Aves nocturnas: “Uuuu – u – uhuhuhuhu”, a coruja-do-mato chama por si
As aves nocturnas são mais difíceis de observar do que as diurnas, mas têm cantos mais simples e fáceis de distinguir. É sobretudo nas vocalizações que se baseiam os censos destas aves e, numa noite de Dezembro, fomos tentar ouvi-las com quem o faz voluntariamente.
Embora algumas rapinas nocturnas também estejam activas durante o dia, especialmente no Norte da Europa, preferem caçar durante a noite, onde estão em vantagem perante as suas presas e os seus potenciais predadores. “Sempre que [as aves de rapina nocturnas] são detectadas durante o dia, são muito incomodadas, mesmo por andorinhas, picanços ou peneireiros”, explica, antes da saída, Rui Lourenço, coordenador, juntamente com o Ricardo Tomé e Inês Roque, do projecto Noctua Portugal – Programa de Monitorização de Aves Nocturnas em Portugal, da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA).
A bióloga Vanessa Oliveira, uma voluntária que tem a seu cargo a monitorização da zona de Sintra, leva o carro cheio. “Nos últimos dois anos, tenho trazido sempre voluntários. Umas pessoas que querem experimentar, outras querem ficar com uma quadrícula [uma zona de observação] e vêm conhecer a metodologia.”
Desta vez, leva três voluntárias, futuras biólogas, que se prepararam para a identificação de rapinas nocturnas com um curso online do site Aves de Portugal, onde também é possível ouvir os sons de outras aves. “Os cantos são simples e muito distintos. É muito mais fácil [identificar os sons das aves nocturnas] do que dos restantes grupos de aves”, afirma Rui Lourenço, que não acompanhou esta saída.
A noite parecia perfeita, iluminada por uma Lua quase cheia e sem nuvens. O frio tinha abrandado e não havia vento, nem chuva. Mas o açude da Mula, o primeiro de cinco pontos de escuta da noite, está cheio de escuteiros que se aglomeram ruidosamente perto da barragem. Esta perturbação não é favorável, porque pode condicionar o comportamento das aves, mas o protocolo deste projecto prevê que se façam sempre os mesmos pontos e sempre pela mesma ordem. Tudo o que as voluntárias podem fazer é esperar que os escuteiros se vão embora.
Falta quase um quarto de hora para as sete da tarde quando, finalmente, se iniciam os dez minutos de escuta, em silêncio absoluto, interrompido ocasionalmente pelo ladrar dos cães ao longe. Os ouvidos atentos captam até o som do mar e, mesmo antes de terminar o tempo, ouve-se aquilo que parecia ser um instrumento musical, mais precisamente uma ocarina: “Uuuu – u – uhuhuhuhu.” É uma coruja-do-mato (Strix aluco), uma ave muito activa vocalmente, cujas vocalizações são muito usadas nos filmes.
A caminho do Convento dos Capuchos, Vanessa Oliveira pára o carro por baixo dos cedros. Passam alguns minutos das sete. Neste, como em todos os outros locais, mantém-se silenciosa e imóvel como uma estátua encostada ao carro. Por vezes, olha para o relógio, outras vezes toma notas na ficha de campo.
Procuram-se voluntários
Embora as restantes voluntárias também mantenham os ouvidos atentos, enquanto se treinam para um dia fazerem o mesmo trabalho em quadrículas que venham a ter a seu cargo, os registos desta noite competem apenas a Vanessa Oliveira. Duas das voluntárias, Marta Alexandre e Patrícia Jorge, vão partilhar a quadrícula em São João das Lampas e Terrugem, também no concelho de Sintra. “Queria ficar com a quadrícula na zona de Cascais, mas já está ocupada”, lamenta, por sua vez, a voluntária Joana Pereira.
A área metropolitana de Lisboa já tem muitas das suas zonas de amostragem atribuídas a voluntários, mas o resto do país tem ainda muitos pontos disponíveis, que os cerca de 80 voluntários inscritos no projecto Noctua não conseguem cobrir. Qualquer pessoa que queira voluntariar-se para este ou outros projectos da SPEA pode inscrever-se directamente no site desta sociedade (http://www.spea.pt).
Enquanto esperam pelo fim dos dez minutos por baixo dos cedros, em silêncio, um avião enche de ruído o espaço, ao cruzar o céu pouco estrelado de tão iluminado que estava pela Lua e pelas luzes das localidades que circundam a serra de Sintra. Ouve-se um som permanente – o nosso próprio pulsar do sangue nos ouvidos –, e depois um silvo, que mais parece um miado. Éum mocho-galego (“Athene noctua”).
Foi esta espécie que deu nome ao projecto Noctua, primeiro em Espanha, em 1997, depois, em 2009, em Portugal. Ambos os projectos usam a mesma metodologia e espera-se que os dados possam ser cruzados no futuro. “Não conseguimos estabelecer uma cooperação com outros grupos [além de Espanha], porque não existem muitos programas de monitorização de aves nocturnas, e os que existem são dirigidos a uma determinada espécie”, diz Rui Lourenço.
Perto das oito horas, pára-se num caminho de terra batida, em Janas, no meio de campos agrícolas e zonas de pasto. O som dos carros é mais intenso e o dos cães mais permanente. O início do uivo de um cão pode mesmo ser confundido com o piado de uma coruja-do-mato. “Gostávamos de poder dar formação para observadores menos experientes. Mas temos pouca disponibilidade para a formação directa”, lamenta Rui Lourenço, agora ocupado com o seu pós-doutoramento também com aves de rapina nocturnas.
Os colaboradores vão ganhando experiência com o treino ou acompanhando colaboradores mais treinados, como Vanessa Oliveira, que já formou muitos voluntários. “Vêm pessoas das mais variadas profissões e com as mais variadas motivações: porque querem fazer parte de um grupo, porque querem aplicar os conhecimentos que têm, ou porque estão fartos de passar a semana sentados no escritório”, afirma a bióloga.
A cada colaborador é atribuída uma quadrícula de dez quilómetros quadrados, onde terão de ser efectuados cinco pontos de escuta durante dez minutos cada. Os locais devem ser tão diversos quanto possível, representando vários habitats da zona demarcada. Cada quadrícula deverá ser visitada três vezes por ano (entre Dezembro-Janeiro, Março-Abril e Maio-Junho) para aproveitar os picos de actividade das espécies, normalmente durante a época da reprodução.
No caminho para Lourel, contorna-se a serra de Sintra, encimada por um Castelo dos Mouros e um Palácio da Pena profusamente iluminados. O próximo ponto de escuta fica próximo de zonas de mato e de pousio, e de alguns pomares. No local escolhido, ouve-se um som semelhante aos estalidos que fazemos com a língua. Talvez seja uma perdiz, apreciadora deste tipo de ambiente, mas não contemplada neste censo de aves nocturnas.
A perdiz, assim como outras aves nidificantes diurnas, são contabilizadas noutra campanha da SPEA – o Censos de Aves Comuns –, que ocorre em Abril-Maio. Os dados obtidos neste programa de monitorização de aves comuns, iniciado em 2004, são indicadores de referência para a Estratégia Nacional de Desenvolvimento Sustentável e para o Programa de Desenvolvimento Rural, e também se baseiam em trabalho voluntário.
Em 2014, irá decorrer o Censo Internacional da Cegonha-branca, que se repete a cada dez anos. E neste momento estão a decorrer os censos do projecto Arenaria, dedicado às aves do litoral, e as Contagens de Aves no Natal e no Ano Novo, para espécies invernantes dos campos agrícolas.
São quase nove horas e está a iniciar-se a escuta no último ponto, na estrada que liga o Palácio de Seteais ao Palácio de Monserrate. O único som ouvido parece de um mocho-d’orelhas (Otus scops), mas a sua vocalização pode ser confundida com a do sapo-parteiro. “Na dúvida, é melhor não pôr nada”, esclarece Vanessa Oliveira.
Existem outras espécies de rapinas nocturnas que podem ser monitorizadas com este método, como o bufo-real (Bubo bubo), que deve o seu nome científico ao som que emite. Ou a coruja-das-torres, que, afinal, não se chegou a ouvir nesta noite. Mas também há outras espécies nocturnas que os voluntários do Noctua esperam ouvir, como os noitibós, aves discretas que caçam insectos durante a noite, e o alcaravão, incluído neste censo nocturno porque é difícil de detectar durante o dia.
“É um trabalho de campo peculiar, com uma perspectiva diferente. É bom para quem quer ter uma experiência sensorial diferente, mais baseada na audição do que na visão”, incentiva Rui Lourenço, que valoriza o papel dos cidadãos nos projectos de conservação.
Pelas 21h30, a experiência auditiva acaba. Mesmo os ouvidos menos experientes conseguiram detectar os sons das poucas aves que se manifestaram. As jovens aprendizes dizem que não têm dúvidas, a metodologia é bastante simples. Fica a vontade de voltar ao local na próxima temporada de escutas, em Março, para ouvir os sons primaveris.
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Embora algumas rapinas nocturnas também estejam activas durante o dia, especialmente no Norte da Europa, preferem caçar durante a noite, onde estão em vantagem perante as suas presas e os seus potenciais predadores. “Sempre que [as aves de rapina nocturnas] são detectadas durante o dia, são muito incomodadas, mesmo por andorinhas, picanços ou peneireiros”, explica, antes da saída, Rui Lourenço, coordenador, juntamente com o Ricardo Tomé e Inês Roque, do projecto Noctua Portugal – Programa de Monitorização de Aves Nocturnas em Portugal, da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA).
A bióloga Vanessa Oliveira, uma voluntária que tem a seu cargo a monitorização da zona de Sintra, leva o carro cheio. “Nos últimos dois anos, tenho trazido sempre voluntários. Umas pessoas que querem experimentar, outras querem ficar com uma quadrícula [uma zona de observação] e vêm conhecer a metodologia.”
Desta vez, leva três voluntárias, futuras biólogas, que se prepararam para a identificação de rapinas nocturnas com um curso online do site Aves de Portugal, onde também é possível ouvir os sons de outras aves. “Os cantos são simples e muito distintos. É muito mais fácil [identificar os sons das aves nocturnas] do que dos restantes grupos de aves”, afirma Rui Lourenço, que não acompanhou esta saída.
A noite parecia perfeita, iluminada por uma Lua quase cheia e sem nuvens. O frio tinha abrandado e não havia vento, nem chuva. Mas o açude da Mula, o primeiro de cinco pontos de escuta da noite, está cheio de escuteiros que se aglomeram ruidosamente perto da barragem. Esta perturbação não é favorável, porque pode condicionar o comportamento das aves, mas o protocolo deste projecto prevê que se façam sempre os mesmos pontos e sempre pela mesma ordem. Tudo o que as voluntárias podem fazer é esperar que os escuteiros se vão embora.
Falta quase um quarto de hora para as sete da tarde quando, finalmente, se iniciam os dez minutos de escuta, em silêncio absoluto, interrompido ocasionalmente pelo ladrar dos cães ao longe. Os ouvidos atentos captam até o som do mar e, mesmo antes de terminar o tempo, ouve-se aquilo que parecia ser um instrumento musical, mais precisamente uma ocarina: “Uuuu – u – uhuhuhuhu.” É uma coruja-do-mato (Strix aluco), uma ave muito activa vocalmente, cujas vocalizações são muito usadas nos filmes.
A caminho do Convento dos Capuchos, Vanessa Oliveira pára o carro por baixo dos cedros. Passam alguns minutos das sete. Neste, como em todos os outros locais, mantém-se silenciosa e imóvel como uma estátua encostada ao carro. Por vezes, olha para o relógio, outras vezes toma notas na ficha de campo.
Procuram-se voluntários
Embora as restantes voluntárias também mantenham os ouvidos atentos, enquanto se treinam para um dia fazerem o mesmo trabalho em quadrículas que venham a ter a seu cargo, os registos desta noite competem apenas a Vanessa Oliveira. Duas das voluntárias, Marta Alexandre e Patrícia Jorge, vão partilhar a quadrícula em São João das Lampas e Terrugem, também no concelho de Sintra. “Queria ficar com a quadrícula na zona de Cascais, mas já está ocupada”, lamenta, por sua vez, a voluntária Joana Pereira.
A área metropolitana de Lisboa já tem muitas das suas zonas de amostragem atribuídas a voluntários, mas o resto do país tem ainda muitos pontos disponíveis, que os cerca de 80 voluntários inscritos no projecto Noctua não conseguem cobrir. Qualquer pessoa que queira voluntariar-se para este ou outros projectos da SPEA pode inscrever-se directamente no site desta sociedade (http://www.spea.pt).
Enquanto esperam pelo fim dos dez minutos por baixo dos cedros, em silêncio, um avião enche de ruído o espaço, ao cruzar o céu pouco estrelado de tão iluminado que estava pela Lua e pelas luzes das localidades que circundam a serra de Sintra. Ouve-se um som permanente – o nosso próprio pulsar do sangue nos ouvidos –, e depois um silvo, que mais parece um miado. Éum mocho-galego (“Athene noctua”).
Foi esta espécie que deu nome ao projecto Noctua, primeiro em Espanha, em 1997, depois, em 2009, em Portugal. Ambos os projectos usam a mesma metodologia e espera-se que os dados possam ser cruzados no futuro. “Não conseguimos estabelecer uma cooperação com outros grupos [além de Espanha], porque não existem muitos programas de monitorização de aves nocturnas, e os que existem são dirigidos a uma determinada espécie”, diz Rui Lourenço.
Perto das oito horas, pára-se num caminho de terra batida, em Janas, no meio de campos agrícolas e zonas de pasto. O som dos carros é mais intenso e o dos cães mais permanente. O início do uivo de um cão pode mesmo ser confundido com o piado de uma coruja-do-mato. “Gostávamos de poder dar formação para observadores menos experientes. Mas temos pouca disponibilidade para a formação directa”, lamenta Rui Lourenço, agora ocupado com o seu pós-doutoramento também com aves de rapina nocturnas.
Os colaboradores vão ganhando experiência com o treino ou acompanhando colaboradores mais treinados, como Vanessa Oliveira, que já formou muitos voluntários. “Vêm pessoas das mais variadas profissões e com as mais variadas motivações: porque querem fazer parte de um grupo, porque querem aplicar os conhecimentos que têm, ou porque estão fartos de passar a semana sentados no escritório”, afirma a bióloga.
A cada colaborador é atribuída uma quadrícula de dez quilómetros quadrados, onde terão de ser efectuados cinco pontos de escuta durante dez minutos cada. Os locais devem ser tão diversos quanto possível, representando vários habitats da zona demarcada. Cada quadrícula deverá ser visitada três vezes por ano (entre Dezembro-Janeiro, Março-Abril e Maio-Junho) para aproveitar os picos de actividade das espécies, normalmente durante a época da reprodução.
No caminho para Lourel, contorna-se a serra de Sintra, encimada por um Castelo dos Mouros e um Palácio da Pena profusamente iluminados. O próximo ponto de escuta fica próximo de zonas de mato e de pousio, e de alguns pomares. No local escolhido, ouve-se um som semelhante aos estalidos que fazemos com a língua. Talvez seja uma perdiz, apreciadora deste tipo de ambiente, mas não contemplada neste censo de aves nocturnas.
A perdiz, assim como outras aves nidificantes diurnas, são contabilizadas noutra campanha da SPEA – o Censos de Aves Comuns –, que ocorre em Abril-Maio. Os dados obtidos neste programa de monitorização de aves comuns, iniciado em 2004, são indicadores de referência para a Estratégia Nacional de Desenvolvimento Sustentável e para o Programa de Desenvolvimento Rural, e também se baseiam em trabalho voluntário.
Em 2014, irá decorrer o Censo Internacional da Cegonha-branca, que se repete a cada dez anos. E neste momento estão a decorrer os censos do projecto Arenaria, dedicado às aves do litoral, e as Contagens de Aves no Natal e no Ano Novo, para espécies invernantes dos campos agrícolas.
São quase nove horas e está a iniciar-se a escuta no último ponto, na estrada que liga o Palácio de Seteais ao Palácio de Monserrate. O único som ouvido parece de um mocho-d’orelhas (Otus scops), mas a sua vocalização pode ser confundida com a do sapo-parteiro. “Na dúvida, é melhor não pôr nada”, esclarece Vanessa Oliveira.
Existem outras espécies de rapinas nocturnas que podem ser monitorizadas com este método, como o bufo-real (Bubo bubo), que deve o seu nome científico ao som que emite. Ou a coruja-das-torres, que, afinal, não se chegou a ouvir nesta noite. Mas também há outras espécies nocturnas que os voluntários do Noctua esperam ouvir, como os noitibós, aves discretas que caçam insectos durante a noite, e o alcaravão, incluído neste censo nocturno porque é difícil de detectar durante o dia.
“É um trabalho de campo peculiar, com uma perspectiva diferente. É bom para quem quer ter uma experiência sensorial diferente, mais baseada na audição do que na visão”, incentiva Rui Lourenço, que valoriza o papel dos cidadãos nos projectos de conservação.
Pelas 21h30, a experiência auditiva acaba. Mesmo os ouvidos menos experientes conseguiram detectar os sons das poucas aves que se manifestaram. As jovens aprendizes dizem que não têm dúvidas, a metodologia é bastante simples. Fica a vontade de voltar ao local na próxima temporada de escutas, em Março, para ouvir os sons primaveris.