixou feliz: “Já estavam espelhadas naquele grupo de pessoas o viver quotidianamente para a arte e para a música. Essa perspectiva continua a ser real”. No documentário agora editado em DVD tudo isso encontra-se espelhado de forma apelativa num registo do it yourself que representa a banda e o seu percurso como ela merece. Através dele, é um prazer e uma inspiração voltar a esta história.
Filhos do Tédio
De Rita Alcaire e Rodrigo Lacerda
Lux Records / Sony Music
****
Extras
***