Há cem anos ou agora, em livro ou em filme, Os Maias são Portugal
João Botelho filma Os Maias e faz do romance de Eça de Queirós uma mistura de ópera e reflexão. Neste espelho em forma de filme, Portugal vê-se, sempre igual, há mais de um século.
“Uma personagem que muita gente imagina, que pode ser qualquer um de nós. Qualquer um de nós pode fazer estes personagens”, conclui o actor, porque, afinal, Eça de Queirós escreveu-nos. Somos destinatários e assunto de um romance irremediavelmente cinematográfico, porque a trama não é só a história de uma família e da relação incestuosa entre Carlos e Maria Eduarda. É Portugal. Portugal oitocentista, Portugal entroikado.
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“Uma personagem que muita gente imagina, que pode ser qualquer um de nós. Qualquer um de nós pode fazer estes personagens”, conclui o actor, porque, afinal, Eça de Queirós escreveu-nos. Somos destinatários e assunto de um romance irremediavelmente cinematográfico, porque a trama não é só a história de uma família e da relação incestuosa entre Carlos e Maria Eduarda. É Portugal. Portugal oitocentista, Portugal entroikado.
É “uma parábola sobre a quebra de uma geração e de uma ideia de país”, opina Alexandre Oliveira, o produtor.
Enquanto a equipa de Os Maias - Alguns Episódios da Vida Amorosa tenta deslindar um problema de luzes e os figurantes se aquecem ou deambulam pelo hangar em Brejos de Azeitão, perto de Sesimbra, os cigarros de João Botelho apagam-se-lhe nos dedos enquanto gesticula ao falar.
“Estamos numa situação quase igual à d’Os Maias, à beira da bancarrota, a pedir empréstimos; naquela altura pedimos empréstimo a um banco inglês e levámos 99 anos a pagar, acabámos de o pagar em 2001”, agita-se o realizador do filme cuja rodagem acabou na madrugada deste domingo.
Somos todos Os Maias, mas eles é que são os profissionais: Graciano Dias é Carlos da Maia, Marcello Urgeghe é Craft, Catarina Wallenstein é Maria Monforte e o estreante no cinema português Pedro Inês - “tem um nome incrível, tem a tragédia portuguesa toda no nome”, diz Botelho - é João da Ega. Há ainda papéis para João Perry, Ricardo Aibeo, Filipe Vargas, Adriano Luz, Ana Moreira, Rita Blanco ou Maria João Pinho.
O diagnóstico de Eça está tão actualizado que João Botelho e a Ar de Filmes decidiram filmar um dos mais estudados e amados romances portugueses (do qual já se fizeram séries de televisão). Dali vê-se “um Portugal imutável”, que Eça descreve com ironia social, política e económica, a luta de classes, e cujas frases João Botelho cita constantemente. “Na última cena d’Os Maias, e na última cena do filme [as personagens dizem]: ‘Eu não corro para a glória, nem para o poder, nem para o dinheiro, não alterava este passinho lento, curto, que é o passo que se deve ter’; e lembram-se que têm um jantar e desatam a correr. Portanto, os portugueses correm para a comida. O problema é quando ela acabar, e isso está perto.”
Fala de Belmiro de Azevedo, de Alexandre Soares dos Santos, do que simbolizam os homens mais ricos de um país de serviços. “O Rufino no Sarau da Trindade é igual a qualquer deputado hoje que é demagogo na Assembleia; o banqueiro Cohen é igual aos Espírito Santo de hoje, é tudo igual. Pouco se produz, consome-se”, reflecte. “Como é um país de intermediários, é um filme sobre os intermediários e é um filme actual sobre Portugal.”
O Chiado num hangar
Nem chega a ser uma piada, mas é recorrente à chegada ao hangar: aqui, no meio da noite em Brejos de Azeitão, não há aviões, há o Chiado. Reconhece-se a Casa Havaneza e a barbearia que se apresenta até hoje com as mesmas letras na montra, e lá ao fundo os Armazéns do Chiado. “Quase se vê a Fnac”; “A seguir à Benetton”, vão dizendo aos recém-chegados os elementos da produção.
Já se conta com isto numa rodagem: o fictício cruza-se com o prosaico, os figurinos são desfigurados pelas rotinas. Numa viagem ao final do século XIX como é esta de Os Maias (1888), também já se conta com um sortido de anacronismos de bastidores. As três calèches de coleccionador dignamente alinhadas com uma Ford Transit descomplexada, os figurantes de casaca e bigode retorcido ou de vestidos mil-folhas de telemóvel na mão ou blusão de cabedal pelas costas para matar o tempo e domar o frio. João Botelho é o primeiro a desfazer a ilusão. “Nunca faço filmes de época, são do dia em que os faço.”
Falamos frente ao telão, versão gigante de uma pintura de uma cena de hipódromo de João Queiroz que está de costas voltadas para o Chiado. Neste hangar, Lisboa é mesmo um ovo e o hipódromo de Belém está muito perto do Grandela. Diz que “trabalha para o tempo, para os netos, e não para os contemporâneos”.
“Daí este artifício”, prossegue o realizador, mas que também vem do amor do escritor oitocentista pela ópera, muitas vezes referida no texto. “O artifício é dado à partida, depois o que interessa, o que é matéria, é o texto do Eça.” Os telões do pintor João Queiroz são o pano de fundo para os quadros do libreto de ópera em que Botelho transformou as 700 páginas do romance em 180 episódios de uma vida portuguesa e romântica - “não é um resumo, é uma fragmentação”.
Há o Chiado, o hipódromo, mas também a Rua Ivens e o exterior do Ramalhete (a casa da família Maia, acompanhada ao longo de três gerações por Eça), em Santos. Algumas cenas de interiores, filmada em locais como o palacete de Veva de Lima, em Lisboa, ou em Ponte de Lima e Cabeceiro de Basto, são filmadas com a iluminação que Botelho tanto trabalha na sua cinematografia - “a sombra é uma coisa boa”, “chiaroscuro eu gosto” são frases que vai soltando ao longo da noite.
Aqui, debaixo dos focos que tornam a noite em dia nas corridas, Botelho esclarece de vez: “Aquela ideia da reprodução do real que se podia fazer numa série da BBC ou num filme americano não me interessa absolutamente nada. É um filme de actores”.
Graciano Dias tem aqui o seu primeiro papel de protagonista no cinema. “O João trabalha muito com quadros, é como se saíssemos de quadros do Caravaggio e pudéssemos representar sem expor o naturalismo e conseguindo passar todo o texto”, explica sobre os últimos 50 dias de filmagens. Como actor, “é muito exigente no sentido em que não temos a liberdade de representação total como num filme naturalista, num filme americano”. Por isso, e apesar de “algum nervosismo” e mesmo “medo”, há que pôr de parte alguma tentação de exibir o seu “virtuosismo enquanto actor” e deixar Eça falar. “É mais importante anularmo-nos e conseguir ser a literatura dele.”
Maias pela estrada fora
Botelho já viu este filme. “Eu vinha do [Filme do] Desassossego, que não é brincadeira nenhuma”, sorri, prometendo-se um próximo projecto só com “um actor, um projector e um décor. E a preto e branco”. E antes de filmar o livro de Fernando Pessoa foi a vez de Agustina (A Corte do Norte) ou de Almeida Garrett (Quem És Tu?). “Uma aventura incrível, isto”, diz o realizador, um dos motores de uma equipa que envolveu ao longo de dois meses de filmagens cerca de mil figurantes e 50 actores.
Hoje prepara-se primeiro um travelling, um plano sequência que custou a pôr no sítio mas que, ao segundo take completo, está feito. “Isto não é verdade, é tudo mentira”, diz Botelho olhando para o telão atrás de si e que, com os restantes, será usado pela autarquia num dos seus museus e numa evocação queirosiana. “O importante é o texto do Eça, uma obra-prima da literatura portuguesa, o grande romance do século XIX.”
Para além dos sintomas de portugalidade crónica que a equipa diagnostica num filme sobre Os Maias, há aqui um lado pedagógico. Alexandre Oliveira, que vive neste filme a sua maior aventura enquanto produtor (Ar de Filmes), está por todo o lado. Ajeita os figurantes, ajuda a limpar o telão do hipódromo do pó, e esteve também nas escolas e nos teatros municipais com João Botelho quando da digressão do Filme do Desassossego. “O João ficou muito estimulado”, lembra. Pela digressão, pela aproximação a novos públicos, pelos miúdos. E Os Maias - Alguns Episódios da Vida Romântica nasce também daí, como “um compromisso entre o filme que o João gostaria de fazer e a estrutura [de itinerância e escolas] que tínhamos montado” e que queriam repetir.
Os Maias - Alguns Episódios da Vida Romântica custa 1,5 milhões de euros, dos quais 600 mil atribuídos pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) nos concursos aos apoios à produção em 2011, 170 mil da Câmara de Lisboa, 120 mil euros vindos do congénere brasileiro do ICA e uma boa fatia vinda da estreia do banco Montepio no apoio a um filme português, bem como da compra pela RTP dos direitos de exibição da mini-série de quatro episódios que vai passar a partir do Outono de 2015 no canal.
O filme estreia-se com a Lusomundo nos cinemas em Setembro de 2014 e passados dois meses vai para a estrada nos passos de Filme do Desassossego e para festivais no Brasil - Maria Eduarda é a actriz brasileira Maria Flor e a voz off de Eça, o narrador, está entregue em Portugal ao barítono Jorge Vaz de Carvalho, mas no Brasil poderá ser a de José Wilker.
A actriz Rita Blanco põe figurantes, actores e equipa a rir com a sua pantomima contagiante enquanto se prepara a cena seguinte, mas uma hora antes aquela pista de corridas estava vazia. “É um filme muito caro para Portugal, muito barato para o mundo”, resumia no cenário sem gente João Botelho.
A sombra do ano zero do cinema português - que, para Alexandre Oliveira, se estendeu também por este 2013 que agora termina - e dos problemas orçamentais do ICA por causa da falta de pagamento da taxa anual pelos operadores de televisão por subscrição pairam sobre o discurso destes dois homens. “O cinema em Portugal é muito pesado, é uma coisa rara, difícil. É um privilégio estar a filmar numa altura em que não há dinheiro para o cinema, em que não há dinheiro para nada, isto é um luxo.”