O passado não foi lá atrás
Faz agora dois anos, Asghar Farhadi tornava-se no novo “ponta-de-lança” do moderno cinema iraniano com a sucessão de triunfos, críticos e públicos, do notávelUma Separação, que começou com o Urso de Ouro em Berlim 2011 e terminou com o Óscar para Melhor Filme Estrangeiro em 2012. Por isso, começam já a ouvir-se vozes a clamar “vendido!” ao ver O Passado, rodado em França e em francês, e estreado em Cannes 2013, como a entrada de Farhadi num circuito internacional que o afastaria da “pureza iraniana” do seu cinema.
Tudo falso: um pouco como um Abbas Kiarostami, que não perdeu nada da sua “iranianidade” por ir rodar a Itália ou ao Japão, O Passado é um filme tão “iraniano” como Uma Separação o era, porque o que interessa a Farhadi não é a especificidade do país mas a universalidade das personagens, das histórias, das vivências. E se é verdade que as especificidades da sociedade iraniana influenciavam a série de mal-entendidos que construíam a estrutura dramática de Uma Separação, também verdade é que O Passado podia passar-se em Teerão como se passa em Paris. Porque é, mais uma vez, uma história de mal-entendidos derivados de feridas abertas que não foram tratadas como deviam, uma história de divórcio que acaba por pôr em causa o próprio quotidiano de quem a vive, uma história de famílias e de crianças destruídas pela dúvida e pelo segredo. O divórcio é o de Marie-Anne e Ahmad, uma separação de anos só agora legalizada porque ela quer casar com o novo homem da sua vida; ele regressa de Teerão para assinar os papéis, e aterra numa situação familiar complicada, com a filha mais velha dela, de um casamento anterior, em guerra surda com a mãe à volta do novo namorado.
A partir desta situação, Farhadi começa a desenrolar uma trama cuja simplicidade dramática esconde uma infinita complexidade moral e emocional, passada quase toda numa casa em obras que serve de metáfora das areias movediças em que Marie-Anne, Ahmad e Samir, o novo namorado, dão por si atolados: um pântano de dúvidas e inseguranças originadas por uma vontade de “agarrar” a felicidade, que o cineasta iraniano encena com a mesma naturalidade inquietante dos seus filmes anteriores, mas com novas confiança, cuidado e segurança formais. É, se quisermos, uma obra de “maturidade” que explica muito bem como, na verdade, a questão de este ser um filme “francês” é absolutamente irrelevante: admissivelmente, O Passado pode não trazer nada de novo a Uma Separação ou à obra anterior de Farhadi, limitando-se a afinar a pontaria, mas não precisa. É um excelente filme que merece toda a atenção que lhe quisermos dar.
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Faz agora dois anos, Asghar Farhadi tornava-se no novo “ponta-de-lança” do moderno cinema iraniano com a sucessão de triunfos, críticos e públicos, do notávelUma Separação, que começou com o Urso de Ouro em Berlim 2011 e terminou com o Óscar para Melhor Filme Estrangeiro em 2012. Por isso, começam já a ouvir-se vozes a clamar “vendido!” ao ver O Passado, rodado em França e em francês, e estreado em Cannes 2013, como a entrada de Farhadi num circuito internacional que o afastaria da “pureza iraniana” do seu cinema.
Tudo falso: um pouco como um Abbas Kiarostami, que não perdeu nada da sua “iranianidade” por ir rodar a Itália ou ao Japão, O Passado é um filme tão “iraniano” como Uma Separação o era, porque o que interessa a Farhadi não é a especificidade do país mas a universalidade das personagens, das histórias, das vivências. E se é verdade que as especificidades da sociedade iraniana influenciavam a série de mal-entendidos que construíam a estrutura dramática de Uma Separação, também verdade é que O Passado podia passar-se em Teerão como se passa em Paris. Porque é, mais uma vez, uma história de mal-entendidos derivados de feridas abertas que não foram tratadas como deviam, uma história de divórcio que acaba por pôr em causa o próprio quotidiano de quem a vive, uma história de famílias e de crianças destruídas pela dúvida e pelo segredo. O divórcio é o de Marie-Anne e Ahmad, uma separação de anos só agora legalizada porque ela quer casar com o novo homem da sua vida; ele regressa de Teerão para assinar os papéis, e aterra numa situação familiar complicada, com a filha mais velha dela, de um casamento anterior, em guerra surda com a mãe à volta do novo namorado.
A partir desta situação, Farhadi começa a desenrolar uma trama cuja simplicidade dramática esconde uma infinita complexidade moral e emocional, passada quase toda numa casa em obras que serve de metáfora das areias movediças em que Marie-Anne, Ahmad e Samir, o novo namorado, dão por si atolados: um pântano de dúvidas e inseguranças originadas por uma vontade de “agarrar” a felicidade, que o cineasta iraniano encena com a mesma naturalidade inquietante dos seus filmes anteriores, mas com novas confiança, cuidado e segurança formais. É, se quisermos, uma obra de “maturidade” que explica muito bem como, na verdade, a questão de este ser um filme “francês” é absolutamente irrelevante: admissivelmente, O Passado pode não trazer nada de novo a Uma Separação ou à obra anterior de Farhadi, limitando-se a afinar a pontaria, mas não precisa. É um excelente filme que merece toda a atenção que lhe quisermos dar.