Obama sempre duvidou da sua estratégia para o Afeganistão, diz antigo chefe do Pentágono
Livro de memórias de Robert Gates acusa Presidente de só estar interessado em pôr fim a à guerra que herdou de Bush e de não confiar nos seus chefes militares.
Duty: Memoirs of a Secretary at War (Dever: Memórias de um Secretário na Guerra) não é o primeiro livro a revelar as profundas divergências entre a Casa Branca e a equipa de Segurança Nacional sobre a condução das guerras no Iraque ou no Afeganistão. Mas é o primeiro sobre Obama a ser escrito por alguém que integrou a sua Administração e as críticas são de uma dureza pouco habitual em relação a um Presidente ainda em exercício.
Um inédito que é ainda mais estranho por partir de Gates, um republicano moderado que trabalhou para quase todos os Presidentes desde Richard Nixon e que fez da contenção a sua imagem de marca, escreveu no Washington Post o jornalista Bob Woodward, autor de Obama’s Wars, livro que ainda em 2010 revelou as lutas de bastidores que antecederam a decisão de Obama de aumentar para mais de cem mil o número de soldados americanos no Afeganistão.
No livro que chega as bancas na terça-feira (e que o Washington Post e o New York Times tiveram acesso antecipado) Gates escreve que, logo no início de 2010, começou a duvidar dos efeitos práticos desse reforço. Ele “estava céptico se não completamente convencido de que iria falhar”, afirma, naquilo que Woodward descreve como “uma das mais graves acusações que um secretário da Defesa pode fazer contra um comandante-em-chefe que envia as suas forças para o combate”.
Gates, que chegou ao Pentágono em 2006 para salvar a Administração Bush da iminência do desastre militar na guerra do Iraque, apoiou desde o início o pedido de mais homens feito pelo general Stanley McCrystal, então comandante das forças dos EUA e da NATO no Afeganistão. O Iraque retirara atenções e meios à guerra afegã, os taliban estavam a ganhar terreno e o Presidente Hamid Karzai, recém-eleito em eleições fraudulentas, não conseguia impor a sua autoridade muito para lá de Cabul. Num discurso na Academia de West Point, a 30 de Novembro de 2009, Obama deu o seu aval ao reforço com o objectivo de “atacar a rebelião, garantir a segurança das cidades”, acelerar o treino das forças afegãs e, com isso, criar condições para o início de uma retirada faseada no período de 18 meses.
Gates escreve agora que a decisão foi menos convicta do que Obama terá feito crer. “O seu problema fundamental com o Afeganistão era que a suas preferências políticas e filosóficas para a diminuição do papel dos EUA eram contraditórias com a sua retórica pública a favor da guerra, com as recomendações quase unânimes dos seus conselheiros políticos e militares e com a realidade no terreno.” O ex-secretário da Defesa diz que o debate interno na Casa Branca não teve impacto negativo nas operações – permitiu até uma “limitação benéfica dos objectivos e ambições” da missão – mas fez com que, a cada revés, muitos membros do staff de Obama “concluíssem que a estratégia do Presidente era um fracasso e deveria ser revertida”. “Nunca duvidei do apoio de Obama às tropas, apenas do seu apoio à missão.”
A este propósito, Gates recorda a irritação que sentiu quando, num reunião em Março de 2011, Obama atacou David Petraeus, que substituíra McCrystal no comando das operações, por o general ter dito na imprensa que discordava da existência de uma data para o início da retirada. “Ali sentado pensei: ‘o Presidente não confia no seu comandante, não suporta Karzai, não acredita na sua estratégia e não considera esta uma guerra sua. Para ele, a única coisa que interessa é a retirada’”.
Críticas e elogios
Revelações que vão alimentar as críticas à política externa de Obama – numa altura em que Washington tarda em convencer Karzai a assinar um acordo bilateral de segurança e que regressaram os combates entre xiitas e sunitas no Iraque –, mas que acabam por se revelar contraditórias com o veredicto do livro sobre a estratégia afegã do Presidente. “Acredito que Obama esteve certo em cada uma destas decisões”, escreve Gates, que admite ter-se enganado quando o desaconselhou a lançar o raide que acabaria por resultar na morte de Osama bin Laden – “uma das decisões mais corajosas que já testemunhei na Casa Branca”.
A primeira metade das quase 600 páginas de Duty é dedicada aos anos de Bush, mas as críticas que faz ao ex-Presidente, sobretudo pela forma como lançou e conduziu a guerra no Iraque, desvanecem-se quando comparadas com as que tece à actual Administração. A Casa Branca de Obama, diz, “suspeita e desconfia dos comandantes militares” e o próprio Presidente “está determinado em manter sob apertado controlo todos os aspectos da política de segurança nacional”.
Gates chega a descrever momentos em que se sentiu “extremamente zangado com o Presidente”, como quando em 2010 lhe comunicou que iria propor no dia seguinte, e sem esperar pelo fim do debate interno, o fim da política de Don’t Ask, Don’t Tell que previa a expulsão de militares que assumissem a sua homossexualidade. “Senti que os acordos com a Casa Branca de Obama só valiam enquanto fossem politicamente convenientes”.
Mas se há palavras de elogio para Obama – que descreve como um “homem íntegro” e um “pensador rigoroso” –, Gates mostra-se mais severo com a equipa do Presidente, a começar pelo vice-Presidente, aquele que mais se bateu contra o envio de mais soldados para o Afeganistão. Foi Joe Biden “quem envenenou as águas do poço” contra as chefias militares. “Penso que ele esteve errado em quase todos os grandes assuntos de política externa e segurança nacional nas últimas quatro décadas”, escreve. Em contrapartida, Gates tece rasgados elogios a Hillary Clinton, uma secretária de Estado “notável”, uma mulher “inteligente, idealista mas pragmática, determinada”.
Numa primeira reacção à antecipação do livro, a Casa Branca viu-se obrigada a sair em defesa do vice-presidente – “Biden é um dos melhores estadistas do nosso tempo” e o Presidente “confia diariamente nos seus conselhos” –, mas fez saber que não pretende entrar em polémicas. Em comunicado, a porta-voz do Conselho de Segurança Nacional diz que o Presidente “aprecia as visões diferentes no seio da sua equipa de defesa nacional”, mas “mantém-se empenhado como sempre na missão para derrotar a Al-Qaeda e garantir que os EUA têm um plano claro para o fim da guerra” no Afeganistão.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Duty: Memoirs of a Secretary at War (Dever: Memórias de um Secretário na Guerra) não é o primeiro livro a revelar as profundas divergências entre a Casa Branca e a equipa de Segurança Nacional sobre a condução das guerras no Iraque ou no Afeganistão. Mas é o primeiro sobre Obama a ser escrito por alguém que integrou a sua Administração e as críticas são de uma dureza pouco habitual em relação a um Presidente ainda em exercício.
Um inédito que é ainda mais estranho por partir de Gates, um republicano moderado que trabalhou para quase todos os Presidentes desde Richard Nixon e que fez da contenção a sua imagem de marca, escreveu no Washington Post o jornalista Bob Woodward, autor de Obama’s Wars, livro que ainda em 2010 revelou as lutas de bastidores que antecederam a decisão de Obama de aumentar para mais de cem mil o número de soldados americanos no Afeganistão.
No livro que chega as bancas na terça-feira (e que o Washington Post e o New York Times tiveram acesso antecipado) Gates escreve que, logo no início de 2010, começou a duvidar dos efeitos práticos desse reforço. Ele “estava céptico se não completamente convencido de que iria falhar”, afirma, naquilo que Woodward descreve como “uma das mais graves acusações que um secretário da Defesa pode fazer contra um comandante-em-chefe que envia as suas forças para o combate”.
Gates, que chegou ao Pentágono em 2006 para salvar a Administração Bush da iminência do desastre militar na guerra do Iraque, apoiou desde o início o pedido de mais homens feito pelo general Stanley McCrystal, então comandante das forças dos EUA e da NATO no Afeganistão. O Iraque retirara atenções e meios à guerra afegã, os taliban estavam a ganhar terreno e o Presidente Hamid Karzai, recém-eleito em eleições fraudulentas, não conseguia impor a sua autoridade muito para lá de Cabul. Num discurso na Academia de West Point, a 30 de Novembro de 2009, Obama deu o seu aval ao reforço com o objectivo de “atacar a rebelião, garantir a segurança das cidades”, acelerar o treino das forças afegãs e, com isso, criar condições para o início de uma retirada faseada no período de 18 meses.
Gates escreve agora que a decisão foi menos convicta do que Obama terá feito crer. “O seu problema fundamental com o Afeganistão era que a suas preferências políticas e filosóficas para a diminuição do papel dos EUA eram contraditórias com a sua retórica pública a favor da guerra, com as recomendações quase unânimes dos seus conselheiros políticos e militares e com a realidade no terreno.” O ex-secretário da Defesa diz que o debate interno na Casa Branca não teve impacto negativo nas operações – permitiu até uma “limitação benéfica dos objectivos e ambições” da missão – mas fez com que, a cada revés, muitos membros do staff de Obama “concluíssem que a estratégia do Presidente era um fracasso e deveria ser revertida”. “Nunca duvidei do apoio de Obama às tropas, apenas do seu apoio à missão.”
A este propósito, Gates recorda a irritação que sentiu quando, num reunião em Março de 2011, Obama atacou David Petraeus, que substituíra McCrystal no comando das operações, por o general ter dito na imprensa que discordava da existência de uma data para o início da retirada. “Ali sentado pensei: ‘o Presidente não confia no seu comandante, não suporta Karzai, não acredita na sua estratégia e não considera esta uma guerra sua. Para ele, a única coisa que interessa é a retirada’”.
Críticas e elogios
Revelações que vão alimentar as críticas à política externa de Obama – numa altura em que Washington tarda em convencer Karzai a assinar um acordo bilateral de segurança e que regressaram os combates entre xiitas e sunitas no Iraque –, mas que acabam por se revelar contraditórias com o veredicto do livro sobre a estratégia afegã do Presidente. “Acredito que Obama esteve certo em cada uma destas decisões”, escreve Gates, que admite ter-se enganado quando o desaconselhou a lançar o raide que acabaria por resultar na morte de Osama bin Laden – “uma das decisões mais corajosas que já testemunhei na Casa Branca”.
A primeira metade das quase 600 páginas de Duty é dedicada aos anos de Bush, mas as críticas que faz ao ex-Presidente, sobretudo pela forma como lançou e conduziu a guerra no Iraque, desvanecem-se quando comparadas com as que tece à actual Administração. A Casa Branca de Obama, diz, “suspeita e desconfia dos comandantes militares” e o próprio Presidente “está determinado em manter sob apertado controlo todos os aspectos da política de segurança nacional”.
Gates chega a descrever momentos em que se sentiu “extremamente zangado com o Presidente”, como quando em 2010 lhe comunicou que iria propor no dia seguinte, e sem esperar pelo fim do debate interno, o fim da política de Don’t Ask, Don’t Tell que previa a expulsão de militares que assumissem a sua homossexualidade. “Senti que os acordos com a Casa Branca de Obama só valiam enquanto fossem politicamente convenientes”.
Mas se há palavras de elogio para Obama – que descreve como um “homem íntegro” e um “pensador rigoroso” –, Gates mostra-se mais severo com a equipa do Presidente, a começar pelo vice-Presidente, aquele que mais se bateu contra o envio de mais soldados para o Afeganistão. Foi Joe Biden “quem envenenou as águas do poço” contra as chefias militares. “Penso que ele esteve errado em quase todos os grandes assuntos de política externa e segurança nacional nas últimas quatro décadas”, escreve. Em contrapartida, Gates tece rasgados elogios a Hillary Clinton, uma secretária de Estado “notável”, uma mulher “inteligente, idealista mas pragmática, determinada”.
Numa primeira reacção à antecipação do livro, a Casa Branca viu-se obrigada a sair em defesa do vice-presidente – “Biden é um dos melhores estadistas do nosso tempo” e o Presidente “confia diariamente nos seus conselhos” –, mas fez saber que não pretende entrar em polémicas. Em comunicado, a porta-voz do Conselho de Segurança Nacional diz que o Presidente “aprecia as visões diferentes no seio da sua equipa de defesa nacional”, mas “mantém-se empenhado como sempre na missão para derrotar a Al-Qaeda e garantir que os EUA têm um plano claro para o fim da guerra” no Afeganistão.