Quando os Yes reinaram sobre a Terra
E aquele momento em que percebemos como Starship trooper, com o som fluído como líquido da guitarra e o baixo a distorcer e a reverberar, poderia ter inspirado muita da moderna chillwave, o género de reciclagem de memórias sonoras que ouvimos nos Washed Out? E essa canção de Fragile, We have heaven, que, com as suas harmonias vocais incessantes e ritmo seco, quase juramos ser a origem perdida dos Animal Collective? E todas essas secções no interior de longas canções que nos surpreendem: não são os Flaming Lips que surgem reflectidos algures em You and I, de Close to the Edge?, este festim percutivo psicadélico que irrompe quase no final de Ritual (Nous sommes du soleil) não faria as delícias da banda xamã que são os Gala Drop?
Não deveria fazer sentido. Não deveria porque estes momentos pertencem aos Yes, banda-ícone do rock progressivo britânico ao lado de King Crimson, Genesis e Emerson, Lake & Palmer — e provavelmente a mais popular na sua época, logo atrás dos Pink Floyd (que não eram vistos exactamente como rock progressivo, antes como entidade sem filiação).
Como sabemos, o rock progressivo é o saco de pancada predilecto de 95% dos fãs de música. É a música que perdeu porque tinha de perder, soçobrando sob o peso da sua ambição desmedida, do aborrecimento atroz que causava e dos seus insuportáveis ares de superioridade. Isto é onde estamos hoje. O recente lançamento de The Studio Albums 1969-1987, que reúne os 13 álbuns de estúdio lançados pela banda no período (edição simples: CD em caixas de cartão reproduzindo as reedições de 2003 e uma pequena nova ilustração de Roger Dean), é oportunidade para contar o outro lado da história. A que reuniu Chris Squire, baixista extraordinário, ao vocalista Jon Anderson para criar música que reunisse harmonias vocais perfeitas ao perfeito domínio instrumental. Juntaram-se-lhes o impressionante baterista Bill Brufford, o guitarrista Peter Banks e o teclista Tony Kaye e o início da banda sinalizou o nascimento de uma nova era: em 1968, no Royal Albert Hall, foram a banda suporte do concerto de despedida dos Cream, culminar do blues rock psicadélico do final de década de 1960.
Quatro anos depois, já com o guitarrista Steve Howe e o teclista Rick Wakeman a completar a formação clássica da banda, tudo tinha mudado. Tal como muitos dos seus contemporâneos, procuravam chegar onde ninguém chegara antes: uma linguagem nova, em que o virtuosismo instrumental serviria para mostrar o rock como arte maior, como possível ponto de confluência de fôlego narrativo com as aprendizagens do jazz e da clássica. Mas os Yes não se ficaram por aí. Até tão longe quanto meados dos anos 1980, atravessaram quase incólumes a passagem do tempo.
Sobreviveram à saída (e à reentrada) de membros emblemáticos como Steve Howe, Jon Anderson e Rick Wakeman, tiveram na sua formação os Buggles Trevor Horn e Geoff Downes, fãs de longa data, mas aparentemente nos antípodas dos Yes (não é Video killed the radio star um hino à concisão pop da new wave?) e entraram pelos anos 1980 com pompa e circunstância, reinventados sob a forma do monstrengo de rock FM que legou ao mundo Owner of a lonely heart (90125, o álbum correspondente, editado em 1983 e hoje datadíssimo, tornou-se ironicamente o álbum mais vendido na história da banda).
Pouco na sua discografia é consistente do princípio ao fim (The Yes Album, Close To The Edge e Fragile são os que mais se aproximam e as experiências orquestrais no segundo, Time And a Word, merecem destaque), mas o seu período clássico da década de 1970 está repleto de preciosidades. Não por acaso, é na apropriação de excertos seleccionados que a banda melhor tem sobrevivido na cultura popular. Ouvimos o motivo que atravessa Siberian Khatru, tão funk quanto funk eram os Funkadelic, e não nos espantamos por, ao longo dos anos, a música dos Yes ser mina a que o hip-hop recorre regularmente (De La Soul, J Dilla, Nas, LL Cool J, Lil Wayne, Salt-N-Pepa). E, no entanto, é como se os Yes não existissem além da caricatura — nem a presença na banda-sonora de Buffalo 66, filme de culto de Vincent Gallo, os tornou vagamente cool.
Ambição
Estamos em 1973. O jornalista destacado para cobrir um concerto da digressão de uns Emerson, Lake & Palmer no auge da sua popularidade concentrou-se naquilo que mais interessava. O material. Discriminou então o número de teclados (às dezenas) de Keith Emerson, as peças que compunham a bateria que haveria de quase esconder do público Carl Palmer e o preço de milhares de libras que custara o tapete persa pisado pelo guitarrista Greg Lake. Um concerto dos Emerson, Lake & Palmer não era simplesmente um concerto. Era uma extravagância, uma experiência wagneriana. Era arte total, diriam as centenas de milhares que enchiam estádios para os ver. Nem todos classificavam a experiência da mesma forma.
Rick Wakeman, teclista de um período em que os teclistas foram elevados ao estatuto de superestrela, não ficava atrás dos Emerson, Lake & Palmer. Famoso pelas extravagância e pelas capas douradas brilhando entre os mil teclados, Wakeman contabilizou vendas de dezenas de milhões dos seus álbuns a solo e apresentou-os em produções que incluíam bailarinos representando no gelo a história do Rei Artur.
Os Yes também não ficavam atrás dos Emerson, Lake & Palmer. Na sua autobiografia, Grumpy Old Rock Star, Wakeman fala da digressão de Tales Of Topographic Oceans (1973), o pináculo de ambição dos Yes, álbum duplo com quatro canções apenas, uma para cada um dos lados dos dois vinis. Conta, caricaturizando, que precisava de indicações sempre que subia a palco, de forma a conseguir ultrapassar os adereços idealizados por Roger Dean, autor das mais icónicas capas da banda: “Vira aqui à esquerda, Rick, trepa aquele cogumelo gigante, ultrapassa a nave e lá atrás, atrás daquela nuvem, estão os teus teclados”.
Wakeman escreve também que Spinal Tap, o mais famoso falso documentário sobre o circo rock, lhe parece quase realista: “Com os Yes nós vivemo-lo.” Seguem-se episódios que parecem realmente saídos do filme, envolvendo um baterista (Alan White) preso no interior de conchas gigantes ou túneis perigosamente frágeis que a banda atravessava para chegar ao centro da acção. Foi por coisas como estas que se chamou à década de 1970 “a década que o bom gosto esqueceu” — por isso e pelos álbuns conceptuais de guião simplório ou simplesmente pateta, pelo disco-sound ou pela imagem de Elton John enfiado num fato do Pato Donald.
Acontece que o disco-sound foi entretanto justamente reabilitado, reenquadrado e reciclado e que os álbuns clássicos de Elton John (pelo menos esses) ganharam o seu lugar respeitável na história da música popular. Os Yes? Os Yes sofreram o mesmo que a maioria dos seus contemporâneos britânicos do progressivo. Ou seja, tal como os Emerson, Lake & Palmer ou os Gentle Giant, são como que uma não-existência na historiografia pop (a excepção são os King Crimson, hoje referência a citar devido à alta cotação do magnífico primeiro álbum, In the Court of the Crimson King, samplado em Power, de Kanye West, e os inclassificáveis Van der Graaf Generator, que atravessaram os tempos incólumes enquanto banda de culto).
A queda
A narrativa oficial diz-nos que o punk chegou para acabar com aqueles dinossauros do rock e para regenerar um cenário habitado por estrelas num pedestal, a partir do qual mostravam o seu carácter divino à populaça através de um virtuosismo inalcançável e ambições teatrais que minavam a ideia do rock como rebelião sincera e autenticidade. Com o punk, diz a narrativa, acabou num ápice, e para não mais voltar, a era de terror do rock progressivo. Mas então…
Em 1977, o ano de explosão mundial do punk, quem podíamos encontrar no topo das tabelas de vendas inglesas? Os Yes, com Going For The One, o álbum em que começaram a descer dos céus das canções de 20 minutos — nos Estados Unidos, chegaram a oitavo lugar. Anos antes, enquanto os Led Zeppelin passeavam pelo mundo como representação máxima do rock’n’roll enquanto bomba sexual, a crítica desdenhava-os. Preferia os Emerson, Lake & Palmer. E Lester Bangs, o mítico crítico americano com altar erguido aos Velvet Underground e a Lou Reed, ele que escreveria sobre o rock progressivo “se não consegues ter verdadeira qualidade, porque não escolher quantidade a uma escala bizantina, porque não ser pomposo se és bem-sucedido a sê-lo?”, elogiava com convicção The Yes Album (1971), o terceiro da banda, aquele em que ficou perfeitamente definido o seu imaginário musical, a sua procura de futuro nos circuitos eléctricos de um sintetizador Moog.
Era música difícil, aquela. Música de alguém que pretendia dar o passo seguinte na história da música popular urbana e escapar à alegada prisão das canções pop de três minutos. Segundo Jon Anderson, tudo começou, curiosamente, quando a sua geração viu os Beatles e os Rolling Stones na televisão e, citamo-lo de cabeça, percebeu que eram pessoas comuns e que, portanto, as pessoas comuns podiam ser estrelas de música — exactamente o mesmo que diriam retrospectivamente aqueles que pegaram em guitarras depois de ver os Ramones ou os Sex Pistols.
Mas esta música complexa e nada imediata reinou durante quase toda uma década. Era incrivelmente popular, vendida aos milhões atraindo milhões às salas de concertos. Atraindo quem? “Hippies. Adolescentes. Fãs que estavam certos de haver algo mais aí fora. Pessoas que queriam tomar ácido e ter as suas pupilas bombardeadas com lasers. Tipos arty que queriam encontrar na música um sentido”, escrevia David Weigel, jornalista de política da Slate, conservador libertário, “maluquinho do prog”, numa série de artigos dedicados ao género publicados em 2012 no Salon.
Eles experimentaram e procuraram de forma febril, delirante e, a partir de determinado momento, tremendamente onanista, música que nunca antes havia sido feita. Chegaram tão alto e a caíram lá tão de cima que, quando finalmente se estilhaçaram no chão da memória, só os indefectíveis tinham esperado para ver e só os indefectíveis prosseguiram com eles (fervorosamente, como atesta qualquer navegação pelos milhares de sites dedicados ao prog por essa Internet fora).
Tão cedo quanto 1973, Chris Welch, veterano jornalista musical britânico, escrevia acerca de A Passion Play, álbum conceptual dos Jethro Tull, que “se é a isto que nos trouxeram de anos de ‘progressão’, então será tempo de voltar atrás”. Os heróis do prog, embriagados pelo dinheiro correndo abundante que lhes alimentava a ambição mas lhes diminuía o critério, nem chegaram a travar. Fizeram como sempre. Aceleraram.
Sim, tiveram a sua quota-parte de culpa. Mas não o suficiente para serem transformados em fantasmas da história. “É estranho, sabe? Uma canção como Siberian Khatru [de Close to the Edge, 1972] soa mesmo hip hoje em dia”, dizia no ano passado o baterista Bill Brufford à Rolling Stone. É realmente estranho. É estranho que seja verdade.
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E aquele momento em que percebemos como Starship trooper, com o som fluído como líquido da guitarra e o baixo a distorcer e a reverberar, poderia ter inspirado muita da moderna chillwave, o género de reciclagem de memórias sonoras que ouvimos nos Washed Out? E essa canção de Fragile, We have heaven, que, com as suas harmonias vocais incessantes e ritmo seco, quase juramos ser a origem perdida dos Animal Collective? E todas essas secções no interior de longas canções que nos surpreendem: não são os Flaming Lips que surgem reflectidos algures em You and I, de Close to the Edge?, este festim percutivo psicadélico que irrompe quase no final de Ritual (Nous sommes du soleil) não faria as delícias da banda xamã que são os Gala Drop?
Não deveria fazer sentido. Não deveria porque estes momentos pertencem aos Yes, banda-ícone do rock progressivo britânico ao lado de King Crimson, Genesis e Emerson, Lake & Palmer — e provavelmente a mais popular na sua época, logo atrás dos Pink Floyd (que não eram vistos exactamente como rock progressivo, antes como entidade sem filiação).
Como sabemos, o rock progressivo é o saco de pancada predilecto de 95% dos fãs de música. É a música que perdeu porque tinha de perder, soçobrando sob o peso da sua ambição desmedida, do aborrecimento atroz que causava e dos seus insuportáveis ares de superioridade. Isto é onde estamos hoje. O recente lançamento de The Studio Albums 1969-1987, que reúne os 13 álbuns de estúdio lançados pela banda no período (edição simples: CD em caixas de cartão reproduzindo as reedições de 2003 e uma pequena nova ilustração de Roger Dean), é oportunidade para contar o outro lado da história. A que reuniu Chris Squire, baixista extraordinário, ao vocalista Jon Anderson para criar música que reunisse harmonias vocais perfeitas ao perfeito domínio instrumental. Juntaram-se-lhes o impressionante baterista Bill Brufford, o guitarrista Peter Banks e o teclista Tony Kaye e o início da banda sinalizou o nascimento de uma nova era: em 1968, no Royal Albert Hall, foram a banda suporte do concerto de despedida dos Cream, culminar do blues rock psicadélico do final de década de 1960.
Quatro anos depois, já com o guitarrista Steve Howe e o teclista Rick Wakeman a completar a formação clássica da banda, tudo tinha mudado. Tal como muitos dos seus contemporâneos, procuravam chegar onde ninguém chegara antes: uma linguagem nova, em que o virtuosismo instrumental serviria para mostrar o rock como arte maior, como possível ponto de confluência de fôlego narrativo com as aprendizagens do jazz e da clássica. Mas os Yes não se ficaram por aí. Até tão longe quanto meados dos anos 1980, atravessaram quase incólumes a passagem do tempo.
Sobreviveram à saída (e à reentrada) de membros emblemáticos como Steve Howe, Jon Anderson e Rick Wakeman, tiveram na sua formação os Buggles Trevor Horn e Geoff Downes, fãs de longa data, mas aparentemente nos antípodas dos Yes (não é Video killed the radio star um hino à concisão pop da new wave?) e entraram pelos anos 1980 com pompa e circunstância, reinventados sob a forma do monstrengo de rock FM que legou ao mundo Owner of a lonely heart (90125, o álbum correspondente, editado em 1983 e hoje datadíssimo, tornou-se ironicamente o álbum mais vendido na história da banda).
Pouco na sua discografia é consistente do princípio ao fim (The Yes Album, Close To The Edge e Fragile são os que mais se aproximam e as experiências orquestrais no segundo, Time And a Word, merecem destaque), mas o seu período clássico da década de 1970 está repleto de preciosidades. Não por acaso, é na apropriação de excertos seleccionados que a banda melhor tem sobrevivido na cultura popular. Ouvimos o motivo que atravessa Siberian Khatru, tão funk quanto funk eram os Funkadelic, e não nos espantamos por, ao longo dos anos, a música dos Yes ser mina a que o hip-hop recorre regularmente (De La Soul, J Dilla, Nas, LL Cool J, Lil Wayne, Salt-N-Pepa). E, no entanto, é como se os Yes não existissem além da caricatura — nem a presença na banda-sonora de Buffalo 66, filme de culto de Vincent Gallo, os tornou vagamente cool.
Ambição
Estamos em 1973. O jornalista destacado para cobrir um concerto da digressão de uns Emerson, Lake & Palmer no auge da sua popularidade concentrou-se naquilo que mais interessava. O material. Discriminou então o número de teclados (às dezenas) de Keith Emerson, as peças que compunham a bateria que haveria de quase esconder do público Carl Palmer e o preço de milhares de libras que custara o tapete persa pisado pelo guitarrista Greg Lake. Um concerto dos Emerson, Lake & Palmer não era simplesmente um concerto. Era uma extravagância, uma experiência wagneriana. Era arte total, diriam as centenas de milhares que enchiam estádios para os ver. Nem todos classificavam a experiência da mesma forma.
Rick Wakeman, teclista de um período em que os teclistas foram elevados ao estatuto de superestrela, não ficava atrás dos Emerson, Lake & Palmer. Famoso pelas extravagância e pelas capas douradas brilhando entre os mil teclados, Wakeman contabilizou vendas de dezenas de milhões dos seus álbuns a solo e apresentou-os em produções que incluíam bailarinos representando no gelo a história do Rei Artur.
Os Yes também não ficavam atrás dos Emerson, Lake & Palmer. Na sua autobiografia, Grumpy Old Rock Star, Wakeman fala da digressão de Tales Of Topographic Oceans (1973), o pináculo de ambição dos Yes, álbum duplo com quatro canções apenas, uma para cada um dos lados dos dois vinis. Conta, caricaturizando, que precisava de indicações sempre que subia a palco, de forma a conseguir ultrapassar os adereços idealizados por Roger Dean, autor das mais icónicas capas da banda: “Vira aqui à esquerda, Rick, trepa aquele cogumelo gigante, ultrapassa a nave e lá atrás, atrás daquela nuvem, estão os teus teclados”.
Wakeman escreve também que Spinal Tap, o mais famoso falso documentário sobre o circo rock, lhe parece quase realista: “Com os Yes nós vivemo-lo.” Seguem-se episódios que parecem realmente saídos do filme, envolvendo um baterista (Alan White) preso no interior de conchas gigantes ou túneis perigosamente frágeis que a banda atravessava para chegar ao centro da acção. Foi por coisas como estas que se chamou à década de 1970 “a década que o bom gosto esqueceu” — por isso e pelos álbuns conceptuais de guião simplório ou simplesmente pateta, pelo disco-sound ou pela imagem de Elton John enfiado num fato do Pato Donald.
Acontece que o disco-sound foi entretanto justamente reabilitado, reenquadrado e reciclado e que os álbuns clássicos de Elton John (pelo menos esses) ganharam o seu lugar respeitável na história da música popular. Os Yes? Os Yes sofreram o mesmo que a maioria dos seus contemporâneos britânicos do progressivo. Ou seja, tal como os Emerson, Lake & Palmer ou os Gentle Giant, são como que uma não-existência na historiografia pop (a excepção são os King Crimson, hoje referência a citar devido à alta cotação do magnífico primeiro álbum, In the Court of the Crimson King, samplado em Power, de Kanye West, e os inclassificáveis Van der Graaf Generator, que atravessaram os tempos incólumes enquanto banda de culto).
A queda
A narrativa oficial diz-nos que o punk chegou para acabar com aqueles dinossauros do rock e para regenerar um cenário habitado por estrelas num pedestal, a partir do qual mostravam o seu carácter divino à populaça através de um virtuosismo inalcançável e ambições teatrais que minavam a ideia do rock como rebelião sincera e autenticidade. Com o punk, diz a narrativa, acabou num ápice, e para não mais voltar, a era de terror do rock progressivo. Mas então…
Em 1977, o ano de explosão mundial do punk, quem podíamos encontrar no topo das tabelas de vendas inglesas? Os Yes, com Going For The One, o álbum em que começaram a descer dos céus das canções de 20 minutos — nos Estados Unidos, chegaram a oitavo lugar. Anos antes, enquanto os Led Zeppelin passeavam pelo mundo como representação máxima do rock’n’roll enquanto bomba sexual, a crítica desdenhava-os. Preferia os Emerson, Lake & Palmer. E Lester Bangs, o mítico crítico americano com altar erguido aos Velvet Underground e a Lou Reed, ele que escreveria sobre o rock progressivo “se não consegues ter verdadeira qualidade, porque não escolher quantidade a uma escala bizantina, porque não ser pomposo se és bem-sucedido a sê-lo?”, elogiava com convicção The Yes Album (1971), o terceiro da banda, aquele em que ficou perfeitamente definido o seu imaginário musical, a sua procura de futuro nos circuitos eléctricos de um sintetizador Moog.
Era música difícil, aquela. Música de alguém que pretendia dar o passo seguinte na história da música popular urbana e escapar à alegada prisão das canções pop de três minutos. Segundo Jon Anderson, tudo começou, curiosamente, quando a sua geração viu os Beatles e os Rolling Stones na televisão e, citamo-lo de cabeça, percebeu que eram pessoas comuns e que, portanto, as pessoas comuns podiam ser estrelas de música — exactamente o mesmo que diriam retrospectivamente aqueles que pegaram em guitarras depois de ver os Ramones ou os Sex Pistols.
Mas esta música complexa e nada imediata reinou durante quase toda uma década. Era incrivelmente popular, vendida aos milhões atraindo milhões às salas de concertos. Atraindo quem? “Hippies. Adolescentes. Fãs que estavam certos de haver algo mais aí fora. Pessoas que queriam tomar ácido e ter as suas pupilas bombardeadas com lasers. Tipos arty que queriam encontrar na música um sentido”, escrevia David Weigel, jornalista de política da Slate, conservador libertário, “maluquinho do prog”, numa série de artigos dedicados ao género publicados em 2012 no Salon.
Eles experimentaram e procuraram de forma febril, delirante e, a partir de determinado momento, tremendamente onanista, música que nunca antes havia sido feita. Chegaram tão alto e a caíram lá tão de cima que, quando finalmente se estilhaçaram no chão da memória, só os indefectíveis tinham esperado para ver e só os indefectíveis prosseguiram com eles (fervorosamente, como atesta qualquer navegação pelos milhares de sites dedicados ao prog por essa Internet fora).
Tão cedo quanto 1973, Chris Welch, veterano jornalista musical britânico, escrevia acerca de A Passion Play, álbum conceptual dos Jethro Tull, que “se é a isto que nos trouxeram de anos de ‘progressão’, então será tempo de voltar atrás”. Os heróis do prog, embriagados pelo dinheiro correndo abundante que lhes alimentava a ambição mas lhes diminuía o critério, nem chegaram a travar. Fizeram como sempre. Aceleraram.
Sim, tiveram a sua quota-parte de culpa. Mas não o suficiente para serem transformados em fantasmas da história. “É estranho, sabe? Uma canção como Siberian Khatru [de Close to the Edge, 1972] soa mesmo hip hoje em dia”, dizia no ano passado o baterista Bill Brufford à Rolling Stone. É realmente estranho. É estranho que seja verdade.