Vidas mal contadas
O Bairro Amélia não existe. Ou melhor, existe. Começou na imaginação de Bruno Vieira Amaral, passou a ser o bairro do seu primeiro romance, As Primeiras Coisas (Quetzal), e agora existe na cabeça dos leitores. Apesar de ser um bairro inventado, o escritor, que nasceu em 1978, inspirou-se no bairro onde cresceu: o Vale da Amoreira, no concelho da Moita, distrito de Setúbal.
É um bairro feito pelas pessoas que o ocuparam: retornados vindos de África e habitantes de bairros de lata de Lisboa. “Estavam à espera de ser realojados e ouviram dizer que naquele bairro havia casas para ocupar e foram para lá”, conta o escritor ao Ípsilon. Essa é a história do local; as histórias das personagens do livro foi ele que inventou, ou que foi buscar a notícias de jornais. Daí que não se possa dizer que As Primeiras Coisas é um relato do bairro em que Bruno Vieira Amaral cresceu.
Mas o Vale da Amoreira e o Bairro Amélia têm uma história comum: “Eram lugares que não existiam [antes de serem habitados], mesmo quando estavam rodeados de povoações muito antigas. Aqueles prédios foram construídos, em alguns casos até com outros objectivos, e de repente, em 1975, o bairro nasceu porque as pessoas ocuparam as casas”, explica. O escritor — que é licenciado em História pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, trabalha na editora Quetzal e é também crítico literário, tradutor e autor de Guia para 50 personagens da Ficção Portuguesa (Guerra & Paz) — achou que este era “um fenómeno sociológico curioso”, com “um enorme potencial literário”: “Casas ocupadas de um dia para o outro, por pessoas que caíram ali como podiam ter caído num outro sítio qualquer.”
Ao mesmo tempo, Bruno quis reflectir sobre como cada pessoa encarava a chegada àquele lugar. “Para muitas pessoas, ir viver para aquele bairro não era o inferno: era subir na vida. Finalmente tinham uma casa com paredes e com janelas. E para outras era mais do que um purgatório, era mesmo um inferno. O fim de tudo, o fim da linha.” Como é que uns recuperaram e outros se deixaram ficar? Como é que para algumas pessoas aquele bairro foi “um ponto de passagem, uma espécie de reciclagem, de renovação” e para outros foi “o fim da linha”, o lugar onde ficaram e onde continuam até hoje? “Essas diferentes posturas foram o que mais me interessou na composição das personagens.”
Regresso
Alguns dos habitantes do bairro Amélia começaram por nascer no blogue que o escritor mantém — Circo da Lama —, onde publicou uma série de retratos que o levaram depois ao romance. A primeira ideia que Bruno Vieira Amaral teve para o livro foi a de uma personagem, o Zeca, que por acaso é a última a aparecer em As Primeiras Coisas: um homem de talvez 50 anos que teve um pombal no Bairro Amélia mas um dia ficou sem ele. “Todas as personagens contribuem para a definição geral do bairro, mas o Zeca será das mais fortes no sentido de simbolizar as pessoas que permaneceram no Bairro Amélia, aqueles que nunca saíram de lá. Ao longo do livro e das várias personagens que são revisitadas pelo narrador, há muito essa ideia de derrota e de estagnação. E o Zeca será a personagem-símbolo dessa ideia.” Depois, o escritor foi compondo outras personagens e a ideia final surgiu-lhe com o prólogo, em que a personagem principal— que também se chama Bruno — regressa ao bairro onde cresceu e de onde já tinha saído. “A ideia de regresso também é muito literária. Creio que a narrativa é a passagem do tempo, e quando regressamos a um lugar que conhecemos perguntamos: ‘Como é que isto passou daquilo que conhecíamos para o que é actualmente?”
Essa é história de As Primeiras Coisas: alguém que volta ao lugar onde cresceu e o vê de outra maneira, alguém que tenta perceber quem era e que vidas eram aquelas. “É um sentimento universal. Regressas ao lugar onde cresceste e confrontas-te com estas coisas. Ou vais ao domingo visitar os teus pais ou voltas definitivamente ao lugar que abandonaste... As sensações geradas por esses regressos são completamente diferentes. Sobretudo neste caso em que associada ao regresso está uma ideia de derrota e não de triunfo. Daí que haja também uma espécie de parentesco descoberto pelo narrador com as pessoas que sempre viveram naquele bairro. No fundo, ao regressar, a personagem principal de As Primeiras Coisas chega à conclusão de que sempre pertenceu ali, de que vai ter de aceitar isso. Mas a história do narrador foi algo que só me chegou mais tarde, quando já tinha composto a maior parte das personagens”, diz o autor.
É por isso que na sua origem este romance é fragmentário. “De facto, a ideia inicial é a de um catálogo de personagens, que acaba por ter unidade pela proximidade psicológica e geográfica que há entre elas”, e também por causa do prólogo de quase 60 páginas, “que no fundo é uma espécie de cola para o resto das histórias”. O livro tem um lado de inventário, obedecendo a uma organização que de alguma maneira chama a atenção para o caos. “Há uma organização na estrutura, mas nas próprias histórias é tudo desorganizado e caótico. O autor tem a intenção de se organizar, mas a cada momento aquilo está a cair no próprio caos”, diz, rindo-se.
Em certas notas de rodapé ao longo do livro há aliás um lado quase que paródico do discurso das ciências sociais, fazemos notar. “Aí o objectivo foi brincar com esse discurso. Mas nem todas, algumas notas de rodapé são formas de trazer coisas para o texto que achei que não encaixavam na corrente principal da narrativa. Ajudam a explicar uma personagem, a perceber o olhar que se está a lançar sobre ela. Não é só uma brincadeira meta-literária. Muito do tom do livro, de lamento nostálgico, quase de desilusão geral, está nas notas de rodapé. São uma brincadeira, mas são também essenciais para a compreensão do livro”, defende o escritor.
O espectro da derrota
Bruno Vieira Amaral confessa que estruturou o seu livro de maneira a ir dando ao leitor as mesmas informações que se recebem quando se vive num bairro. Há sempre alguém que “ouviu dizer que…”, alguém que “acha que não sei quem teve um acidente porque naquele dia ia não sei aonde…”. “É tudo muito incerto, muito nebuloso, a informação nunca é completamente clara: recebemos uns fiapos de informação e depois construímos o resto imaginando.”
Logo no início, por exemplo, sabemos que Vera, uma das habitantes do bairro, desapareceu, e que o narrador vai tentar saber o que lhe aconteceu. “Desapareceu para onde? Uns dizem uma coisa, outros dizem outra. O que é que realmente terá acontecido? A verdade é que ninguém sabe ao certo. Mesmo a informação factual não resolve o mistério todo. Há sempre alguém a dizer: ‘Ah, isso não foi bem assim’. ‘Ah, essa história está muito mal contada.’” Nesse sentido, o romance que Bruno Vieira Amaral quis fazer é “um conjunto de histórias mal contadas”. Contadas pela metade, por resolver. “As questões não ficam todas resolvidas para tranquilidade e descanso do leitor. Há coisas que ficam em aberto no livro, tal como na vida”, diz o escritor. “As pessoas desaparecem: desaparecem da nossa vida e desaparecem da história da mesma forma. Na medida do possível, quis plasmar essas incertezas no livro. Além do desaparecimento da Vera e da morte do Joãozinho Treme-treme, há outros que como se evaporam, não no sentido daquele realismo mágico de personagens que ascendem aos céus mas de uma coisa banal.”
O crítico literário Pedro Mexia escreveu no Expresso que as personagens secundárias de As Primeiras Coisas são secundárias também na vida: são gente vencida, miserável, desperdiçada. “Num certo sentido sim, são uma espécie de vencidos da vida, mas sem aquela aura literária: estes perderam mesmo. Numa sociedade que está tão saturada da lógica do sucesso, em que toda a gente tem de triunfar e de ser bem-sucedida na vida, cabe à literatura olhar para os casos de insucesso. Aquilo que aparentemente pode parecer insucesso também tem, por vezes, uma história digna de ser contada”, argumenta Bruno.
No ambiente do Bairro Amélia, “esse espectro da derrota está sempre presente”. Mas, às vezes, não é a derrota mais óbvia, não é a derrota social: são as pequenas derrotas íntimas, que não aparecem contabilizadas, não entram na estatística. Terem chegado a ser um livro talvez seja a forma de estas vidas “deixarem de ser secundárias” — ou, por outras palavras, a sua forma de triunfo.
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O Bairro Amélia não existe. Ou melhor, existe. Começou na imaginação de Bruno Vieira Amaral, passou a ser o bairro do seu primeiro romance, As Primeiras Coisas (Quetzal), e agora existe na cabeça dos leitores. Apesar de ser um bairro inventado, o escritor, que nasceu em 1978, inspirou-se no bairro onde cresceu: o Vale da Amoreira, no concelho da Moita, distrito de Setúbal.
É um bairro feito pelas pessoas que o ocuparam: retornados vindos de África e habitantes de bairros de lata de Lisboa. “Estavam à espera de ser realojados e ouviram dizer que naquele bairro havia casas para ocupar e foram para lá”, conta o escritor ao Ípsilon. Essa é a história do local; as histórias das personagens do livro foi ele que inventou, ou que foi buscar a notícias de jornais. Daí que não se possa dizer que As Primeiras Coisas é um relato do bairro em que Bruno Vieira Amaral cresceu.
Mas o Vale da Amoreira e o Bairro Amélia têm uma história comum: “Eram lugares que não existiam [antes de serem habitados], mesmo quando estavam rodeados de povoações muito antigas. Aqueles prédios foram construídos, em alguns casos até com outros objectivos, e de repente, em 1975, o bairro nasceu porque as pessoas ocuparam as casas”, explica. O escritor — que é licenciado em História pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, trabalha na editora Quetzal e é também crítico literário, tradutor e autor de Guia para 50 personagens da Ficção Portuguesa (Guerra & Paz) — achou que este era “um fenómeno sociológico curioso”, com “um enorme potencial literário”: “Casas ocupadas de um dia para o outro, por pessoas que caíram ali como podiam ter caído num outro sítio qualquer.”
Ao mesmo tempo, Bruno quis reflectir sobre como cada pessoa encarava a chegada àquele lugar. “Para muitas pessoas, ir viver para aquele bairro não era o inferno: era subir na vida. Finalmente tinham uma casa com paredes e com janelas. E para outras era mais do que um purgatório, era mesmo um inferno. O fim de tudo, o fim da linha.” Como é que uns recuperaram e outros se deixaram ficar? Como é que para algumas pessoas aquele bairro foi “um ponto de passagem, uma espécie de reciclagem, de renovação” e para outros foi “o fim da linha”, o lugar onde ficaram e onde continuam até hoje? “Essas diferentes posturas foram o que mais me interessou na composição das personagens.”
Regresso
Alguns dos habitantes do bairro Amélia começaram por nascer no blogue que o escritor mantém — Circo da Lama —, onde publicou uma série de retratos que o levaram depois ao romance. A primeira ideia que Bruno Vieira Amaral teve para o livro foi a de uma personagem, o Zeca, que por acaso é a última a aparecer em As Primeiras Coisas: um homem de talvez 50 anos que teve um pombal no Bairro Amélia mas um dia ficou sem ele. “Todas as personagens contribuem para a definição geral do bairro, mas o Zeca será das mais fortes no sentido de simbolizar as pessoas que permaneceram no Bairro Amélia, aqueles que nunca saíram de lá. Ao longo do livro e das várias personagens que são revisitadas pelo narrador, há muito essa ideia de derrota e de estagnação. E o Zeca será a personagem-símbolo dessa ideia.” Depois, o escritor foi compondo outras personagens e a ideia final surgiu-lhe com o prólogo, em que a personagem principal— que também se chama Bruno — regressa ao bairro onde cresceu e de onde já tinha saído. “A ideia de regresso também é muito literária. Creio que a narrativa é a passagem do tempo, e quando regressamos a um lugar que conhecemos perguntamos: ‘Como é que isto passou daquilo que conhecíamos para o que é actualmente?”
Essa é história de As Primeiras Coisas: alguém que volta ao lugar onde cresceu e o vê de outra maneira, alguém que tenta perceber quem era e que vidas eram aquelas. “É um sentimento universal. Regressas ao lugar onde cresceste e confrontas-te com estas coisas. Ou vais ao domingo visitar os teus pais ou voltas definitivamente ao lugar que abandonaste... As sensações geradas por esses regressos são completamente diferentes. Sobretudo neste caso em que associada ao regresso está uma ideia de derrota e não de triunfo. Daí que haja também uma espécie de parentesco descoberto pelo narrador com as pessoas que sempre viveram naquele bairro. No fundo, ao regressar, a personagem principal de As Primeiras Coisas chega à conclusão de que sempre pertenceu ali, de que vai ter de aceitar isso. Mas a história do narrador foi algo que só me chegou mais tarde, quando já tinha composto a maior parte das personagens”, diz o autor.
É por isso que na sua origem este romance é fragmentário. “De facto, a ideia inicial é a de um catálogo de personagens, que acaba por ter unidade pela proximidade psicológica e geográfica que há entre elas”, e também por causa do prólogo de quase 60 páginas, “que no fundo é uma espécie de cola para o resto das histórias”. O livro tem um lado de inventário, obedecendo a uma organização que de alguma maneira chama a atenção para o caos. “Há uma organização na estrutura, mas nas próprias histórias é tudo desorganizado e caótico. O autor tem a intenção de se organizar, mas a cada momento aquilo está a cair no próprio caos”, diz, rindo-se.
Em certas notas de rodapé ao longo do livro há aliás um lado quase que paródico do discurso das ciências sociais, fazemos notar. “Aí o objectivo foi brincar com esse discurso. Mas nem todas, algumas notas de rodapé são formas de trazer coisas para o texto que achei que não encaixavam na corrente principal da narrativa. Ajudam a explicar uma personagem, a perceber o olhar que se está a lançar sobre ela. Não é só uma brincadeira meta-literária. Muito do tom do livro, de lamento nostálgico, quase de desilusão geral, está nas notas de rodapé. São uma brincadeira, mas são também essenciais para a compreensão do livro”, defende o escritor.
O espectro da derrota
Bruno Vieira Amaral confessa que estruturou o seu livro de maneira a ir dando ao leitor as mesmas informações que se recebem quando se vive num bairro. Há sempre alguém que “ouviu dizer que…”, alguém que “acha que não sei quem teve um acidente porque naquele dia ia não sei aonde…”. “É tudo muito incerto, muito nebuloso, a informação nunca é completamente clara: recebemos uns fiapos de informação e depois construímos o resto imaginando.”
Logo no início, por exemplo, sabemos que Vera, uma das habitantes do bairro, desapareceu, e que o narrador vai tentar saber o que lhe aconteceu. “Desapareceu para onde? Uns dizem uma coisa, outros dizem outra. O que é que realmente terá acontecido? A verdade é que ninguém sabe ao certo. Mesmo a informação factual não resolve o mistério todo. Há sempre alguém a dizer: ‘Ah, isso não foi bem assim’. ‘Ah, essa história está muito mal contada.’” Nesse sentido, o romance que Bruno Vieira Amaral quis fazer é “um conjunto de histórias mal contadas”. Contadas pela metade, por resolver. “As questões não ficam todas resolvidas para tranquilidade e descanso do leitor. Há coisas que ficam em aberto no livro, tal como na vida”, diz o escritor. “As pessoas desaparecem: desaparecem da nossa vida e desaparecem da história da mesma forma. Na medida do possível, quis plasmar essas incertezas no livro. Além do desaparecimento da Vera e da morte do Joãozinho Treme-treme, há outros que como se evaporam, não no sentido daquele realismo mágico de personagens que ascendem aos céus mas de uma coisa banal.”
O crítico literário Pedro Mexia escreveu no Expresso que as personagens secundárias de As Primeiras Coisas são secundárias também na vida: são gente vencida, miserável, desperdiçada. “Num certo sentido sim, são uma espécie de vencidos da vida, mas sem aquela aura literária: estes perderam mesmo. Numa sociedade que está tão saturada da lógica do sucesso, em que toda a gente tem de triunfar e de ser bem-sucedida na vida, cabe à literatura olhar para os casos de insucesso. Aquilo que aparentemente pode parecer insucesso também tem, por vezes, uma história digna de ser contada”, argumenta Bruno.
No ambiente do Bairro Amélia, “esse espectro da derrota está sempre presente”. Mas, às vezes, não é a derrota mais óbvia, não é a derrota social: são as pequenas derrotas íntimas, que não aparecem contabilizadas, não entram na estatística. Terem chegado a ser um livro talvez seja a forma de estas vidas “deixarem de ser secundárias” — ou, por outras palavras, a sua forma de triunfo.