Claro que vale a pena
Um amigo perguntou-me se valia mesmo a pena ir ver a exposição A Paisagem Nórdica do Museu do Prado e depois respondeu ele próprio à pergunta: “Vale sempre a pena, não é?”.
Uma boa exposição de arte antiga deve, em primeiro lugar, ter coisas bonitas para ver. É o caso. Deve também questionar o significado e contexto dessas coisas. Já não é o caso.
Quem for à exposição pode contar com várias grandes obras, daquelas que é raro passarem por Portugal, obras nas quais a paisagem se apresenta com uma certa solenidade. Também pode ver obras interessantes, paisagens com cenas pitorescas, que hoje despertam uma atenção mais etnográfica que estética ou filosófica. Mas não deve esperar novidades de monta nem a abertura de problemas estimulantes. É despropositada a grandiloquência dos adjectivos utilizados pelo Secretário de Estado da Cultura português no texto que escreveu para o catálogo. A exposição resulta da necessidade sentida pelo Prado em libertar provisoriamente algum espaço, e só veio a Lisboa depois de um périplo por outras cidades ibéricas. O ante-título (Rubens, Brueghel, Lorrain) é um truque de marketing porque só podemos ver três pinturas de Rubens e de Lorrain, e porque Brueghel não é o famoso Pieter (deste só vemos uma cópia), mas o seu filho Jan o Velho, um excelente pintor, aliás, e o filho deste Jan o Novo. Há ausências flagrantes mas inevitáveis em exposições de um único museu, mesmo quando esse museu é o Prado. Por exemplo falta o melhor da paisagem holandesa propriamente dita, a da planície, do céu e do mar. Falta nomeadamente Jacob van Ruisdael, talvez o mais notável dos paisagistas nórdicos do século XVII, mas de quem o Prado só tem, se não me engano, uma pintura (e não muito significativa). Sem a Holanda, há pouco mar nesta exposição.
O espectacular Rubens de grandes dimensões (Cat. 17) é a única das três obras do autor que vale muito a pena ver. Emociona-nos sobretudo pela pincelada quase impressionista com que o artista traçou o caminho da luz através de um bosque cerrado. Diga-se, aliás, que, com esta e outras excepções, nomeadamente os seus desenhos, o Rubens paisagista é decepcionante face ao Rubens das histórias, da mitologia e do retrato.
Quanto a Claude Lorrain, a decepção provém de que só uma das três obras expostas está à altura do seu génio, a “Paisagem com uma monja mercedária” (Cat. 52). Esta pintura é tão boa como as obras do surpreendente Jan Both, um grande pintor, com quem partilha a parte da exposição dedicada à influência italiana sobre o paisagismo nórdico. Acrescente-se que o Prado tem nas suas colecções obras melhores de ambos os artistas.
Resulta da problemática das relações artísticas entre a Flandres e os Países Baixos, por um lado, e a Itália, por outro, a única tese que se pode deduzir do percurso da exposição e da leitura do catálogo (que é um bom “manual” para leigos). O comissariado madrileno criou uma secção para obras supostamente influenciadas pela estada dos seus autores em Itália e soube escolher estas obras de modo a que qualquer pessoa dê pela diferença: as nuvens deixam de ser brancas e azuis e tornam-se amarelas e ocre, aparecem ruínas espalhadas aqui e ali. Todavia, muitos outros pintores cujas obras estão presentes na exposição estiveram em Itália, pelo menos catorze de entre o total de trinta. A existência de um eixo artístico-cultural fortíssimo entre a Flandres e Roma, é um dos factos mais conhecidos da história europeia dos séculos XVI e seguintes.
No Verão de 2011, os museus de Paris e o Prado organizaram em conjunto uma exposição rica de pinturas vindas de muitas partes e fértil em investigação nova: Roma, Natureza e Ideal. Paisagens, 1600-1650. A exposição mostrou claramente que nem a paisagem nórdica nem o paisagismo romano, tectónico e arquitectónico, teriam existido sem a presença dos mais importantes artistas flamengos em Itália.
Um último ponto: a novidade que a exposição do MNAA constitui não é artística ou histórica; é que foi produzida por uma empresa privada especializada também em espectáculos e com alguma rodagem financeira. Isto permitiu mais publicidade nos media e uma redução drástica dos custos do Estado português. A coisa resultou bem porque a exposição só envolveu dois museus. Eis um facto muito significativo acerca dos tempos que correm: é a isto que vamos ter que nos habituar, a exposições baratas.
Mas é feio sermos mal agradecidos, além de pobres. Não é todos os anos que podemos ver em Lisboa obras com a qualidade de algumas das que estão presentes nesta exposição. De facto, vale a pena lá ir.
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Um amigo perguntou-me se valia mesmo a pena ir ver a exposição A Paisagem Nórdica do Museu do Prado e depois respondeu ele próprio à pergunta: “Vale sempre a pena, não é?”.
Uma boa exposição de arte antiga deve, em primeiro lugar, ter coisas bonitas para ver. É o caso. Deve também questionar o significado e contexto dessas coisas. Já não é o caso.
Quem for à exposição pode contar com várias grandes obras, daquelas que é raro passarem por Portugal, obras nas quais a paisagem se apresenta com uma certa solenidade. Também pode ver obras interessantes, paisagens com cenas pitorescas, que hoje despertam uma atenção mais etnográfica que estética ou filosófica. Mas não deve esperar novidades de monta nem a abertura de problemas estimulantes. É despropositada a grandiloquência dos adjectivos utilizados pelo Secretário de Estado da Cultura português no texto que escreveu para o catálogo. A exposição resulta da necessidade sentida pelo Prado em libertar provisoriamente algum espaço, e só veio a Lisboa depois de um périplo por outras cidades ibéricas. O ante-título (Rubens, Brueghel, Lorrain) é um truque de marketing porque só podemos ver três pinturas de Rubens e de Lorrain, e porque Brueghel não é o famoso Pieter (deste só vemos uma cópia), mas o seu filho Jan o Velho, um excelente pintor, aliás, e o filho deste Jan o Novo. Há ausências flagrantes mas inevitáveis em exposições de um único museu, mesmo quando esse museu é o Prado. Por exemplo falta o melhor da paisagem holandesa propriamente dita, a da planície, do céu e do mar. Falta nomeadamente Jacob van Ruisdael, talvez o mais notável dos paisagistas nórdicos do século XVII, mas de quem o Prado só tem, se não me engano, uma pintura (e não muito significativa). Sem a Holanda, há pouco mar nesta exposição.
O espectacular Rubens de grandes dimensões (Cat. 17) é a única das três obras do autor que vale muito a pena ver. Emociona-nos sobretudo pela pincelada quase impressionista com que o artista traçou o caminho da luz através de um bosque cerrado. Diga-se, aliás, que, com esta e outras excepções, nomeadamente os seus desenhos, o Rubens paisagista é decepcionante face ao Rubens das histórias, da mitologia e do retrato.
Quanto a Claude Lorrain, a decepção provém de que só uma das três obras expostas está à altura do seu génio, a “Paisagem com uma monja mercedária” (Cat. 52). Esta pintura é tão boa como as obras do surpreendente Jan Both, um grande pintor, com quem partilha a parte da exposição dedicada à influência italiana sobre o paisagismo nórdico. Acrescente-se que o Prado tem nas suas colecções obras melhores de ambos os artistas.
Resulta da problemática das relações artísticas entre a Flandres e os Países Baixos, por um lado, e a Itália, por outro, a única tese que se pode deduzir do percurso da exposição e da leitura do catálogo (que é um bom “manual” para leigos). O comissariado madrileno criou uma secção para obras supostamente influenciadas pela estada dos seus autores em Itália e soube escolher estas obras de modo a que qualquer pessoa dê pela diferença: as nuvens deixam de ser brancas e azuis e tornam-se amarelas e ocre, aparecem ruínas espalhadas aqui e ali. Todavia, muitos outros pintores cujas obras estão presentes na exposição estiveram em Itália, pelo menos catorze de entre o total de trinta. A existência de um eixo artístico-cultural fortíssimo entre a Flandres e Roma, é um dos factos mais conhecidos da história europeia dos séculos XVI e seguintes.
No Verão de 2011, os museus de Paris e o Prado organizaram em conjunto uma exposição rica de pinturas vindas de muitas partes e fértil em investigação nova: Roma, Natureza e Ideal. Paisagens, 1600-1650. A exposição mostrou claramente que nem a paisagem nórdica nem o paisagismo romano, tectónico e arquitectónico, teriam existido sem a presença dos mais importantes artistas flamengos em Itália.
Um último ponto: a novidade que a exposição do MNAA constitui não é artística ou histórica; é que foi produzida por uma empresa privada especializada também em espectáculos e com alguma rodagem financeira. Isto permitiu mais publicidade nos media e uma redução drástica dos custos do Estado português. A coisa resultou bem porque a exposição só envolveu dois museus. Eis um facto muito significativo acerca dos tempos que correm: é a isto que vamos ter que nos habituar, a exposições baratas.
Mas é feio sermos mal agradecidos, além de pobres. Não é todos os anos que podemos ver em Lisboa obras com a qualidade de algumas das que estão presentes nesta exposição. De facto, vale a pena lá ir.