Acordo ortográfico: donos da Língua
Imagino o senhor José, dono de uma mercearia numa ruela de um bairro popular de Lisboa, apenas com a antiga 3.ª classe, a acabar de escrever a última placa de cartão para a fruta... "Kiwi", já está. Nunca lhe ocorreria a necessidade de consultar um dicionário para escrever uma tabuleta para os caixotes acumulados à porta, emprestando o seu delicioso odor matinal à cidade.
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Imagino o senhor José, dono de uma mercearia numa ruela de um bairro popular de Lisboa, apenas com a antiga 3.ª classe, a acabar de escrever a última placa de cartão para a fruta... "Kiwi", já está. Nunca lhe ocorreria a necessidade de consultar um dicionário para escrever uma tabuleta para os caixotes acumulados à porta, emprestando o seu delicioso odor matinal à cidade.
Hoje, porém, recolheu tudo e afixou uma desculpa esfarrapada para fechar a loja. Nunca foi à Assembleia da República, mas o filho disse-lhe que viu no computador que vão discutir uma Petição para tirar Portugal desta coisa que pôs tantas pessoas a escrever mal, e que toda a gente pode entrar para ver o que é que os políticos vão fazer... O senhor José já está farto de ver aquele "direto" ao canto do televisor.
"Direto" não é correcto, não há direito...! É o "directo" que indica que se vai a "direito", e tudo vai torto se não percebem isto. E esse "acordo" não "está feito", não é um facto, é só um pacto infecto. "Directo" escrito "direto", de "jato", à brasileira, não tem jeito...
Disse-lhe o filho que viu no computador um filme que mostra como, no Brasil, não ligam ao "acordo", e agora andam a experimentar pôr "x" onde era "ch", pôr "k" onde era "qu", tirar os "h"... Eles que façam o que quiserem e chamem "Brasileiro" àquilo.
Como o "acordo" morreu no Brasil e cá é lixo tóxico, teve de ser incinerado. Disse-lhe o filho que vai haver uma manifestação, junto à Assembleia da República, enquanto lá dentro falarem da Petição e, depois, vai partir de lá, ao meio-dia e meia, uma marcha em direcção ao Terreiro do Paço. As pessoas vão lançar ao Tejo as cinzas dessa coisa, lá, na linda "sala de visitas" da Europa, e o senhor José não quer faltar.
Iremos finalmente regressar ao "Português que somos"? Iremos sim, mais tarde ou mais cedo, com maior ou menor dano, iremos sim.
Já aqui moramos há muitos séculos, no chão desta Língua Portuguesa que atravessou mares e se transformou, por cá e noutras paragens. Mas a que vive e respira connosco é nossa, e nós somos nela. Pensamos, logo existimos, em Português. Donos da Língua, donos de nós.
Versão de "O MOSTRENGO" (de Fernando Pessoa), dedicada ao "CONVERSOR" LINCE®:
O “conversor” Lince que eu não quis instalar
Varreu o ecrã, ergueu-se a voar;
À roda do texto veio três vezes,
Roubou três letras a chiar,
E disse: "Quem ousa desafiar
As minhas razões que nem eu entendo,
Meu lápis invisível infecundo?"
E ao leme da tecla eu disse, tremendo:
"Séculos de Língua Portuguesa no Mundo!"
"De quem são as letras de que troço?
De quem o linguajar que leio e ouço?"
Disse o “conversor” Lince, e arrotou três vezes,
Três vezes arrotou imundo e grosso.
"Quem vem escrever como não posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
Instalado no medo, mas do nada oriundo?"
E ao leme da tecla tremendo, eu disse:
"Séculos de Língua Portuguesa no Mundo!"
Três vezes do teclado as mãos ergui,
Três vezes ao leme de mim escrevi,
E disse no fim de tremer três vezes:
"Tremo com fúria, sou mais do que eu:
O que este Povo escreve não é teu;
Mais que o raivoso Lince que me a alma pisa
Mutilando palavras furibundo,
Mandam as raizes que erguem a divisa,
Séculos de Língua Portuguesa no Mundo!"
(em descarada "parceria" póstuma "à revelia" com Fernando Pessoa)
Médica, escritora e activista cívica