Com quantos retalhos se cose um grão-ducado
Uma cidade como uma aldeia. Um país como uma cidade. Não se pense, porém, que o seu diminuto tamanho lhe reduz qualidades. Pode não ser o primeiro destino que vem à cabeça quando se pensa em férias, mas o Luxemburgo esconde muito pano para mangas.
Zero graus, 90% de humidade, nevoeiro glacial.” No ecrã, a informação meteorológica já nos deixava antecipar como seria o nosso filme no Luxemburgo. E, cena a cena, comprovou-se: o glacial, podemos garantir, foi sentido por cada ossinho do corpo, o nevoeiro lamentado pelos olhos, já os zero graus pareceram-nos claramente optimistas (é que, graças a uma leve aragem cortante, juraríamos até estar com vários negativos).
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Zero graus, 90% de humidade, nevoeiro glacial.” No ecrã, a informação meteorológica já nos deixava antecipar como seria o nosso filme no Luxemburgo. E, cena a cena, comprovou-se: o glacial, podemos garantir, foi sentido por cada ossinho do corpo, o nevoeiro lamentado pelos olhos, já os zero graus pareceram-nos claramente optimistas (é que, graças a uma leve aragem cortante, juraríamos até estar com vários negativos).
Desde o momento da chegada (e precisamente até cerca de três horas antes da partida), o Luxemburgo parecia ter vestido para nós um véu intransponível. Por isso, entre as descrições que se seguem não se encontrará a vista do melhor miradouro da cidade (onde estivemos), os viadutos das auto-estradas, carregadinhos de vegetação e construídos propositadamente para a passagem de animais selvagens (pelos quais passámos), nem tão-pouco o recorte medieval de uma cidade que se desenha entre vales (onde estivemos).
No entanto, mesmo com o sentido da visão enublado, é possível conhecer o Luxemburgo através dos outros sentidos, quer seja pelo silêncio das multidões, pelas histórias embutidas nas suas rochas ou pelo aroma das especiarias que emanam das canecas de vinho quente que se encontra por esta altura nas feiras de Natal.
A quadra marca o dia-a-dia num país em que, diz o nosso guia Marc, 90% da população é católica “pelo menos no papel”. Na Catedral de Notre-Dame de Luxemburgo, de arquitectura gótica, mas recheada de adornos renascentistas, repara-se num ostensivo camarote. “Antes era ali que se sentava a família real; agora é cá em baixo… com o povo.”
A igreja, inicialmente construída em 1618, foi acrescentada mais de 300 anos depois, entre 1935 e 1938. “Não cabia toda a gente”, explicam-nos. Da ampliação nasceram duas novas torres que, em conjunto com a preexistente, marcam o casario da pequena cidade. É ainda na catedral que se encontra a cripta dos descendentes do grão-ducado, assim como os restos mortais de João, o Cego (1296-1346), conde de Luxemburgo, rei da Boémia e rei titular da Polónia.
Outra igreja que vale a pena considerar a visita é a de São Miguel, um dos primeiros locais de culto — embora o edifício actual, que reúne elementos de arquitecturas romana, gótica e barroca, date de 1688, foi aqui que foi construído o primeiro templo da cidade, em 967. Poder-se-ia passar um dia inteiro (ou mais) só a visitar as igrejas católicas da cidade. Mas seguimos noutro sentido e procuramos conhecer parte dos outros 10%, cuja importância para a História do país não é de desprezar.
No templo protestante, erguido em 1725, à falta de santos, as imagens de dois grão-duques: Adolfo e Guilherme IV, que professavam o protestantismo. Mas o catolicismo voltou em força ainda no tempo de Guilherme IV. “Tudo graças” — continua o guia – “à portuguesa Maria Ana de Bragança. Casada com o protestante Guilherme IV, acordou-se que os filhos do casal seriam educados como protestantes como o pai e as filhas católicas como a mãe. O casal teve seis filhas. E, assim, o Luxemburgo ficou católico.”
O “centro do mundo”
O guia que nos acompanha, mais de 1,90m de altura, olhos de um azul profundo e chapéu à Indiana Jones, romanceia vários acontecimentos de forma curta e divertida. É difícil descortinar se tudo o que Marc Kieffer (o próprio traduz o nome e apresenta-se como Marco) relata é verdade ou fruto da imaginação de gerações. Certeza, porém, tem uma: “Somos todos luxemburgueses”. Diz isto numa das salas do Castelo de Vianden, a 50km a norte da Cidade do Luxemburgo, enquanto observamos a árvore genealógica que levou ao actual grão-duque.
O castelo, restaurado, está hoje aberto a visitas e revela não só a sua própria história, através da recriação de alguns espaços, nomeadamente um quarto ou a cozinha, como a história de todo o país.
O guia prossegue e vai discorrendo uma longa lista de casamentos entre a corte europeia que leva sempre ao pequeno país. “É um facto: todos os monarcas da Europa actual descendem de um luxemburguês.”
É com esta sensação de se estar “no centro do mundo”, como o próprio o diz, que se dá a volta a um país que já foi austríaco, francês, holandês, espanhol (curiosamente na mesma altura que Portugal)…
Hoje, embora mantenha a sua identidade, como através da defesa da língua — o luxemburguês é língua oficial apenas desde 1984 e nem o próprio grão-duque a fala —, continua a ter uma espécie de multinacionalidade. Logo pela manhã, sai-se à rua e o que mais se ouve é o português. E o melhor é ter cuidado com o que se diz; mesmo quem não fala a língua de Camões percebe a maioria das palavras (sobretudo as menos bonitas). Depois, acolá, o alemão. De seguida, conversa-se em francês para, pelo meio, haver uma ou outra palavra em italiano.
“Num dia normal”, conta Cathy Giorgetti, responsável pela comunicação do Turismo do Luxemburgo, “falo uns quatro ou cinco idiomas.” A proliferação linguística vai muito além da forte imigração que o país acolhe. É prova da influência dos países vizinhos que, ao longo dos séculos (a Cidade do Luxemburgo tem 1050 anos), foram disputando o pequeno e estratégico território.
Em menos de cinco minutos, somos guiados pela História do país a uma velocidade vertiginosa. Mais tranquilo é um passeio pelo Museu de História da Cidade, inaugurado em 1996. Numa caixa de 18m2 com laterais em vidro, somos convidados primeiro a subir até ao último piso, de onde se pode adivinhar a vista. Depois, seguimos viagem até às profundezas durante a qual se podem compreender as camadas de pedra sobre as quais a cidade hoje se ergue.
O caminho leva-nos às origens, tão enevoadas quanto o tempo lá fora. Boris Fuge, responsável pela comunicação do museu, explica a lenda sobre a qual a história da cidade assenta e que versa sobre Sigefroid, o primeiro conde deste território que, num documento datado do século X, tinha apenas um pequeno castelo que dava pelo nome de Lucilinburhuc.
Sigefroid apaixonou-se por uma jovem que encontrou à beira do rio. Ela correspondeu e, como condição para ficar com o conde, fê-lo prometer deixá-la sozinha uma noite por mês. Até que a curiosidade de Sigefroid foi mais forte e, ao ver a mulher transformar-se em ninfa, ela desapareceu para sempre. “Diz-se que aparece de vez em quando junto ao rio.”
Pelas diferentes salas é possível compreender o crescimento da cidade — e, consequentemente, da sua fortaleza, que foi sendo alargada à medida que a população crescia. Já num pequeno compartimento redondo, é-se convidado a entrar directamente para o século XVII. Com as paredes forradas a toda a volta, a sensação é de que a qualquer momento a sala vai ganhar vida e as mulheres que vimos a subir a rua, ao lado de uma igreja que hoje já não existe, vão entrar subitamente no nosso mundo.
O efeito tridimensional é impressionante. Mas mais chocante é visitar as alas que contam a História do século XX e depararmo-nos com o flagelo da II Guerra Mundial, uma altura em que o país pôs de parte a sua política de neutralidade e se juntou aos Aliados contra a Alemanha, tornando-se um dos palcos de uma das mais sangrentas batalhas (das Ardenas). Estima-se que tenha resultado na morte de mais de cem mil homens, muitos dos quais sepultados no Cemitério Militar Americano no Luxemburgo (entre as sepulturas, a mais famosa será a do general Patton, embora este tenha falecido na Alemanha num acidente já após o fim da guerra).
Não chegámos a passar nem por este local nem pelo Cemitério Alemão — ambos, dizem-nos, valem uma visita —, mas em Clervaux, onde nos convidaram a visitar “a melhor exposição de fotografia de todos os tempos”, prestamos homenagem ao soldado americano, uma escultura que atrai o olhar constante dos visitantes desta pacata localidade, por esta altura também ela enfeitada a rigor com as cores do Natal.
Entre o passado e o futuro
Um passeio pela parte velha da Cidade do Luxemburgo prima sobretudo pela tranquilidade, quer na parte mais elevada, onde se perde algum tempo em frente ao Palácio Ducal e à Câmara dos Deputados, cuja fachada remonta ao século XVI, quer à beira do Alzette, com a cidade baixa do Grund na outra margem.
Pelas ruas — onde nunca falta um café português — vamo-nos cruzando com alguém aqui e ali, mas multidões é raro vê-las. Até que se chega, já ao fim da manhã, à Plâce d’Armes e parece que meia cidade acabou de se juntar aqui. Pelas várias mesas altas, não faltam sopas fumegantes nem canecas reluzentes, carregadinhas de pais natais, com vinho quente.
As barraquinhas em madeira dos doces não têm mãos a medir com os pedidos dos gaufres e há sempre alguém à procura de mais agasalho entre cachecóis e gorros de mil cores. Já a outra meia cidade está do outro lado do rio, uma linha de água que parece fazer a ponte entre passado e futuro. É no Kirchberg que fica o coração financeiro da Europa: Banco Europeu de Investimento, Tribunal de Contas, entre muitos outros. E é aqui, entre largas avenidas ladeadas de edifícios altos e de arquitectura contemporânea, que se pode rever o passado, no Museu Forte Thüngen, e ao mesmo tempo dar de caras com o futuro, espelhado no edifício, concebido pelo arquitecto Ming Pei, do Museu de Arte Moderna Grão-Duque Jean (MUDAM).
Com a destruição da fortaleza que protegia a cidade, em 1867, por imposição do Tratado de Londres, restaram as três torres de Thüngen que hoje, após uma série de trabalhos de reconstrução na década de 1990, acolhem a história bélica do grão-ducado.
O peso da pedra contrasta com o envidraçado que, em dias soalheiros, reflecte os raios de luz e que parece nascer nas suas costas. A dividir os dois edifícios, um jardim em diferentes tonalidades convida a pausados passeios. Depois de uma imersão no passado da cidade, chegar ao Museu de Arte Moderna — logo num primeiro instante o esclarecimento: “Não é um museu de arte moderna uma vez que não temos arte moderna; é um museu de arte contemporânea” — é uma lufada de ar fresco.
O imponente edifício desenha-se em “V”, “como uma seta”, dizem-nos. Mas o que mais se sente é a forma airosa como os seus espaços interiores foram idealizados, com a luz natural a invadir (quase) todos os espaços. Logo à entrada, uma instalação do sul-coreano Lee Bul feita especificamente para aqui. Depois, trabalhos avulsos, como a fonte a tinta-da-china de Su-Mei Tse (Many Spoken Words). E, entre as exposições actuais, um português: Francisco Tropa com a instalação Lanterna.
Mas, sublinhe-se, o espaço merece uma visita mesmo por quem não é fã de arte contemporânea. Sobretudo ao fim-de-semana para o brunch (melhor reservar com antecedência) servido no bar/cantina do museu.
É sentados aqui, com uma bandeja recheada de petiscos, que arriscamos mesmo a escrever que será no MUDAM que se pode fechar com chave de ouro qualquer escapada à Cidade do Luxemburgo.
A Fugas viajou a convite da easyJet e do Turismo do Luxemburgo