A Idade Heróica da Exploração Antárctica em fotos perdidas há um século

Negativos encontrados num bloco de gelo reportam-se à expedição de Ernest Shackleton, decorrida entre 1914 e 1917.

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A foto com Alexander Stevens estava entre os 22 negativos em nitrato de celulose recuperados pelo Antarctic Heritage Trust, com sede em Christchurch, Nova Zelândia. Foram encontrados num bloco de gelo no interior da câmara escura criada num abrigo construído pelos exploradores da Antárctida no início do século XX. Descobertas no início de 2013, foram restauradas num processo meticuloso que se prolongou por quase um ano. Ei-las agora reveladas ao mundo, novo tesouro de uma cápsula do tempo conservada nos gelos do Pólo Sul. De acordo com o Antarctic Heritage Trust, o abrigo preserva 10 mil objectos de um tempo que parece hoje incrivelmente distante – mas muito semelhante em alguns aspectos: há três anos, foram ali descobertas três caixas de whisky escocês, e algumas garrafas mantinham ainda intacto o precioso líquido.

Com uma dimensão de 15x7,7 metros, o abrigo foi construído num dos locais mais inóspitos do planeta, no cabo Evans, ilha de Ross, na Antárctida. Foi construído precisamente para tornar um pouco menos inóspita a estadia daqueles que, durante a chamada "Idade Heróica da Exploração Antárctica", na passagem do século XIX para o século XX, se lançaram em expedições para conhecer e cartografar, enfim para vencer, o gigante continente gelado e assim cobrir de glória o seu nome e o do seu país. Um dos mais famosos, o inglês Robert Falcon Scott, perderia a corrida ao Pólo Sul (o norueguês Roald Amundsen, que o atingiu a 14 de Dezembro de 1911, venceu-o por 33 dias) e perderia também a vida, juntamente com os quatro homens que o acompanhavam na viagem de regresso à base, devido a uma combinação letal de exaustão, fome e frio intenso. Foi sob o seu comando que o abrigo, pré-fabricado em Inglaterra, foi erigido na ilha de Ross em 1911. E foi do abrigo que Scott partiu à conquista do Pólo Sul no desafio que lhe custaria a vida. Três anos depois, o rival britânico de Scott, o irlandês Ernest Shackleton, um dos maiores aventureiros do período, usaria o abrigo para acolher parte dos envolvidos numa das mais célebres expedições à Antárctica, aquela em que foram registados os negativos descobertos em 2013.

O Pólo Sul já havia sido alcançado. Shackleton chegara bem perto, anos antes, mas desistira, quando se tornou evidente que continuar seria fatal para si e para os homens que liderava. Porém, faltava ainda um desafio. A travessia da Antárctida. Foi com essa missão que Ernest Shackleton se lançou na aventura baptizada como "Expedição Imperial Transantárctica". Tendo em conta os propósitos iniciais, a expedição foi um rotundo fracasso. Considerando todas as peripécias que os envolvidos viveram e o heroísmo que revelaram, foi um jornada épica, iniciada na alvorada da I Grande Guerra, e que figura até hoje na História do século XX.

O plano de Shackleton consistia em navegar no navio Endurance até ao mar de Weddell, na costa atlântica, durante o Inverno, iniciando a travessia por terra na Primavera. Uma segunda equipa estaria no mar de Ross, nas proximidades do cabo Evans, na costa do Pacífico, a partir de onde iria depositando alimentação e outros bens essenciais para que a equipa de Shackleton completasse com sucesso a travessia. Acontece que o Endurance acabaria por ficar preso no gelo, sendo esmagado pela pressão do mesmo. E acontece que, no outro extremo da Antárctida, o Aurora, o navio da segunda equipa, que serviria de base de apoio, viu a âncora destruída numa tempestade e afastou-se para alto mar com a maioria dos mantimentos. Estávamos em Janeiro de 1915.

Sem possibilidades de comunicação, a equipa de dez homens que ficara para trás aquando do desastre do Aurora (aquela cuja actividade foi registada nas fotos agora descobertas, presumivelmente da autoria do capelão da expedição, fotógrafo amador, Arnold Spencer-Smith) continuou o trabalho como planeado, racionando os seus mantimentos de forma a, como planeado, depositar nos locais combinados os indispensáveis à sobrevivência de Shackleton e da sua equipa de 28 homens. No decorrer desse trabalho, três deles acabariam por morrer (incluindo o fotógrafo Spencer-Smith). Ernest Shackleton, por sua vez, vivia outro drama – e nunca chegaria a necessitar dos mantimentos que, com tanto sacrifício, a outra equipa fora depositando no terreno.

Com a destruição do Endurance, Shackleton e a restante equipa acamparam no gelo. Quando a placa de gelo se quebrou, embarcaram nos salva-vidas e enfrentaram tempestades e um oceano temível durante cinco dias, até atracarem em Elephant Island. O que se seguiu tornaria Shackleton, então já um herói nacional no Reino Unido por expedições anteriores, num verdadeiro mito. Elephant Island, inóspita e distante de quaisquer rotas de navegação, teria de ser abandonada. Usando o maior dos salva-vidas disponíveis, reforçado pelo carpinteiro da expedição, Shackleton lançar-se-ia com cinco companheiros numa viagem até às estações baleeiras de South Georgia, a cerca de 1500 quilómetros de distância. Estávamos a 24 de Abril de 1916.

Que 15 dias depois tenham conseguido chegar a South Georgia é, só por si, um feito. Mas a aventura não acabou aqui. Um furacão impossibilitou a atracagem. Fugindo à tempestade, Shackleton e os restantes acabaram por desembarcar em terras bem mais distantes do que desejariam das estações baleeiras. Contra o receio de enfrentar o mar novamente, o explorador decidiu tentar a sua sorte por terra. Com dois companheiros, demorou 36 horas a percorrer 51 quilómetros de terreno montanhoso gelado sob condições atmosféricas naturalmente adversas, seguindo uma rota nunca tentada até então (e apenas repetida em 1955).

A partir de South Georgia, organizou o resgate dos companheiros deixados nas proximidades e dos 22 que havia quatro meses e meio permaneciam em Elephant Island. Quanto àqueles presos no abrigo de Scott, seriam salvos pelo Aurora, recuperado por Shackleton na Nova Zelândia, onde conseguira atracar depois de lutar durante meses para se libertar do gelo em Discovery Bay. Os sete sobreviventes só abandonariam as terras inóspitas documentadas nas fotos agora reveladas ao público dois anos depois de verem o Aurora desaparecer na tempestade.

Eugene Shackleton morreria de ataque cardíaco a 5 de Janeiro de 1922, no início de uma nova expedição à Antárctida. O cientista Alexander Stevens, que morreria perto dos 80 anos em 1965, reapareceu agora, um século depois de ter sido fotografado entre a imponente paisagem inóspita do continente gelado.

Que pensariam eles do salvamento por helicóptero desta quinta-feira dos passageiros a bordo do navio russo Akademik Shokalsky, presos desde a véspera de Natal naquela mesma latitude? Que a evolução tecnológica tornou o mundo mais pequeno e deu ao Homem mais protecção perante as forças da natureza. Pensariam também no tanto que mudou desde essa Idade Heróica da Exploração Antárctica – que terminou precisamente com aquela expedição –em que homens de várias nacionalidades (houve expedições britânicas, norueguesas, francesas, alemãs, belgas ou japonesas) arriscavam a vida num misto de espírito de missão, fervor patriota anterior ao pesadelo da I Guerra Mundial, sede de aventura e desejo de expandir as fronteiras do conhecimento humano. As fotos recuperadas e agora divulgadas são um retrato desse tempo e desses homens.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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A foto com Alexander Stevens estava entre os 22 negativos em nitrato de celulose recuperados pelo Antarctic Heritage Trust, com sede em Christchurch, Nova Zelândia. Foram encontrados num bloco de gelo no interior da câmara escura criada num abrigo construído pelos exploradores da Antárctida no início do século XX. Descobertas no início de 2013, foram restauradas num processo meticuloso que se prolongou por quase um ano. Ei-las agora reveladas ao mundo, novo tesouro de uma cápsula do tempo conservada nos gelos do Pólo Sul. De acordo com o Antarctic Heritage Trust, o abrigo preserva 10 mil objectos de um tempo que parece hoje incrivelmente distante – mas muito semelhante em alguns aspectos: há três anos, foram ali descobertas três caixas de whisky escocês, e algumas garrafas mantinham ainda intacto o precioso líquido.

Com uma dimensão de 15x7,7 metros, o abrigo foi construído num dos locais mais inóspitos do planeta, no cabo Evans, ilha de Ross, na Antárctida. Foi construído precisamente para tornar um pouco menos inóspita a estadia daqueles que, durante a chamada "Idade Heróica da Exploração Antárctica", na passagem do século XIX para o século XX, se lançaram em expedições para conhecer e cartografar, enfim para vencer, o gigante continente gelado e assim cobrir de glória o seu nome e o do seu país. Um dos mais famosos, o inglês Robert Falcon Scott, perderia a corrida ao Pólo Sul (o norueguês Roald Amundsen, que o atingiu a 14 de Dezembro de 1911, venceu-o por 33 dias) e perderia também a vida, juntamente com os quatro homens que o acompanhavam na viagem de regresso à base, devido a uma combinação letal de exaustão, fome e frio intenso. Foi sob o seu comando que o abrigo, pré-fabricado em Inglaterra, foi erigido na ilha de Ross em 1911. E foi do abrigo que Scott partiu à conquista do Pólo Sul no desafio que lhe custaria a vida. Três anos depois, o rival britânico de Scott, o irlandês Ernest Shackleton, um dos maiores aventureiros do período, usaria o abrigo para acolher parte dos envolvidos numa das mais célebres expedições à Antárctica, aquela em que foram registados os negativos descobertos em 2013.

O Pólo Sul já havia sido alcançado. Shackleton chegara bem perto, anos antes, mas desistira, quando se tornou evidente que continuar seria fatal para si e para os homens que liderava. Porém, faltava ainda um desafio. A travessia da Antárctida. Foi com essa missão que Ernest Shackleton se lançou na aventura baptizada como "Expedição Imperial Transantárctica". Tendo em conta os propósitos iniciais, a expedição foi um rotundo fracasso. Considerando todas as peripécias que os envolvidos viveram e o heroísmo que revelaram, foi um jornada épica, iniciada na alvorada da I Grande Guerra, e que figura até hoje na História do século XX.

O plano de Shackleton consistia em navegar no navio Endurance até ao mar de Weddell, na costa atlântica, durante o Inverno, iniciando a travessia por terra na Primavera. Uma segunda equipa estaria no mar de Ross, nas proximidades do cabo Evans, na costa do Pacífico, a partir de onde iria depositando alimentação e outros bens essenciais para que a equipa de Shackleton completasse com sucesso a travessia. Acontece que o Endurance acabaria por ficar preso no gelo, sendo esmagado pela pressão do mesmo. E acontece que, no outro extremo da Antárctida, o Aurora, o navio da segunda equipa, que serviria de base de apoio, viu a âncora destruída numa tempestade e afastou-se para alto mar com a maioria dos mantimentos. Estávamos em Janeiro de 1915.

Sem possibilidades de comunicação, a equipa de dez homens que ficara para trás aquando do desastre do Aurora (aquela cuja actividade foi registada nas fotos agora descobertas, presumivelmente da autoria do capelão da expedição, fotógrafo amador, Arnold Spencer-Smith) continuou o trabalho como planeado, racionando os seus mantimentos de forma a, como planeado, depositar nos locais combinados os indispensáveis à sobrevivência de Shackleton e da sua equipa de 28 homens. No decorrer desse trabalho, três deles acabariam por morrer (incluindo o fotógrafo Spencer-Smith). Ernest Shackleton, por sua vez, vivia outro drama – e nunca chegaria a necessitar dos mantimentos que, com tanto sacrifício, a outra equipa fora depositando no terreno.

Com a destruição do Endurance, Shackleton e a restante equipa acamparam no gelo. Quando a placa de gelo se quebrou, embarcaram nos salva-vidas e enfrentaram tempestades e um oceano temível durante cinco dias, até atracarem em Elephant Island. O que se seguiu tornaria Shackleton, então já um herói nacional no Reino Unido por expedições anteriores, num verdadeiro mito. Elephant Island, inóspita e distante de quaisquer rotas de navegação, teria de ser abandonada. Usando o maior dos salva-vidas disponíveis, reforçado pelo carpinteiro da expedição, Shackleton lançar-se-ia com cinco companheiros numa viagem até às estações baleeiras de South Georgia, a cerca de 1500 quilómetros de distância. Estávamos a 24 de Abril de 1916.

Que 15 dias depois tenham conseguido chegar a South Georgia é, só por si, um feito. Mas a aventura não acabou aqui. Um furacão impossibilitou a atracagem. Fugindo à tempestade, Shackleton e os restantes acabaram por desembarcar em terras bem mais distantes do que desejariam das estações baleeiras. Contra o receio de enfrentar o mar novamente, o explorador decidiu tentar a sua sorte por terra. Com dois companheiros, demorou 36 horas a percorrer 51 quilómetros de terreno montanhoso gelado sob condições atmosféricas naturalmente adversas, seguindo uma rota nunca tentada até então (e apenas repetida em 1955).

A partir de South Georgia, organizou o resgate dos companheiros deixados nas proximidades e dos 22 que havia quatro meses e meio permaneciam em Elephant Island. Quanto àqueles presos no abrigo de Scott, seriam salvos pelo Aurora, recuperado por Shackleton na Nova Zelândia, onde conseguira atracar depois de lutar durante meses para se libertar do gelo em Discovery Bay. Os sete sobreviventes só abandonariam as terras inóspitas documentadas nas fotos agora reveladas ao público dois anos depois de verem o Aurora desaparecer na tempestade.

Eugene Shackleton morreria de ataque cardíaco a 5 de Janeiro de 1922, no início de uma nova expedição à Antárctida. O cientista Alexander Stevens, que morreria perto dos 80 anos em 1965, reapareceu agora, um século depois de ter sido fotografado entre a imponente paisagem inóspita do continente gelado.

Que pensariam eles do salvamento por helicóptero desta quinta-feira dos passageiros a bordo do navio russo Akademik Shokalsky, presos desde a véspera de Natal naquela mesma latitude? Que a evolução tecnológica tornou o mundo mais pequeno e deu ao Homem mais protecção perante as forças da natureza. Pensariam também no tanto que mudou desde essa Idade Heróica da Exploração Antárctica – que terminou precisamente com aquela expedição –em que homens de várias nacionalidades (houve expedições britânicas, norueguesas, francesas, alemãs, belgas ou japonesas) arriscavam a vida num misto de espírito de missão, fervor patriota anterior ao pesadelo da I Guerra Mundial, sede de aventura e desejo de expandir as fronteiras do conhecimento humano. As fotos recuperadas e agora divulgadas são um retrato desse tempo e desses homens.