Juntas do Beato e de Marvila estão a ser investigadas por suspeitas relativas à contratação de familiares dos seus presidentes
A filha do autarca de Marvila foi contratada como efectiva para a junta do Beato. Na mesma altura, uma outra jovem que seis meses depois se casaria com o presidente do Beato foi contratada pela junta de Marvila.
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Menos de um mês depois, a junta de Marvila contratou, para o mesmo tipo de funções, uma outra jovem que, passados seis meses, se viria a casar com o presidente da junta do Beato. Estas e outras coincidências verificadas nestas duas freguesias de Lisboa, governadas pelo PS, estão a ser investigadas pelo Ministério Público.
No final de Abril de 2011, um mês depois da demissão do primeiro-ministro José Sócrates, numa altura em que a contratação de pessoal para a administração pública já era objecto de fortes restrições, a junta de Marvila lançou um concurso destinado a recrutar um licenciado em Gestão para preencher um lugar previsto e não ocupado no seu mapa de pessoal.
Em meados de Setembro desse ano foi publicada no Diário da República a lista de classificação final dos seis candidatos que se apresentaram a concurso. Três deles foram excluídos por desistência ou falta de comparência às provas (exame escrito e entrevista) e dois chumbaram com notas de 2,8 e 3,3.
A única candidata aprovada, Rute Gouveia, obteve a classificação de 15,8 e em Novembro foi contratatada, por um período experimental, com o vencimento de 1201 euros. O presidente do júri foi o presidente da junta de Marvila, Belarmino Silva, que este ano foi reeleito para as mesmas funções.
Seis meses mais tarde, Rute Gouveia casou-se com Hugo Xambre Pereira, um jovem autarca que em 2005, aos 27 anos, foi eleito pela primeira vez para a presidência da junta do Beato.
Dispondo igualmente de um posto de trabalho vago nos seus quadros, a junta do Beato decidiu também, um mês depois da de Marvila, em Maio de 2011, abrir um concurso para recrutar um técnico superior para exercer funções na área da animação cultural.
No penúltimo dia de Setembro, a lista de classificações foi publicada, constatando-se que dos 26 concorrentes inscritos, 12 foram reprovados por desistência ou falta de comparência. Outros 12 chumbaram por terem obtido classificações entre 0 e 8,5 valores.
As duas restantes concorrentes foram aprovadas, uma com 11,9 valores e outra com 16,3. Esta última, Marta Queixo, licenciada dois anos antes pela Escola Superior de Educação Jean Piaget, é filha de Belarmino Silva, o autarca de Marvila. O presidente do júri foi o tesoureiro da junta do Beato, o socialista Vítor Marques, enquanto Hugo Pereira foi vogal suplente. Logo no início de Outubro, Marta Queixo entrou ao serviço, a título experimental, com o mesmo ordenado de 1201 euros.
De então para cá, ambas as técnicas superiores concluíram, com sucesso, a fase experimental dos respectivos contratos, passando a ocupar os seus lugares de forma definitiva.
No caso de Marvila, a autarquia já tinha ao seu serviço uma pessoa com formação na área da contabilidade e da gestão. No Beato, Marta Queixo tornou-se coordenadora das actividades de complemento de apoio à família (CAF) desenvolvidas pela autarquia nas escolas básicas. Até aí essa função era desempenhada por uma licenciada em Psicologia, em regime de avença, que também se inscreveu no concurso, mas decidiu não comparecer às provas.
Em resposta ao PÚBLICO, Hugo Pereira começou por afirmar que Marta Queixo já antes do concurso trabalhava para a junta a recibos verdes, o que é desmentido por outras fontes da autarquia. Questionado por escrito sobre essa ligação da filha de Belarmino Silva à junta do Beato, nomeadamente sobre o período em que a mesma vigorou, o autarca nada disse.
Como era de prever, as coincidências verificadas neste caso não passaram despercebidas no Beato e em Marvila e o caso, tal como outros, acabou por ser denunciado ao Ministério Público.
No dia 23 de Junho, a Polícia Judiciária efectuou várias buscas na sede das duas juntas e apreendeu numerosos documentos, incluindo os processos destes dois concursos, bem como material informático. Já em Setembro, e também depois da posse dos novos executivos, que continuam a ser liderados pelos mesmos autarcas, o assunto foi levantado pela oposição nas respectivas assembleias de freguesia.
Tanto Hugo Pereira como Belarmino Silva limitaram-se então a afirmar que as buscas se prendiam apenas com a prestação de serviços externos.
Em resposta a um requerimento do PÚBLICO para consulta do processo relativo à contratação da técnica de animação social, Hugo Pereira respondeu, porém, em meados deste mês, que os documentos solicitados “não se encontram na posse” da autarquia.
Belarmino Silva, por seu lado, foi mais concreto e informou que o processo referente ao concurso ganho por Rute Gouveia se encontra “em segredo de justiça” por determinação do juiz de instrução criminal.
Nas respostas escritas que endereçou ao PÚBLICO, Hugo Pereira ignorou boa parte das perguntas, referindo que ao concurso em causa “concorreram 26 pessoas” e que “não houve nenhuma reclamação ou impugnação do resultado”. O autarca acrescentou que “nenhum eleito” da junta do Beato “foi chamado a prestar declarações sobre este ou outro caso”.
Hugo Pereira disse também que em 2011 não era casado e que a referência à sua relação com a mulher com que se casou meses depois sugere uma “interpretação errónea e abusiva dos factos”.
Contrariamente ao seu colega de partido, Belarmino Silva não respondeu a nenhuma das perguntas que lhe foram feitas. O PÚBLICO tentou também entrar em contacto com Rute Gouveia e Marta Queixo, mas não obteve resposta.
"Não vale a pena ir aos concursos"
Quando compareceu na entrevista do concurso destinado a recrutar uma técnica superior para a junta do Beato, Ana Catarina Guerra já esperava o que lhe aconteceu. "À partida já sabia que não ia ficar porque andei a ver na Net e no Facebook e percebi que a outra candidata era filha do presidente da junta do lado. Percebi logo que ia ser excluída, mas resolvi ir mesmo assim."
A jovem, residente em Ourém, já está habituada a estas andanças e acha que "não vale a pena" reclamar. "Não serve de nada. Uma pessoa vai aos concursos mas é quase sempre a mesma coisa. Já tenho ido a imensos concursos [para juntas e câmaras de todo o país] em que isto acontece: ou entram os filhos dos autarcas, ou pessoas que já lá estavam a recibos verdes."
Ana Guerra, além de licenciada pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa dispunha, à época do concurso do Beato, de um mestrado em política social e tinha feito vários estágios e cursos de formação. "Apesar de saber quem era a outra candidata que ia à entrevista fui na mesma, com aquela esperança de que as minhas competências pudessem ser tidas em conta. Infelizmente isso não aconteceu."
Ana Guerra lembra-se de que a entrevista com dois membros da junta até lhe correu "muito bem" e diz-se cansada de passar por situações deste género. "Ando nisto há cinco ou seis anos e fico sempre em segundo ou terceiro lugar. Agora só concorro na minha zona."
Nestes anos todos, afirma, só conseguiu entrar por concurso num estágio remunerado de um ano. "Era um programa de estágios na Administração Central e o concurso era todo por via informática." Presentemente, Ana Guerra tem trabalho por alguns meses - está a substituir uma grávida numa instituição particular de solidariedade social.