Programa cautelar ou saída à irlandesa são “cenários em aberto”, diz Pires de Lima

Há uma mudança de modelo económico, virado agora para a exportação, diz Pires de Lima, mas alerta que há uma massa de “excluídos” que podem não voltar a ter emprego. E diz que é preciso estar atento a eles.

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Daniel Rocha

Foi o primeiro no Governo a falar sobre a necessidade de um programa cautelar. O que é que gostaria de salvaguardar para a economia portuguesa numa negociação com os parceiros europeus?
Vamos de ter de aguardar se o que mais nos convém é um programa cautelar ou se é uma saída à irlandesa, que tem os seus riscos. A economia portuguesa está a evoluir de uma forma muito favorável, por isso, não descartaria a possibilidade de termos os dois cenários em aberto até ao fim do primeiro trimestre. Se optarmos pela solução do programa cautelar, este deve constituir um seguro de acesso aos mercados em circunstâncias especiais. Deve limitar ao mínimo a nossa soberania. Um programa cautelar não se pode nunca confundir com um segundo resgate. Mesmo uma saída limpa, como no caso da Irlanda, pressupõe o cumprimento de objectivos em termos de défice nos próximos anos. A Irlanda não pode fazer o orçamento que quiser para 2015. Não podemos também criar a ilusão de pelo facto de terminarmos o programa no dia 17 de Maio vamos estar desobrigados de cumprir um conjunto de metas e compromissos que fazem parte deste processo de correcção destes défices orçamentais.

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Foi o primeiro no Governo a falar sobre a necessidade de um programa cautelar. O que é que gostaria de salvaguardar para a economia portuguesa numa negociação com os parceiros europeus?
Vamos de ter de aguardar se o que mais nos convém é um programa cautelar ou se é uma saída à irlandesa, que tem os seus riscos. A economia portuguesa está a evoluir de uma forma muito favorável, por isso, não descartaria a possibilidade de termos os dois cenários em aberto até ao fim do primeiro trimestre. Se optarmos pela solução do programa cautelar, este deve constituir um seguro de acesso aos mercados em circunstâncias especiais. Deve limitar ao mínimo a nossa soberania. Um programa cautelar não se pode nunca confundir com um segundo resgate. Mesmo uma saída limpa, como no caso da Irlanda, pressupõe o cumprimento de objectivos em termos de défice nos próximos anos. A Irlanda não pode fazer o orçamento que quiser para 2015. Não podemos também criar a ilusão de pelo facto de terminarmos o programa no dia 17 de Maio vamos estar desobrigados de cumprir um conjunto de metas e compromissos que fazem parte deste processo de correcção destes défices orçamentais.

O Governo terá força para conseguir um compromisso menos exigente?
É preciso esperar para ver o que mais nos convém. Por isso, nunca me custou falar do programa cautelar, falei até com algum excesso de liberdade, mas, para mim, é uma coisa que não deve ser diabolizada. Nada nos livra a nós, nem aos irlandeses, nem aos gregos, nem aos espanhóis, de termos de trabalhar para fixar os limites do défice orçamental de 3% em 2015 e de termos saldos primários positivos nos próximos anos. É particularmente humilhante a situação que nós estamos a viver, com avaliações periódicas dos nossos credores e que se traduziram na incapacidade que tivemos de flexibilizar em meio ponto a meta do défice para 2014. Terminando o programa de assistência financeira, acho que recuperamos boa parte da nossa liberdade de execução orçamental, coisa que não tivemos em 2012 nem de 2013.

À volta deste orçamento há um retomar de um discurso propagandístico por parte do Governo sobre a retoma económica. Tem noção de que este discurso optimista é, no mínimo, desfasado do quotidiano da maioria dos portugueses, que vai ser muito difícil em 2014.
Tenho a total noção. A retoma não é propaganda, a retoma é real. Portugal vai cresce,r e vai crescer mais do que estava previsto. Vai crescer provavelmente mais do que 1% em 2014 e isto é um feito extraordinário face às perspectivas sombrias que sobre nós recaíam no final de 2012, em que se falava de espiral recessiva e de níveis brutais de desemprego semelhantes aos da Grécia e Espanha. Mas estou de acordo que uma coisa é a recuperação das empresas, outra é a vida das pessoas, que continua mais ou menos no ponto em que estava há um ano. No caso dos funcionários públicos, provavelmente, até terão sacrifícios adicionais em 2014. O discurso tem de ser sensível. Entrar numa onda de euforia por termos crescimento económico e esse crescimento ser muito valorizado por agentes externos seria uma enorme falta de sensibilidade. Porque vai demorar ainda algum tempo em melhoria real das pessoas esta retoma económica, até porque está a ser liderada pelas exportações. O que há a fazer é essas empresas, que estão a ganhar quota de mercado e riqueza, passarem para os seus colaboradores uma parte do sucesso que estão a ter.

Está a falar de um aumento de salários?
Sim. Já apelei a que os empresários das empresas bem sucedidas actualizem os salários das pessoas que trabalhem nas empresas, que estão a ser as campeãs desta retoma.

É uma questão de justiça social e não só de generosidade?
É uma questão de motivação. Quando fui gestor de empresas privadas, fui muito exigente nas estruturas que tinham de trabalhar – se pode funcionar com mil pessoas não deve ter 1200  –, e fui acusado muitas de ser excessivamente draconiano. Mas eu procurava motivar, estimular e remunerar o melhor possível as pessoas que compunham a empresa. É isto que é desejável que se passe nos sectores em que estão a evidenciar-se os campeões da retoma da nossa economia. O Estado é que está numa situação orçamental que infelizmente não pode tratar muito bem, do ponto de vista remuneratório, as pessoas que estão no Estado. Vai demorar algum tempo, um, dois, três anos, ao cidadão comum, à generalidade dos portugueses, que tiveram de pagar um preço elevadíssimo por este ajustamento, sentirem na sua vida diária os efeitos dessa retoma. Por isso, os discursos de euforia são perigosíssimos porque estão dissociados da vida real das pessoas. A generalidade dos portugueses está a viver pior do que vivia em 2010 e em 2009. Isso é verdade.

O desemprego estrutural não pode ser uma ameaça para que esta retoma económica se reflicta no dia-a-dia dos portugueses.
A situação de maior risco é a das pessoas de maior idade e com poucas qualificações que ficaram desempregadas. Porque não é claro neste processo que, com novas indústrias viradas para a exportação, se crie oportunidade de trabalho para essas pessoas. A mim preocupa-me mais do ponto de vista social essas pessoas do que propriamente os jovens que tiveram de emigrar. Se a retoma for bem sucedida, vamos, de uma forma mais rápida do que se esperava, criar condições para que aqueles que quiserem regressar possam regressar. Mas as pessoas que estavam com emprego numa economia virada para o consumo interno, em funções de trabalho com poucas competências de adaptabilidade, estão a viver o risco de ficar desempregadas durante muito tempo ou até em processos que não têm fim à vista. Este é o principal risco social desta transformação na economia portuguesa. É que os postos de trabalho que se estão a criar são muito diferentes dos que se perderam com esta crise. Como é que se assegura que essas pessoas têm o mínimo de dignidade humana? É algo que deve preocupar o Governo.

Deve ser feito mais nesse sentido?
Estamos muito condicionados pelos recursos que temos para distribuir. O ministro da Segurança Social tem feito um trabalho quase impossível. Andamos a procurar, com uma manta muito pequena, chegar a todos aqueles que acabam por ser os excluídos desta transformação económica. Como foi uma transformação muito rápida, gerou uma vaga de desemprego também muito rápida. Mas acho que essa preocupação tem de ser uma preocupação permanente deste Governo e do próximo.