Memórias da gentil angústia de Ingmar Bergman
Os hábitos culturais mudaram, como é bem sabido, e o lugar do cinema nesses hábitos já não é exactamente o mesmo. Ingmar Bergman, e Portugal será um óptimo exemplo disso, foi um nome capital num tempo em que seguir um diálogo com um cineasta, um diálogo continuado no tempo muito para além dos frissonspublicitários de ocasião, não era uma questão de cinefilia fervorosa, antes um elemento básico da dieta cultural das classes médias urbanas. Talvez só mais um nome, o de Federico Fellini, tenha representado, com um poder semelhante, esta circunstância. Evidentemente, também, um reflexo dos tempos em que o cinema era antes do mais uma questão de adultos, de homem e mulheres adultos com vidas e preocupações de adultos perfeitamente normais – antes de, numa história tipo “o ovo e a galinha” em que importará pouco, para o caso, saber o que gerou o quê, as salas de cinema terem passado a ser um território dominado maioritariamente por um público jovem e adolescente por norma desconfiado de tudo o que cheire a “intelectualidade”. E é assim que hoje, quando os adultos estão sobretudo em casa a ver “as séries”, o mais fácil é encontrar, numa volta pela Internet, em blogs e fóruns onde o cinema seja caso, o nome de Ingmar Bergman convertido em arquétipo de um cinema obscuramente “intelectual” contra o qual tudo se joga ou deve jogar. Quantas vezes não lemos já, nesses blogs e fóruns, o “lembrete” aos críticos de cinema de que “o cinema não é só Bergman”?...
E bom, durante as próximas semanas o cinema não será só Bergman, mas quase. São dezassete filmes que vêm visitar o ecrã do Nimas em Lisboa (começou esta semana, a 9, e os filmes irão rodar até Abril; a partir de 20 de Fevereiro é a vez do Teatro Campo Alegre no Porto receber a retrospectiva). Porgramação da Leopardo Filmes, é a maior concentração de filmes de Bergman em Portugal desde as retrospectivas da Cinemateca: a primeira, integral, em 1989 (há 25 anos, portanto); mais recentemente, em 2001, uma parcelar dedicada às Heranças de Bergman. O período temporal vai desde o final dos anos 40 (A Prisão, de 1949) aos anos 80 da primeira “despedida” de Bergman com Fanny e Alexandre (1982), despedida que ele anunciou mas nunca cumpriu verdadeiramente – foi sempre trabalhando, em filmes pensados para televisão mas frequentemente exibidos em sala, antes de um último e esmagador “filme de cinema”, Sarabanda, que se estreou em 2003, quatro anos antes da morte do cineasta (que morreu, recorde-se, aos 89 anos, e numa daquelas coincidências que não lembravam ao diabo: no mesmo dia de 2007 em que também morreu Michelangelo Antonioni).
Cenas de uma relação difícil
Na Suécia, acha-se isto – um “festival Bergman” – uma coisa extraordinária. Falámos ao telefone com alguns colaboradores de Bergman, e era unânime, entre eles, um certo espanto. Ewa Fröling, que chegou in extremis à grande família de actores de Bergman (foi Emelie, a mãe de Fanny e Alexandre no filme homónimo, mas também trabalhou com Bergman no teatro), diz taxativamente que uma coisa destas era “impensável” na Suécia contemporânea. “Bergman está esquecido, e ninguém se quer lembrar dele”. É certo que a relação do cineasta com os seus conterrâneos foi sempre um assunto complexo, talvez porque santos da casa não façam milagres, e também aqui em Portugal (mas por certos noutros países igualmente) seria fácil encontrar cineastas muito mais reconhecidos e apreciados no estrangeiro do que dentro de fronteiras. É célebre a sua constante guerra com os críticos suecos, ou mais exactamente a guerra dos críticos suecos com ele – ele ripostou mais do que uma vez, a mais declarada das quais num filme não incluído neste programa que se chamou A Força do Sexo Fraco (na sua autobiografia, Lanterna Magica, Bergman confessa o estado de animosidade em que realizou o filme, que depois encontrou, palavras dele “um merecido fiasco”). Assim como é bem conhecido aquele momento dos anos 70 em que o realizador se auto-exilou na Alemanha (onde realizou Da Vida das Marionetas) enquanto na Suécia era processado por evasão fiscal, algo dramático para um homem que sempre teve tendência a sentir-se perseguido pelo seu próprio país natal.
Katinka Faragó, que foi uma das suas mais próximas e assíduas colaboradoras – começou como anotadora nos anos 50, acabou como directora de produção de Fanny e Alexandre – conta-nos entre risos um episódio que acha revelador. Teve uma empregada de origem húngara, e um dia percebeu que ela nunca tinha visto nenhum filme de Bergman. Perguntou-lhe porquê e a resposta foi: “os críticos dizem sempre tanto mal...”.
Ewa Fröling pinta esta relação difícil dentro dum quadro mais vasto, o da relação dos suecos com a cultura: “Somos um país de camponeses, isso está-nos no sangue e impede-nos de ir além de um interesse elementar pela cultura, afasta-nos de manifestações mais exigentes e sofisticadas como é a obra de Bergman”. Custa-nos um bocado a engolir esta explicação, que por maior que seja o seu fundo de verdade não se coaduna com a quantidade de exemplos de uma cultura sueca “exigente e sofisticada”. Não é certamente um país de bárbaros, e perguntamo-nos, perguntando ao mesmo tempo a Fröling, se o problema não será justamente o oposto, e haver nos filmes de Bergman um reflexo tão perfeito da vida sueca, da “alma sueca”, que se torne difícil aos suecos contemplá-lo, assim como nem toda a gente gosta de se ver nu ao espelho (de resto, que Bergman “mostra os suecos na sua nudez” foi uma coisa que Katinka Faragó nos disse). Ewa Fröling condescende com a nossa observação mas logo acrescenta que isso da “alma sueca”, no seu mais justo como no mais anedótico, alimenta actualmente uma vasta tradição da literatura policial, os romances de Stieg Larsson por exemplo, e que estes livros, ao contrário dos filmes de Bergman, são um grande sucesso entre os suecos. Nem lhes conseguimos, a Fröling ou a Faragó, suspender a incredulidade e o pessimismo quando mencionamos a projecção internacional de Bergman, até mesmo em países que, como Portugal, pouco ou nada têm em comum, social, religiosa ou climaticamente, com a Suécia. A explicação de ambas é o “exotismo”, as pessoas vão ver os suecos nos filmes de Bergman um pouco como se fossem ao jardim zoológico. E quando insistimos que será um pouco mais do que isso, e que nos filmes de Bergman se vê algo de mais universal do que apenas “os suecos”, Katinka Faragó volta à carga: “Claro que sim, claro que tem razão, mas nem por isso deixa de ser verdade que é o ‘exotismo’ que mais mobiliza os estrangeiros na sua relação com Bergman”.
A família
O pessimismo de Faragó e Fröling é quase epicamente “bergmaniano”, tal como o demonstra uma obra que é, no essencial, bem pouco esperançosa, quer na relação com a vida quer na relação com a morte (e sobre esta falta de esperança até na morte, “e se houver apenas o nada?”, Bergman construiu um dos seus filmes essenciais,O Sétimo Selo). Perguntamos a quem o conheceu bem, Katinka Faragó, se Bergman era mesmo um homem tão angustiado e atormentado como os seus filmes sugerem. “Era, sim”, responde, mas “a tormenta era ampliada por ser um homem extraordinariamente gentil, a quem era difícil ser agressivo ou maldoso na vida pessoal”. Mas o seu maior problema, julga Faragó, era uma espécie de complexo de inferioridade, que de resto se pressente quando se lê a Lanterna Magica: “Era um homem muito ambicioso artisticamente, que acreditava não estar à altura da sua ambição e sofria terrivelmente com isso”. Como também era muito reservado e fechado, a reputação de ser um homem de trato difícil estabeleceu-se rapidamente. Mas Faragó depressa percebeu que essa era uma noção errada: “Comecei a trabalhar com Bergman por acaso, ele precisava de uma anotadora para Kvinnödrom (Sonhos de Mulheres, 1955) e todas no estúdio se recusavam a ir. Eu tinha acabado de entrar, tinha 19 anos, e não podia dizer que não. E lá fui”. Para descobrir que trabalhar com Bergman era, ao contrário do que toda a gente dizia, “maravilhoso”. O ambiente das rodagens tinha obviamente momentos de tensão mas era, no geral, e Faragó repete o adjectivo, “maravilhoso”. E frequentemente distendido: Faragó recorda a rodagem de O Silêncio, certamente um dos mais sombrios e pesados filmes de Bergman, como uma das rodagens mais alegres: “Imagine que quando a câmara não estava a filmar, havia sempre música rock no plateau...”.
Fala-se muito da “família de Bergman”, da “troupe” de actores e colaboradores que durante décadas foi passando de filme para filme. Faragó refere que a expressão “família” não é empregue nada em vão: “Para além do cinema havia o teatro, pelo que não nos encontrávamos só para os filmes; e mesmo quando não estávamos a trabalhar era frequente juntarmo-nos, em jantares ou em bares”. Bertil Guve, que foi o Alexander de Fanny e Alexander e não seguiu carreira como actor (hoje é médico), recorda o extraordinário tacto com que Bergman o dirigiu nesse filme. “Disse-me que me escolheu porque precisava de um miúdo que representasse com os olhos” – e quem viu o filme bem sabe como os olhos de Alexander são importantes e dominadores. Ewa Fröling, que nesse filme teve o seu único trabalho cinematográfico com Ingmar, recorda o realizador com um “escultor de personagens”, alguém que dirigia os actores até ao mais ínfimo gesto, mas não de maneira ostensiva: “A dada altura descobríamos que já não éramos nós, e que nos tínhamos transformado na personagem”.
Fanny e Alexander foi a primeira despedida auto-anunciada deste homem extraordinariamente prolífico, que deixou mais de quarenta longas-metragens e um sem-número de encenações teatrais e operáticas feitas para o palco, para a rádio ou para a televisão. Mas a sua criatividade nunca secou, como o parece provar tudo o que fez depois, inclusivamente para cinema. Katinka Faragó recorda-se bem do cansaço de Bergman durante a rodagem de Fanny e Alexandre; mas o cansaço era com as circunstâncias, com as condições materiais, com a crescente dificuldade de fazer cinema – “era tudo muito mais caro, tudo muito mais complexo, o que trazia uma pressão muito maior, e foi disso que ele se cansou, creio que criativamente nunca se sentiu esgotado”.
E bom, nós, nas próximas semanas, teremos a rara ocasião de, ao longo de dezassete filmes, também nos vermos reflectidos na nossa própria “nudez”, não de portugueses nem de suecos, mas de seres humanos que riem, amam, choram, se divertem e se angustiam. Pensar que Ingmar Bergman é coisa para “intelectuais” é um disparate: os filmes de Bergman tocam, e dizem respeito, a quem quer que seja feito de carne, osso e um cérebro. A angústia protestante, o frio sueco, são uma capa: por baixo dela, a nossa nudez.
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Os hábitos culturais mudaram, como é bem sabido, e o lugar do cinema nesses hábitos já não é exactamente o mesmo. Ingmar Bergman, e Portugal será um óptimo exemplo disso, foi um nome capital num tempo em que seguir um diálogo com um cineasta, um diálogo continuado no tempo muito para além dos frissonspublicitários de ocasião, não era uma questão de cinefilia fervorosa, antes um elemento básico da dieta cultural das classes médias urbanas. Talvez só mais um nome, o de Federico Fellini, tenha representado, com um poder semelhante, esta circunstância. Evidentemente, também, um reflexo dos tempos em que o cinema era antes do mais uma questão de adultos, de homem e mulheres adultos com vidas e preocupações de adultos perfeitamente normais – antes de, numa história tipo “o ovo e a galinha” em que importará pouco, para o caso, saber o que gerou o quê, as salas de cinema terem passado a ser um território dominado maioritariamente por um público jovem e adolescente por norma desconfiado de tudo o que cheire a “intelectualidade”. E é assim que hoje, quando os adultos estão sobretudo em casa a ver “as séries”, o mais fácil é encontrar, numa volta pela Internet, em blogs e fóruns onde o cinema seja caso, o nome de Ingmar Bergman convertido em arquétipo de um cinema obscuramente “intelectual” contra o qual tudo se joga ou deve jogar. Quantas vezes não lemos já, nesses blogs e fóruns, o “lembrete” aos críticos de cinema de que “o cinema não é só Bergman”?...
E bom, durante as próximas semanas o cinema não será só Bergman, mas quase. São dezassete filmes que vêm visitar o ecrã do Nimas em Lisboa (começou esta semana, a 9, e os filmes irão rodar até Abril; a partir de 20 de Fevereiro é a vez do Teatro Campo Alegre no Porto receber a retrospectiva). Porgramação da Leopardo Filmes, é a maior concentração de filmes de Bergman em Portugal desde as retrospectivas da Cinemateca: a primeira, integral, em 1989 (há 25 anos, portanto); mais recentemente, em 2001, uma parcelar dedicada às Heranças de Bergman. O período temporal vai desde o final dos anos 40 (A Prisão, de 1949) aos anos 80 da primeira “despedida” de Bergman com Fanny e Alexandre (1982), despedida que ele anunciou mas nunca cumpriu verdadeiramente – foi sempre trabalhando, em filmes pensados para televisão mas frequentemente exibidos em sala, antes de um último e esmagador “filme de cinema”, Sarabanda, que se estreou em 2003, quatro anos antes da morte do cineasta (que morreu, recorde-se, aos 89 anos, e numa daquelas coincidências que não lembravam ao diabo: no mesmo dia de 2007 em que também morreu Michelangelo Antonioni).
Cenas de uma relação difícil
Na Suécia, acha-se isto – um “festival Bergman” – uma coisa extraordinária. Falámos ao telefone com alguns colaboradores de Bergman, e era unânime, entre eles, um certo espanto. Ewa Fröling, que chegou in extremis à grande família de actores de Bergman (foi Emelie, a mãe de Fanny e Alexandre no filme homónimo, mas também trabalhou com Bergman no teatro), diz taxativamente que uma coisa destas era “impensável” na Suécia contemporânea. “Bergman está esquecido, e ninguém se quer lembrar dele”. É certo que a relação do cineasta com os seus conterrâneos foi sempre um assunto complexo, talvez porque santos da casa não façam milagres, e também aqui em Portugal (mas por certos noutros países igualmente) seria fácil encontrar cineastas muito mais reconhecidos e apreciados no estrangeiro do que dentro de fronteiras. É célebre a sua constante guerra com os críticos suecos, ou mais exactamente a guerra dos críticos suecos com ele – ele ripostou mais do que uma vez, a mais declarada das quais num filme não incluído neste programa que se chamou A Força do Sexo Fraco (na sua autobiografia, Lanterna Magica, Bergman confessa o estado de animosidade em que realizou o filme, que depois encontrou, palavras dele “um merecido fiasco”). Assim como é bem conhecido aquele momento dos anos 70 em que o realizador se auto-exilou na Alemanha (onde realizou Da Vida das Marionetas) enquanto na Suécia era processado por evasão fiscal, algo dramático para um homem que sempre teve tendência a sentir-se perseguido pelo seu próprio país natal.
Katinka Faragó, que foi uma das suas mais próximas e assíduas colaboradoras – começou como anotadora nos anos 50, acabou como directora de produção de Fanny e Alexandre – conta-nos entre risos um episódio que acha revelador. Teve uma empregada de origem húngara, e um dia percebeu que ela nunca tinha visto nenhum filme de Bergman. Perguntou-lhe porquê e a resposta foi: “os críticos dizem sempre tanto mal...”.
Ewa Fröling pinta esta relação difícil dentro dum quadro mais vasto, o da relação dos suecos com a cultura: “Somos um país de camponeses, isso está-nos no sangue e impede-nos de ir além de um interesse elementar pela cultura, afasta-nos de manifestações mais exigentes e sofisticadas como é a obra de Bergman”. Custa-nos um bocado a engolir esta explicação, que por maior que seja o seu fundo de verdade não se coaduna com a quantidade de exemplos de uma cultura sueca “exigente e sofisticada”. Não é certamente um país de bárbaros, e perguntamo-nos, perguntando ao mesmo tempo a Fröling, se o problema não será justamente o oposto, e haver nos filmes de Bergman um reflexo tão perfeito da vida sueca, da “alma sueca”, que se torne difícil aos suecos contemplá-lo, assim como nem toda a gente gosta de se ver nu ao espelho (de resto, que Bergman “mostra os suecos na sua nudez” foi uma coisa que Katinka Faragó nos disse). Ewa Fröling condescende com a nossa observação mas logo acrescenta que isso da “alma sueca”, no seu mais justo como no mais anedótico, alimenta actualmente uma vasta tradição da literatura policial, os romances de Stieg Larsson por exemplo, e que estes livros, ao contrário dos filmes de Bergman, são um grande sucesso entre os suecos. Nem lhes conseguimos, a Fröling ou a Faragó, suspender a incredulidade e o pessimismo quando mencionamos a projecção internacional de Bergman, até mesmo em países que, como Portugal, pouco ou nada têm em comum, social, religiosa ou climaticamente, com a Suécia. A explicação de ambas é o “exotismo”, as pessoas vão ver os suecos nos filmes de Bergman um pouco como se fossem ao jardim zoológico. E quando insistimos que será um pouco mais do que isso, e que nos filmes de Bergman se vê algo de mais universal do que apenas “os suecos”, Katinka Faragó volta à carga: “Claro que sim, claro que tem razão, mas nem por isso deixa de ser verdade que é o ‘exotismo’ que mais mobiliza os estrangeiros na sua relação com Bergman”.
A família
O pessimismo de Faragó e Fröling é quase epicamente “bergmaniano”, tal como o demonstra uma obra que é, no essencial, bem pouco esperançosa, quer na relação com a vida quer na relação com a morte (e sobre esta falta de esperança até na morte, “e se houver apenas o nada?”, Bergman construiu um dos seus filmes essenciais,O Sétimo Selo). Perguntamos a quem o conheceu bem, Katinka Faragó, se Bergman era mesmo um homem tão angustiado e atormentado como os seus filmes sugerem. “Era, sim”, responde, mas “a tormenta era ampliada por ser um homem extraordinariamente gentil, a quem era difícil ser agressivo ou maldoso na vida pessoal”. Mas o seu maior problema, julga Faragó, era uma espécie de complexo de inferioridade, que de resto se pressente quando se lê a Lanterna Magica: “Era um homem muito ambicioso artisticamente, que acreditava não estar à altura da sua ambição e sofria terrivelmente com isso”. Como também era muito reservado e fechado, a reputação de ser um homem de trato difícil estabeleceu-se rapidamente. Mas Faragó depressa percebeu que essa era uma noção errada: “Comecei a trabalhar com Bergman por acaso, ele precisava de uma anotadora para Kvinnödrom (Sonhos de Mulheres, 1955) e todas no estúdio se recusavam a ir. Eu tinha acabado de entrar, tinha 19 anos, e não podia dizer que não. E lá fui”. Para descobrir que trabalhar com Bergman era, ao contrário do que toda a gente dizia, “maravilhoso”. O ambiente das rodagens tinha obviamente momentos de tensão mas era, no geral, e Faragó repete o adjectivo, “maravilhoso”. E frequentemente distendido: Faragó recorda a rodagem de O Silêncio, certamente um dos mais sombrios e pesados filmes de Bergman, como uma das rodagens mais alegres: “Imagine que quando a câmara não estava a filmar, havia sempre música rock no plateau...”.
Fala-se muito da “família de Bergman”, da “troupe” de actores e colaboradores que durante décadas foi passando de filme para filme. Faragó refere que a expressão “família” não é empregue nada em vão: “Para além do cinema havia o teatro, pelo que não nos encontrávamos só para os filmes; e mesmo quando não estávamos a trabalhar era frequente juntarmo-nos, em jantares ou em bares”. Bertil Guve, que foi o Alexander de Fanny e Alexander e não seguiu carreira como actor (hoje é médico), recorda o extraordinário tacto com que Bergman o dirigiu nesse filme. “Disse-me que me escolheu porque precisava de um miúdo que representasse com os olhos” – e quem viu o filme bem sabe como os olhos de Alexander são importantes e dominadores. Ewa Fröling, que nesse filme teve o seu único trabalho cinematográfico com Ingmar, recorda o realizador com um “escultor de personagens”, alguém que dirigia os actores até ao mais ínfimo gesto, mas não de maneira ostensiva: “A dada altura descobríamos que já não éramos nós, e que nos tínhamos transformado na personagem”.
Fanny e Alexander foi a primeira despedida auto-anunciada deste homem extraordinariamente prolífico, que deixou mais de quarenta longas-metragens e um sem-número de encenações teatrais e operáticas feitas para o palco, para a rádio ou para a televisão. Mas a sua criatividade nunca secou, como o parece provar tudo o que fez depois, inclusivamente para cinema. Katinka Faragó recorda-se bem do cansaço de Bergman durante a rodagem de Fanny e Alexandre; mas o cansaço era com as circunstâncias, com as condições materiais, com a crescente dificuldade de fazer cinema – “era tudo muito mais caro, tudo muito mais complexo, o que trazia uma pressão muito maior, e foi disso que ele se cansou, creio que criativamente nunca se sentiu esgotado”.
E bom, nós, nas próximas semanas, teremos a rara ocasião de, ao longo de dezassete filmes, também nos vermos reflectidos na nossa própria “nudez”, não de portugueses nem de suecos, mas de seres humanos que riem, amam, choram, se divertem e se angustiam. Pensar que Ingmar Bergman é coisa para “intelectuais” é um disparate: os filmes de Bergman tocam, e dizem respeito, a quem quer que seja feito de carne, osso e um cérebro. A angústia protestante, o frio sueco, são uma capa: por baixo dela, a nossa nudez.