A Ajuda continua a renovar-se numa capela escondida e no berço de um príncipe que foi rei
O palácio nacional de D. Luís e D. Maria Pia era uma casa onde se educavam príncipes. E eles corriam pelas salas e subiam aos telhados. Um dos berços de D. Carlos foi restaurado e está agora na sala onde ele nasceu. Entretanto, os trabalhos continuam na capela da rainha, fechada há anos.
“Gosto que as pessoas que aqui entram sintam que estão numa casa onde viveu uma família. E que não pensem nela apenas como uma família real com obrigações de Estado”, diz José Alberto Ribeiro, director do Palácio Nacional da Ajuda desde Maio. D. Luís e D. Maria Pia eram reis, é certo, mas também eram pais, recebiam familiares e davam festas para os amigos, lembra. “Tinham dois filhos para educar, D. Carlos e D. Afonso, de quem eram muito próximos.” É ela que anota, por exemplo, numas fitas de nastro as medidas de D. Carlos e do irmão, entre os três meses e os três anos e 1/3. É ele que ameaça pôr os infantes de castigo sempre que os dois decidem ir brincar para os telhados da Ajuda, depois de fugirem às amas e aos professores, explica o director.
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“Gosto que as pessoas que aqui entram sintam que estão numa casa onde viveu uma família. E que não pensem nela apenas como uma família real com obrigações de Estado”, diz José Alberto Ribeiro, director do Palácio Nacional da Ajuda desde Maio. D. Luís e D. Maria Pia eram reis, é certo, mas também eram pais, recebiam familiares e davam festas para os amigos, lembra. “Tinham dois filhos para educar, D. Carlos e D. Afonso, de quem eram muito próximos.” É ela que anota, por exemplo, numas fitas de nastro as medidas de D. Carlos e do irmão, entre os três meses e os três anos e 1/3. É ele que ameaça pôr os infantes de castigo sempre que os dois decidem ir brincar para os telhados da Ajuda, depois de fugirem às amas e aos professores, explica o director.
“É claro que as crianças tinham amas-de-leite, como era hábito na época, mas os reis envolviam-se muito na sua educação e nota-se bem que tinham um grande orgulho nos filhos.” Maria Pia faz questão de os levar muito cedo a Itália para conhecerem a família materna, manda-os fotografar frequentemente e prepara-lhes festas de Natal a que não falta sequer um pinheiro enfeitado ao gosto da tradição nórdica, introduzida em Portugal pelo avô dos príncipes, D. Fernando II. D. Luís ria-se com frequência das traquinices dos filhos, mesmo quando o mais velho resolvia percorrer o palácio a tocar tambor, conta Carmina Correia Guedes no livro A Educação dos Príncipes no Paço da Ajuda (Ed. Palácio Nacional da Ajuda).
O historiador Rui Ramos, autor de uma biografia de D. Carlos (Temas e Debates), é mais contido no que toca à proximidade entre os reis e os filhos, dizendo que, na maior parte do tempo, estavam separados, embora houvesse um esforço de parte a parte para demonstrar cumplicidade, e não só em público. Ramos e Correia Guedes concordam, no entanto, que todo o palácio era um território lúdico para os pequenos príncipes, que, segundo o historiador, percorriam as salas do chamado “andar nobre” (1.º piso) de patins e se demoravam no jardim botânico, entretendo-se “a arreliar os macacos da enorme colecção de animais do rei”.
Muitos dos objectos ligados à infância dos príncipes - de sólidos de madeira a aguarelas, passando pelas toucas de renda que usaram desde muito cedo, por pequenos uniformes militares e até por caracóis de cabelo que estavam nas reservas - estão espalhados pelas vitrinas do palácio e devidamente assinalados. Juntos formam um conjunto de 150 itens ligados ao 150.º aniversário do nascimento de D. Carlos (1863-1908), o filho mais velho de D. Luís e D. Maria Pia, e ajudam a “humanizar” esta família real. “Com estes objectos entramos num universo ligado aos afectos que cria uma relação imediata com o público”, acrescenta José Alberto Ribeiro, chamando a atenção para um telegrama em que a rainha Vitória de Inglaterra se mostra interessada em saber que nome vão os reis dar ao pequeno príncipe. Um pouco inesperadamente, explica ainda o director, acabam por optar pelo nome do avô materno. “Maria Pia, que foi mãe aos 15 anos, chamava-lhe Carlino.”
Um destes objectos é precisamente o berço que D. Carlos usou no seu baptizado e que agora se pode ver na Sala Verde, onde o rei nasceu. O seu restauro ainda não está concluído – só a primeira fase, que tratou da estrutura em madeira, dos pequenos colchões ou das cortinas em tule bordado -, mas dá já para constatar que as conservadoras da Ajuda e os técnicos do Laboratório José de Figueiredo, ligado tal como o palácio à Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), tiveram muito a fazer entre Junho e Setembro.
Um berço de cerimónia
Filomena Mira, técnica de conservação do palácio, e Manuela Santana e Maria José Tavares, responsáveis pelos têxteis e mobiliário, juntaram-se a outros três restauradores do Laboratório José de Figueiredo (Filomena Rodrigues, Paula Monteiro e Luís Pedro) para colocar este berço de aparato (oficial, de cerimónia) de meados do século XIX o mais próximo possível do seu aspecto original.
Primeiro, explica Manuela Santana, foi preciso ir às fontes históricas para garantir que se tratava mesmo do berço de D. Carlos e só depois se traçou um plano de intervenção – tudo “em tempo recorde”, garante. Agora é preciso concluir o que se começou, acrescenta Maria José Tavares, aprofundando a investigação em jornais da época e outros documentos e dando tempo a que os técnicos se ocupem do dossel em damasco de seda verde que, depois de restaurado, deverá cobrir o tule bordado em branco pérola que tanto trabalho deu.
“A estrutura em madeira não apresentava problemas de maior”, explica ao PÚBLICO Luís Pedro, “mas os têxteis estavam todos muito frágeis e degradados, sobretudo o tule e o dossel verde”. A maior dificuldade foi, no entanto, a desmontagem, que deixou o berço dividido em dezenas de partes. “Esta é uma peça complexa e desmontá-la foi difícil. Foi toda fotografada ao pormenor e algumas parcelas radiografadas. Tínhamos de ter a certeza de que, no fim, tudo batia certo.”
Na madeira, as lacunas de folha de ouro não foram preenchidas, mas a limpeza das superfícies foi muito exigente e, a olho nu, não se nota que haja falhas de maior, garante o técnico do laboratório. “Agora temos de pegar nas cortinas verdes, que têm grandes rasgões.” Manuela Santana e Maria José Tavares esperam que os trabalhos sejam concluídos no decorrer do próximo ano.
Uma capela por descobrir
O berço de D. Carlos é um dos itens mais recentes de uma extensa lista de acções de restauro e conservação que começaram na direcção de Isabel Silveira Godinho com salas no piso térreo do palácio e no “andar nobre” e que, agora, continuam com os objectivos traçados pelo seu sucessor.
José Alberto Ribeiro e a sua equipa vão dedicar-se agora àquela a que o director chama “uma das muitas jóias escondidas” da Ajuda – a capela desenhada por Miguel Ventura Terra, o arquitecto a quem se deve a reconversão do edifício do Parlamento ou os projectos para a Maternidade Alfredo da Costa e os Liceus Camões e Pedro Nunes, todos em Lisboa.
“Não fazia sentido ter esta sala fechada há anos e anos quando se trata de um palácio de reis católicos e de uma rainha como Maria Pia, italiana e particularmente devota”, diz. “Muitos dos estrangeiros que nos visitam perguntam onde fica a capela.”
Encomendada pela própria Maria Pia (1847-1911), data de finais do século XIX, mas pouco se sabe sobre ela. A rainha usava-a depois da morte de D. Luís (1838-1889) e fez questão que tivesse nos vitrais as armas de Sabóia e de Portugal. São esses vitrais que agora ocupam duas grandes mesas de trabalho numa velha cozinha de lavagens transformada em oficina e que, antes de retirados, ajudavam a reforçar a atmosfera da capela, com paredes pontuadas de estrelas douradas, tecto de madeira e umas portas enormes com ferragens elegantes. Há nela qualquer coisa de catedral medieval inglesa, mas em miniatura.
“Era uma arrecadação e agora queremos transformá-lo num espaço de exposição da nossa pintura religiosa, onde vamos mostrar também alfaias litúrgicas saídas das reservas”, acrescenta o director. Refere-se a tocheiros e lanternins processionais, cristos em marfim e outros objectos usados no culto, como paramentos e cálices, alguns deles feitos para a própria capela.
A intervenção, que deverá estar concluída até ao fim do primeiro trimestre do próximo ano, está orçada em mais de 70 mil euros e será custeada pela Fundação Millennium BCP, mecenas que está também a apoiar, neste momento, trabalhos de conservação nos museus nacionais de Arte Antiga e do Azulejo.
“Mas o restauro não é o fim dos trabalhos na capela – é preciso continuar a estudá-la para a conhecermos verdadeiramente", conclui José Pedro Ribeiro. Com o berço do futuro rei passa-se o mesmo. “Cada vez que mexemos num espaço ou numa peça, ficamos a conhecer melhor esta família, que é a melhor maneira de conhecer este palácio.”