A plenitude e o infinito
A 22 de Novembro de 1963, a notícia do assassinato do presidente John F. Kennedy tomou a imprensa de assalto, açambarcando as atenções do mundo inteiro. Por essa razão, a morte de Aldous Huxley, ocorrida no mesmo dia, passou quase despercebida. Huxley, nascido em Inglaterra em 1894, vivia na Califórnia, para onde se mudara em 1937, depois de estadas em França e Itália, onde escreveu parte da sua obra de ficção. Nessa manhã, deslizou para a inconsciência depois de a mulher, Laura, lhe ter injectado, a seu pedido, cem microgramas de LSD, pondo fim a um longo sofrimento causado por um cancro na laringe.
O autor do clássico Admirável Mundo Novo (1932) conhecia bem os efeitos das drogas que consumia regularmente, desde os anos 30. Os seus biógrafos referem um jantar em Berlim, em Outubro de 1930, em que Huxley conheceu o ocultista Aleister Crowley — sim, o mesmo que impressionou Fernando Pessoa —, o qual supostamente o iniciou no consumo de peiote, utilizado em certas culturas para celebrações religiosas. Mas foi em Maio de 1953 que o psiquiatra Humphry Osmond lhe aconselhou a mescalina e, mais tarde, o LSD. A tomada da primeira dose deste ácido, a 24 Dezembro de 1955, foi deliberadamente experimental e cuidadosamente documentada, gravada em áudio e filmada, dando origem aos textos em que Huxley dá conta dos resultados da sua investigação, cuja finalidade era a abertura de novas e inimagináveis vias do conhecimento.
Esta nova edição de As Portas da Percepção contém, para além das observações de Huxley relativas à sua experiência mais íntima, o ensaio complementar O Céu e o Inferno e oito apêndices em que o escritor reflecte, entre outros temas, sobre a importância da prática de exercícios respiratórios de ioga, do canto e da meditação, a variação de estímulos para a mente, o poder político do fausto como forma de “deslumbrar” as massas, a interferência da tecnologia moderna como forma de banalização da vida quotidiana, a luz na pintura de Georges de La Tour, a função encantatória das obras de Van Gogh, Vuillard, Delacroix e Géricault, a visão dos esquizofrénicos e a ironia de Thomas Carlyle quando refere a especificidade robótica dos seres humanos. Huxley explora, ainda, o vasto território que se esconde nos recônditos da nossa mente e do qual nos alheamos a todo o instante, e tece considerações em torno da solidão de que todos padecemos, uma vez que “a mente é um lugar de características únicas”.
Ao ingerir LSD, Huxley esperava ter visões semelhantes às dos místicos, mas o que aconteceu foi bem diferente. A sua percepção do mundo agudizou-se, enquanto o seu “eu” transitava para o que ele chamou de “os antípodas da mente”. Comparando a sua experiência à dos artistas no momento da criação, verificou com espanto o esplendor dos objectos — as pernas de uma cadeira, o drapejar do tecido das suas calças, as cores flamejantes das flores, os livros nas estantes “cravejados de jóias” —, o desinteresse pela interacção com os outros seres humanos e uma libertação exaltante.
Huxley foi um escritor eficiente, um homem corajoso e nada convencional, um dos mais brilhantes intelectuais do seu tempo, um humanista veemente e um pacifista convicto — escreveu uma Enciclopédia do Pacifismo e um ensaio sobre Pacifismo e Filosofia. Oriundo de uma família de notáveis cientistas e pensadores, frequentou assiduamente Garsington Manor, a célebre casa de Lady Ottoline Morrell onde se juntavam os membros do Bloomsbury Group, que Huxley não se coibiu de ridicularizar no seu romance Crome Yellow (1921). Acompanhou de perto e analisou a evolução dos países e das sociedades que emergiram da Segunda Guerra Mundial e a forma como se debatiam com grandes dificuldades. A ameaça nuclear e a Guerra Fria alimentavam todas as paranóias e o rescaldo da acção de tiranos como Hitler e Estaline não podia ser mais devastador. As experiências com alucinogénios, as visões de outros mundos e as antevisões apocalípticas tomaram conta da imaginação de uma geração de autores: H.G. Wells (1866-1946), George Orwell (1903-1950), William Golding (1911-1993) e Ray Bradbury (1920-2011) tinham presenciado (e nalguns casos vivido) o caos e a descida aos infernos. Perante a descrença na raça humana, apressaram-se a relatar o tenebroso estilhaçar de utopias morais, sociais e políticas e a revelar a paisagem desolada de um mundo vazio de sentimentos e triturado por máquinas, um mundo cuja única salvação estaria num universo alternativo (noutro “eu” ou noutra galáxia) ou numa ciência dirigida para o ser humano que abriria as “portas da percepção”, termo roubado ao poeta William Blake e contido nas páginas dessa obra-prima que é O Casamento do Céu e do Inferno (1790).
Nos últimos anos da sua vida, Huxley dedicou-se à parapsicologia e ao misticismo filosófico, participando activamente nos movimentos da contracultura nos Estados Unidos, que incluíam a paixão pela banda desenhada, pela ficção científica e pelo consumo experimental de drogas, acompanhando os avanços tecnológicos, a corrida espacial e outras experiências médicas cada vez mais audazes. O homem que disse que a felicidade é como a cocaína — “algo que se consome como um produto auxiliar enquanto se faz outra coisa” — nunca parou de analisar, de procurar, de dar-nos conta das suas visões e iluminações.
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A 22 de Novembro de 1963, a notícia do assassinato do presidente John F. Kennedy tomou a imprensa de assalto, açambarcando as atenções do mundo inteiro. Por essa razão, a morte de Aldous Huxley, ocorrida no mesmo dia, passou quase despercebida. Huxley, nascido em Inglaterra em 1894, vivia na Califórnia, para onde se mudara em 1937, depois de estadas em França e Itália, onde escreveu parte da sua obra de ficção. Nessa manhã, deslizou para a inconsciência depois de a mulher, Laura, lhe ter injectado, a seu pedido, cem microgramas de LSD, pondo fim a um longo sofrimento causado por um cancro na laringe.
O autor do clássico Admirável Mundo Novo (1932) conhecia bem os efeitos das drogas que consumia regularmente, desde os anos 30. Os seus biógrafos referem um jantar em Berlim, em Outubro de 1930, em que Huxley conheceu o ocultista Aleister Crowley — sim, o mesmo que impressionou Fernando Pessoa —, o qual supostamente o iniciou no consumo de peiote, utilizado em certas culturas para celebrações religiosas. Mas foi em Maio de 1953 que o psiquiatra Humphry Osmond lhe aconselhou a mescalina e, mais tarde, o LSD. A tomada da primeira dose deste ácido, a 24 Dezembro de 1955, foi deliberadamente experimental e cuidadosamente documentada, gravada em áudio e filmada, dando origem aos textos em que Huxley dá conta dos resultados da sua investigação, cuja finalidade era a abertura de novas e inimagináveis vias do conhecimento.
Esta nova edição de As Portas da Percepção contém, para além das observações de Huxley relativas à sua experiência mais íntima, o ensaio complementar O Céu e o Inferno e oito apêndices em que o escritor reflecte, entre outros temas, sobre a importância da prática de exercícios respiratórios de ioga, do canto e da meditação, a variação de estímulos para a mente, o poder político do fausto como forma de “deslumbrar” as massas, a interferência da tecnologia moderna como forma de banalização da vida quotidiana, a luz na pintura de Georges de La Tour, a função encantatória das obras de Van Gogh, Vuillard, Delacroix e Géricault, a visão dos esquizofrénicos e a ironia de Thomas Carlyle quando refere a especificidade robótica dos seres humanos. Huxley explora, ainda, o vasto território que se esconde nos recônditos da nossa mente e do qual nos alheamos a todo o instante, e tece considerações em torno da solidão de que todos padecemos, uma vez que “a mente é um lugar de características únicas”.
Ao ingerir LSD, Huxley esperava ter visões semelhantes às dos místicos, mas o que aconteceu foi bem diferente. A sua percepção do mundo agudizou-se, enquanto o seu “eu” transitava para o que ele chamou de “os antípodas da mente”. Comparando a sua experiência à dos artistas no momento da criação, verificou com espanto o esplendor dos objectos — as pernas de uma cadeira, o drapejar do tecido das suas calças, as cores flamejantes das flores, os livros nas estantes “cravejados de jóias” —, o desinteresse pela interacção com os outros seres humanos e uma libertação exaltante.
Huxley foi um escritor eficiente, um homem corajoso e nada convencional, um dos mais brilhantes intelectuais do seu tempo, um humanista veemente e um pacifista convicto — escreveu uma Enciclopédia do Pacifismo e um ensaio sobre Pacifismo e Filosofia. Oriundo de uma família de notáveis cientistas e pensadores, frequentou assiduamente Garsington Manor, a célebre casa de Lady Ottoline Morrell onde se juntavam os membros do Bloomsbury Group, que Huxley não se coibiu de ridicularizar no seu romance Crome Yellow (1921). Acompanhou de perto e analisou a evolução dos países e das sociedades que emergiram da Segunda Guerra Mundial e a forma como se debatiam com grandes dificuldades. A ameaça nuclear e a Guerra Fria alimentavam todas as paranóias e o rescaldo da acção de tiranos como Hitler e Estaline não podia ser mais devastador. As experiências com alucinogénios, as visões de outros mundos e as antevisões apocalípticas tomaram conta da imaginação de uma geração de autores: H.G. Wells (1866-1946), George Orwell (1903-1950), William Golding (1911-1993) e Ray Bradbury (1920-2011) tinham presenciado (e nalguns casos vivido) o caos e a descida aos infernos. Perante a descrença na raça humana, apressaram-se a relatar o tenebroso estilhaçar de utopias morais, sociais e políticas e a revelar a paisagem desolada de um mundo vazio de sentimentos e triturado por máquinas, um mundo cuja única salvação estaria num universo alternativo (noutro “eu” ou noutra galáxia) ou numa ciência dirigida para o ser humano que abriria as “portas da percepção”, termo roubado ao poeta William Blake e contido nas páginas dessa obra-prima que é O Casamento do Céu e do Inferno (1790).
Nos últimos anos da sua vida, Huxley dedicou-se à parapsicologia e ao misticismo filosófico, participando activamente nos movimentos da contracultura nos Estados Unidos, que incluíam a paixão pela banda desenhada, pela ficção científica e pelo consumo experimental de drogas, acompanhando os avanços tecnológicos, a corrida espacial e outras experiências médicas cada vez mais audazes. O homem que disse que a felicidade é como a cocaína — “algo que se consome como um produto auxiliar enquanto se faz outra coisa” — nunca parou de analisar, de procurar, de dar-nos conta das suas visões e iluminações.