A China regressa ao Pequeno Livro Vermelho (mas só a algumas frases)

A China celebra hoje os 120 anos do nascimento de Mao Tsetung. Em Shaoshan haverá uma festa grandiosa. O Presidente Xi Jinping recupera o líder da revolução — a sua retórica e métodos — para mobilizar as massas e construir o seu “sonho de China”.

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Xia Zuhai, um camponês tornado professor, fundou-a em 1996 quando se cansou de ver a China ir pelo mau caminho. “O pensamento de Mao Tsetung é sobre libertar as pessoas dos seus desejos materiais de forma a que as pessoas possam ser livres e naturais”, disse Xia à Reuters, que conta que a escola tem, hoje, 20 alunos. Em 2005 eram 600 as crianças que recitavam Mao, tomavam conta da horta e tratavam dos animais da Democracia.

A escola do professor Xia é uma curiosidade. Porque é única. Mas não é um completo anacronismo na China de Xi Jinping, o Presidente chinês desde Março. Em Agosto, Xi visitou Wuhan, onde Mao Tsetung passava férias no Verão porque gostava de nadar no lago, e anunciou que aquela vila se iria transformar num centro onde os jovens irão aprender o que é o patriotismo e o que é a revolução.

A China está a passar por um momento de revivalismo maoísta. Não só porque há nostálgicos, como o velho professor Xia, mas porque o Presidente ressuscitou a retórica e alguns velhos métodos do fundador da China comunista para acabar com “os males” do país.

Os males maiores são vários e o Presidente enunciou-os. Resumem-se a uma palavra: desigualdade. Desigualdade entre as elites e as massas (uma palavra que Xi gosta de usar), desigualdade entre os mais pobres e os que têm poder de compra, desigualdade entre a China rural e a China urbana, sobretudo a da cintura costeira do Sul.

“Xi precisa de construir pontes entre o interior pobre da China e o capitalismo de Estado. No seu ‘sonho para a China’, o comunismo ainda importa porque enquadra o percurso que a China fez [nos últimos 40 anos], apela a um sentimento igualitário e cria a identidade nacional”, escreveu Christopher Johnson, da Universidade de Georgetown (EUA), no East Asia Forum.

Mao Tsetung ainda é uma figura estimada na China. Na últimas décadas, porém, e apesar de não ter perdido relevância, os académicos chineses tiveram alguma dificuldade em definir o seu grau de importância — deixou de lhes ser possível ignorar o terror e os 30 milhões de mortos de fome do Grande Salto em Frente (1958-61), a desastrosa tentativa de Mao para, numa dúzia de anos, industrializar a China rural e feudal.

O período que se seguiu não foi mais benéfico. A Revolução Cultural (1966-76) destruiu o que restava dos alicerces socio-económicos. Quando Mao morreu, o seu sucessor, Deng Xiaoping, enterrou os excesso ideológicos e se, a seguir, todos os líderes chineses prestaram as suas homenagens ao fundador, nenhum até agora recuperara explicitamente Mao para delinear políticas e batalhas. Se a grande batalha de Xi é o abismo que o rumo económico abriu, que arma melhor para travá-la do que Mao, o ideólogo das “rectificações”?

A purificação
O grande propósito de Xi Jinping é a “purificação” do Partido Comunista Chinês, o único que deve existir na China, como determina o primeiro mandamento do primeiro capítulo do Livro Vermelho: “A força núcleo que dirige a nossa causa é o Partido Comunista da China”. A corrupção e o enriquecimento ilícito das elites corroeu a legitimidade do partido, a peça mais basilar do equilíbrio chinês. “É necessário que todo o pessoal dos organismos governamentais compreenda que a corrupção e o esbanjamento constituem crimes extremamente graves. A luta contra esses males já deu certos resultados, mas são necessários ainda novos esforços”, lê-se no Livro de Citações — que foi integralmente escrito por Mao ou é uma colectânea feita por outros de citações dele e dos princípios revolucionários, os historiadores debatem a questão da autoria.

O partido, disse Xi ao longo dos meses, corre riscos por causa do comportamento das elites. Desde que está no poder, o Presidente já demitiu dezenas de altos funcionários e está a investigar outros, o último deles o influente Zhou Yongkang — pela primeira vez, um antigo membro do Comité Permanente do Politburo, o órgão que de facto governa a China, pode ser julgado. Ninguém é intocável, é a mensagem de Xi — na época de Mao, ao que Xi está a fazer chamou-se “purgas”. “Não foi só a retórica que Xi foi buscar a Mao, também recuperou os métodos”, escreveu o analista Jeremy Page no Wall Street Journal.

Page explica que a viragem de Xi surpreendeu os sinólogos e os próprios chineses. A primeira grande campanha do Presidente foi contra Bo Xilai, um alto funcionário com um percurso muito parecido com o seu (ambos filhos de heróis da revolução caídos em desgraça na Revolução cultural, viveram em campos de trabalho mas, em vez de se revoltarem contra o sistema, aceitaram-no e tiveram uma educação maoísta). Bo, classificado como um neo-maoísta — e membro da facção conhecida como Nova Esquerda —, usou toda a máquina da propaganda e manipulação de massas de Mao para criar um feudo na província de Chongqing. Preparava-se para subir na hierarquia de Pequim quando foi apanhado pela guerra contra a corrupção.

Um amigo de infância do Presidente disse ao Wall Street Journal que Xi está a “mostrar as suas verdadeiras cores” — está a criar um poder autocrata, a impor uma rigorosa disciplina na hierarquia e a silenciar o debate político onde a corrente que defendia que a Constituição devia ser aligeirada nos capítulos dos poderes do Partido ganhava terreno.

Há algumas semanas, Xi deu o último passo da sua relativa viragem à esquerda e apareceu na televisão pública numa sessão de auto-crítica. “A prática conscienciosa da autocrítica é uma das características marcantes que distinguem o nosso partido dos demais partidos políticos.” Aos comandantes do Exército, o Presidente ordenou que restabeleçam o “contacto com as massas” e passem 15 minutos por dia no posto de soldado raso.

Xi reforça a sua posição, faz renascer o apoio público ao partido, mas, sublinham os analistas, o revivalismo pára antes de chegar à ideologia — o Presidente recupera as máximas maoístas, mas edita-as. A frase completa que abre o livrinho vermelho diz “a força núcleo que dirige a nossa causa é o Partido comunista da China, a base teórica que guia o nosso pensamento é o marxismo-leninismo”.

Não é de estranhar que Xi Jinping — ou o Governo chinês — tenha anunciado um programa ambicioso para comemorar os 120 anos do nascimento de Mao. Na cidade onde nasceu, Shaoshan (Hunan), haverá uma festa grandiosa e vão voltar-se a esquecer os crimes e os erros tão comentados na última década. A pequena cidade foi totalmente reconstruída e gastou-se o equivalente a 218 milhões de euros — a imprensa internacional tem escrito que haverá um coro de 12 mil pessoas a cantar em simultâneo e que serão cozinhados 120 mil quilos de massa chinesa para oferecer aos visitantes.

A reedição do "livrinho"
O livro vermelho, com as 427 citações divididas em 33 temas foi reeditado — mais uma ajuda a que continue a ser o segundo livro mais publicado no mundo (900 milhões de exemplares), a seguir à Bíblia. “O nosso objectivo foi apenas reeditar o livro, como acontece com outras obras de outros pensadores, por exemplo Confúsio. Não temos qualquer agenda política”, disse ao jornal Christian Science Monitor o editor Chen Yu, coronel na Academia das Ciências Militares de Pequim.

Se a decisão foi ou não concertada com o Governo, não se sabe. Para muitos chineses que a comprarem — e eles são hoje 1,4 mil milhões, no tempo de Mao eram 600 milhões —, é uma oportunidade para entenderem o pensamento que foi preciso para fundar uma China que já não existe. Capítulo 5, sobre Guerra e Paz: “Todos os comunistas devem compreender a seguinte verdade: o poder político nasce da boca de uma arma”. Capítulo 6: “Todos os reaccionários são tigres de papel. Na aparência, os reaccionários são terríveis, mas na realidade não são assim tão poderosos. Vendo a longo prazo, não são os reaccionários mas sim o povo quem é realmente poderoso.”

Os reaccionários desapareceram do léxico porque quando Deng Xiaoping criou o país de dois sistemas (1978) emprateleirou o livro vermelho, que dizia: “O sistema socialista acabará por substituir o sistema capitalista: essa é uma lei objectiva, independente da vontade do homem.” Xi prefere fazer a guerra aos corruptos porque sua guerra é outra e também está no livro de Mao. “Constitui tarefa muito árdua assegurar uma vida melhor às várias centenas de milhões de chineses e fazer do nosso país, económica e culturalmente atrasado, um país prospero, poderoso e com alto nível de cultura”.

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Xia Zuhai, um camponês tornado professor, fundou-a em 1996 quando se cansou de ver a China ir pelo mau caminho. “O pensamento de Mao Tsetung é sobre libertar as pessoas dos seus desejos materiais de forma a que as pessoas possam ser livres e naturais”, disse Xia à Reuters, que conta que a escola tem, hoje, 20 alunos. Em 2005 eram 600 as crianças que recitavam Mao, tomavam conta da horta e tratavam dos animais da Democracia.

A escola do professor Xia é uma curiosidade. Porque é única. Mas não é um completo anacronismo na China de Xi Jinping, o Presidente chinês desde Março. Em Agosto, Xi visitou Wuhan, onde Mao Tsetung passava férias no Verão porque gostava de nadar no lago, e anunciou que aquela vila se iria transformar num centro onde os jovens irão aprender o que é o patriotismo e o que é a revolução.

A China está a passar por um momento de revivalismo maoísta. Não só porque há nostálgicos, como o velho professor Xia, mas porque o Presidente ressuscitou a retórica e alguns velhos métodos do fundador da China comunista para acabar com “os males” do país.

Os males maiores são vários e o Presidente enunciou-os. Resumem-se a uma palavra: desigualdade. Desigualdade entre as elites e as massas (uma palavra que Xi gosta de usar), desigualdade entre os mais pobres e os que têm poder de compra, desigualdade entre a China rural e a China urbana, sobretudo a da cintura costeira do Sul.

“Xi precisa de construir pontes entre o interior pobre da China e o capitalismo de Estado. No seu ‘sonho para a China’, o comunismo ainda importa porque enquadra o percurso que a China fez [nos últimos 40 anos], apela a um sentimento igualitário e cria a identidade nacional”, escreveu Christopher Johnson, da Universidade de Georgetown (EUA), no East Asia Forum.

Mao Tsetung ainda é uma figura estimada na China. Na últimas décadas, porém, e apesar de não ter perdido relevância, os académicos chineses tiveram alguma dificuldade em definir o seu grau de importância — deixou de lhes ser possível ignorar o terror e os 30 milhões de mortos de fome do Grande Salto em Frente (1958-61), a desastrosa tentativa de Mao para, numa dúzia de anos, industrializar a China rural e feudal.

O período que se seguiu não foi mais benéfico. A Revolução Cultural (1966-76) destruiu o que restava dos alicerces socio-económicos. Quando Mao morreu, o seu sucessor, Deng Xiaoping, enterrou os excesso ideológicos e se, a seguir, todos os líderes chineses prestaram as suas homenagens ao fundador, nenhum até agora recuperara explicitamente Mao para delinear políticas e batalhas. Se a grande batalha de Xi é o abismo que o rumo económico abriu, que arma melhor para travá-la do que Mao, o ideólogo das “rectificações”?

A purificação
O grande propósito de Xi Jinping é a “purificação” do Partido Comunista Chinês, o único que deve existir na China, como determina o primeiro mandamento do primeiro capítulo do Livro Vermelho: “A força núcleo que dirige a nossa causa é o Partido Comunista da China”. A corrupção e o enriquecimento ilícito das elites corroeu a legitimidade do partido, a peça mais basilar do equilíbrio chinês. “É necessário que todo o pessoal dos organismos governamentais compreenda que a corrupção e o esbanjamento constituem crimes extremamente graves. A luta contra esses males já deu certos resultados, mas são necessários ainda novos esforços”, lê-se no Livro de Citações — que foi integralmente escrito por Mao ou é uma colectânea feita por outros de citações dele e dos princípios revolucionários, os historiadores debatem a questão da autoria.

O partido, disse Xi ao longo dos meses, corre riscos por causa do comportamento das elites. Desde que está no poder, o Presidente já demitiu dezenas de altos funcionários e está a investigar outros, o último deles o influente Zhou Yongkang — pela primeira vez, um antigo membro do Comité Permanente do Politburo, o órgão que de facto governa a China, pode ser julgado. Ninguém é intocável, é a mensagem de Xi — na época de Mao, ao que Xi está a fazer chamou-se “purgas”. “Não foi só a retórica que Xi foi buscar a Mao, também recuperou os métodos”, escreveu o analista Jeremy Page no Wall Street Journal.

Page explica que a viragem de Xi surpreendeu os sinólogos e os próprios chineses. A primeira grande campanha do Presidente foi contra Bo Xilai, um alto funcionário com um percurso muito parecido com o seu (ambos filhos de heróis da revolução caídos em desgraça na Revolução cultural, viveram em campos de trabalho mas, em vez de se revoltarem contra o sistema, aceitaram-no e tiveram uma educação maoísta). Bo, classificado como um neo-maoísta — e membro da facção conhecida como Nova Esquerda —, usou toda a máquina da propaganda e manipulação de massas de Mao para criar um feudo na província de Chongqing. Preparava-se para subir na hierarquia de Pequim quando foi apanhado pela guerra contra a corrupção.

Um amigo de infância do Presidente disse ao Wall Street Journal que Xi está a “mostrar as suas verdadeiras cores” — está a criar um poder autocrata, a impor uma rigorosa disciplina na hierarquia e a silenciar o debate político onde a corrente que defendia que a Constituição devia ser aligeirada nos capítulos dos poderes do Partido ganhava terreno.

Há algumas semanas, Xi deu o último passo da sua relativa viragem à esquerda e apareceu na televisão pública numa sessão de auto-crítica. “A prática conscienciosa da autocrítica é uma das características marcantes que distinguem o nosso partido dos demais partidos políticos.” Aos comandantes do Exército, o Presidente ordenou que restabeleçam o “contacto com as massas” e passem 15 minutos por dia no posto de soldado raso.

Xi reforça a sua posição, faz renascer o apoio público ao partido, mas, sublinham os analistas, o revivalismo pára antes de chegar à ideologia — o Presidente recupera as máximas maoístas, mas edita-as. A frase completa que abre o livrinho vermelho diz “a força núcleo que dirige a nossa causa é o Partido comunista da China, a base teórica que guia o nosso pensamento é o marxismo-leninismo”.

Não é de estranhar que Xi Jinping — ou o Governo chinês — tenha anunciado um programa ambicioso para comemorar os 120 anos do nascimento de Mao. Na cidade onde nasceu, Shaoshan (Hunan), haverá uma festa grandiosa e vão voltar-se a esquecer os crimes e os erros tão comentados na última década. A pequena cidade foi totalmente reconstruída e gastou-se o equivalente a 218 milhões de euros — a imprensa internacional tem escrito que haverá um coro de 12 mil pessoas a cantar em simultâneo e que serão cozinhados 120 mil quilos de massa chinesa para oferecer aos visitantes.

A reedição do "livrinho"
O livro vermelho, com as 427 citações divididas em 33 temas foi reeditado — mais uma ajuda a que continue a ser o segundo livro mais publicado no mundo (900 milhões de exemplares), a seguir à Bíblia. “O nosso objectivo foi apenas reeditar o livro, como acontece com outras obras de outros pensadores, por exemplo Confúsio. Não temos qualquer agenda política”, disse ao jornal Christian Science Monitor o editor Chen Yu, coronel na Academia das Ciências Militares de Pequim.

Se a decisão foi ou não concertada com o Governo, não se sabe. Para muitos chineses que a comprarem — e eles são hoje 1,4 mil milhões, no tempo de Mao eram 600 milhões —, é uma oportunidade para entenderem o pensamento que foi preciso para fundar uma China que já não existe. Capítulo 5, sobre Guerra e Paz: “Todos os comunistas devem compreender a seguinte verdade: o poder político nasce da boca de uma arma”. Capítulo 6: “Todos os reaccionários são tigres de papel. Na aparência, os reaccionários são terríveis, mas na realidade não são assim tão poderosos. Vendo a longo prazo, não são os reaccionários mas sim o povo quem é realmente poderoso.”

Os reaccionários desapareceram do léxico porque quando Deng Xiaoping criou o país de dois sistemas (1978) emprateleirou o livro vermelho, que dizia: “O sistema socialista acabará por substituir o sistema capitalista: essa é uma lei objectiva, independente da vontade do homem.” Xi prefere fazer a guerra aos corruptos porque sua guerra é outra e também está no livro de Mao. “Constitui tarefa muito árdua assegurar uma vida melhor às várias centenas de milhões de chineses e fazer do nosso país, económica e culturalmente atrasado, um país prospero, poderoso e com alto nível de cultura”.