Como se perde um estômago? Gene a gene, ao longo da evolução

A digestão que ocorre no estômago foi uma invenção dos vertebrados. Mas há muitos grupos destes animais em que ele desapareceu. Equipa com portugueses descobriu o grupo de genes envolvido nessa mudança, mas o motivo do fenómeno permanece um mistério.

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O ornitorrinco é um vertebrado sem estômago Stefan Kraft

Uma equipa com investigadores a trabalhar em Portugal foi analisar a genética dos animais sem a função gástrica e conseguiu encontrar um conjunto mínimo de genes que perderam essa função associados à perda da capacidade digestiva, mostra um artigo publicado recentemente na revista Proceedings of the Royal Society B.

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Uma equipa com investigadores a trabalhar em Portugal foi analisar a genética dos animais sem a função gástrica e conseguiu encontrar um conjunto mínimo de genes que perderam essa função associados à perda da capacidade digestiva, mostra um artigo publicado recentemente na revista Proceedings of the Royal Society B.

“É muito elegante a associação de uma característica morfológica [a perda do estômago] e um genoma”, resume Filipe Castro, primeiro autor do artigo, cientista do Centro de Investigação Interdisciplinar Marinha e Ambiental (CIIMAR), da Universidade do Porto. “A novidade aqui é o impacto morfológico. Há uma reorganização relativamente evidente de uma estrutura anatómica.”

O estômago apareceu há cerca de 500 milhões de anos nos vertebrados, depois de haver um fenómeno de duplicação do genoma. As lampreias, que pertencem a uma linha de vertebrados muito antiga, não têm estômago, apesar de terem o genoma duplicado e haver indicações em fósseis de que os seus antepassados tinham estômago, explica o cientista ao PÚBLICO.

Nos tubarões, por exemplo, o estômago está intacto. “Os tubarões têm o tecido do estômago que, quando visto numa lâmina ao microscópio, é tão bonito ou tão feio como o nosso”, diz o biólogo evolucionista.

Nos humanos, a digestão inicia-se na boca, quando a saliva começa a partir as grandes moléculas de amido em moléculas mais pequenas de açúcar. No estômago, é a vez das proteínas. O tecido que forma aquele órgão liberta enzimas que cortam as proteínas em péptidos mais pequenos. Para estas enzimas (pepsinogénios) funcionarem, é necessário que o pH do estômago seja muito baixo, e isso é feito por bombas de protões, que lançam iões de hidrogénio para o estômago.

A digestão prossegue no intestino, onde os hidratos de carbono, os péptidos e as gorduras são partidos até às suas unidades elementares, para assim serem absorvidos e entrarem na circulação sanguínea, alimentando os tecidos.

Quando a função gástrica consome energia a mais
Mas ao longo da evolução e divergência dos vertebrados houve, que se saiba, 15 momentos em que uma população de animais perdeu a função gástrica. Hoje, isto é visível em sete famílias de vertebrados, a maioria peixes.

Os autores deste artigo, que contou ainda com os investigadores Odete Gonçalves e Jonathan Wilson, também do CIIMAR, e com cientistas a trabalhar em França e Singapura, foram olhar para a base genética destas alterações. Analisaram os genomas sequenciados de 14 espécies das sete famílias, e viram que em todas elas se perderam os genes que comandam o fabrico das proteínas das bombas de protões e das enzimas (que são também proteínas que partem proteínas). “Quando o fenótipo existe [ausência de estômago], de certeza que não vamos encontrar estes genes, mas não sabemos qual foi o fenómeno inicial” que provocou esta perda da função gástrica, refere o investigador.

A digestão é um processo que custa muita energia aos organismos. Filipe Castro explica que existe um equilíbrio entre o custo energético da função gástrica, a dieta de cada animal, e a vantagem nutritiva da função gástrica. “Quando este equilíbrio é destruído, o organismo perde a função dos genes”, sugere o cientista.

Pode-se imaginar uma alteração na dieta de um peixe que torna a função gástrica pouco funcional. Nesse momento, indivíduos que nascem com mutações que tornam inoperacionais os genes fundamentais para a digestão no estômago não vão ter mais dificuldade em sobreviver. Pelo contrário, não gastam energia naquela fase da digestão e até têm uma prole maior. E assim instala-se uma nova população sem estômago. “É quase como se fosse irrelevante ter-se estômago”, diz o cientista.

O difícil é reconstruir este caminho evolutivo. Hoje, os biólogos observam populações sem estômago, milhões de anos depois de essa transição ter ocorrido, quando as espécies eram diferentes, viviam noutros locais e tinham, provavelmente, outra alimentação. O que aconteceu exactamente naquele momento permanece um mistério.