O atlas imaginário de Alberto Manguel

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RUI GAUDÊNCIO

A primeira decisão foi escolher a língua em que conversar. Natural de Buenos Aires, onde nasceu em 1948, falante de inglês como se essa fosse a sua língua materna, cidadão canadiano a viver numa povoação do interior de França desde 2000, Alberto Manguel é fluente em várias línguas e um leitor voraz. Começou a ler para Jorge Luis Borge quando o escritor argentino começou a perder a visão e pediu ao rapaz que trabalhava na livraria Pygmalion para lhe ler em voz alta. Manguel tinha 16 anos. Leu para Borges durante quatro. Depois andou pelo mundo. Quem leu a sua Uma História da Leitura (Presença, 1999) sabe da sua capacidade de encadear saber enciclopédico com a sabedoria de contar histórias. Escreveu ensaios, romances, crítica. Anda pelo fantástico como pela a escrita de Homero, que vai desmontando. Fascina-se com Dante, conhece os mais novos autores. Isolado como pode. Sem telefone nem net, na casa onde vive no interior de França, rodeado por 30 mil volumes, protagoniza um dos acontecimentos literários do ano em Portugal num livro que escreveu com o italiano Gianni Guadalupi (1943-2007). A Tinta da China editou-o na sua colecção de viagens, com tradução de Carlos Vaz Marques e Ana Falcão Bastos. Ao telefone, num inglês contaminado pelo sotaque castelhano, Manguel agradece a aquela que chama da mais bela de todas as edições deste Dicionário dos Lugares Imaginários, onde assina um prefácio que é todo um ensaio sobre literatura, viagem e imaginação. Se pudesse revê-lo agora, garante que juntaria mais uns nomes portugueses ao de José Saramago e de Fernão Mendes Pinto.

O livro de que estamos a falar foi publicado pela primeira vez em 1981...

Sim... Foi no século passado (risos).

No prefácio à edição portuguesa refere-se a esta cartografia da imaginação como a tentativa de “dar vida ao que não pode reclamar presença no mundo do volume e do peso” e que este seria sempre um atlas inacabado. Como é que se parte para um atlas imaginário sabendo que é um trabalho sem fim?

Sim, esse é o problema de lidar com a geografia imaginária. Todos os dias há um livro novo com um lugar imaginário interessante. Fizemos duas edições, a primeira e uma segunda revista. Há lugares, como os da saga de Harry Potter, que apareceram depois do livro ter sido publicado originalmente e que entraram mais tarde. Já me apetece incluir muitos mais. É uma tarefa sempre inacabada. Isso não é necessariamente mau.

Nesse prefácio faz um balanço e uma reflexão sobre todas as alterações que moldaram o imaginário do viajante. Foi uma preocupação de actualização universal ou pensou em concreto no viajante leitor português?

Não tive uma preocupação específica. Não me passou pela cabeça que a audiência portuguesa fosse ler de modo diferente. Escrevi este prefácio quase 40 anos depois do livro original. Talvez reflicta sobre o que fizemos há tantos anos e como me sinto em relação à geografia imaginária actualmente. As coisas mudaram enormemente. Nos anos 80 continuava a poder-se viajar de uma certa maneira, talvez mais romântica, no mundo verdadeiro. Viajar de barco ou de avião é algo que mudou totalmente. Quase ninguém viaja de barco e em terceira classe. E era divertido. Fiz isso pela Europa. Ou de comboio. Viajar de avião, mesmo em classe económica, era um luxo. Agora, mesmo em primeira classe, é uma tortura. Não foi só o mundo que mudou mas também o modo como se viaja pelo mundo. Se imaginássemos o dicionário de lugares imaginários agora teríamos imaginado um livro muito diferente.

Neste momento tem cerca de 2000 lugares.

Acho que sim, nunca os contei.

Inicia esse citando Camões, embora a Ilha dos Amores não esteja entre os lugares cartografados neste dicionário.

Sim, fi-lo a pensar na edição portuguesa. Não está, mas poderia estar.

Não o acha suficientemente emblemático?

É mas não tanto quanto autores como Jonathan Swift ou Tolkien. Podiam estar aqui mais lugares da literatura portuguesa. De José Saramago, por exemplo, há a Cidade dos Cegos. Mas poderiam estar alguns dos lugares de António Lobo Antunes, ainda que muitos façam parte de uma realidade psicológica, ou de Gonçalo M. Tavares. Podemos continuar a incluir lugares.

Fiquemos em Camões. Como descreveria esse espaço literário que se forma n’Os Lusíadas?

A geografia imaginária pode ser classificada de maneiras muito diferentes. Tem lugares que foram criados a partir de um conceito filosófico, tem lugares criados para serem cenários de aventuras fantásticas, tem lugares criados de modo a fixar um ideal de sociedade. O caso de Camões é o caso de muitos outros escritores pioneiros na poesia épica e de viagem: o que temos são lugares que vêm do imaginário tradicional. Camões traz a mitologia europeia, a da Grécia e de Roma, e muitos dos seus elementos, para enaltecer os eventos que narra. É o caso da Ilha dos Amores, da ideia de paraíso na terra. São lugares que não são totalmente imaginários mas pertencem à realidade da imaginação do seu tempo.

Qual foi o maior desafio ao escrever este livro?

Foi o de saber onde e quando parar. O Gianni e eu começámos porque ele queria escrever um guia ficcional para La Ville Vampire, de Paul Féval. Seria um pequeno guia sobre a existência dessa cidade, Selene. Pensámos: porque não fazer sobre mais cidades? Depois achámos que podíamos incluir alguns países e o projecto continuou a crescer até estabelecer limites, como o de nunca termos infernos ou paraísos. Concluímos que não teríamos lugares fora do planeta Terra, que não teríamos lugares como os de Proust. E mesmo com essa selecção deixámos muitas coisas de fora. Fizemos o mais que conseguimos, mas esse acto de incluir e excluir foi, de facto, o principal desafio.

Falou dos infernos e não posso deixar de pensar no Inferno, de Dante (Divina Comédia). Está num dos livros da sua vida. Fala sempre dele. É um lugar muito familiar para si. Não incluir Dante foi excluir algo de muito importante?

Não. Ele não poderia estar nesta categoria de lugares imaginários.

Porquê?

Pela razão que já lhe expliquei. Dissémos sempre a que nunca incluiríamos os céus e infernos, e uma vez que começássemos a abrir excepções entraríamos em questões teológicas e em todas as espécies de potenciais localizações. Onde ficavam estes céus e infernos? Houve uma questão prática para termos decidido deixar de forma esses mundos: saber exactamente ou especular? Sobre o Inferno de Dante só daria para especular. Mas eliminámos também por outra razão: o Inferno de Dante, como o Paraíso de Dante, como o Purgatório, pertencem a concepções muito específicas do mundo, no qual Dante pega em toda a tradição católica e românica e constrói o seu teatro a partir daí. Não é uma geografia como a de Tolkien ou da Alice no Pais das Maravilhas. É um trabalho muito complexo. Não me atreveria a incluí-lo entre os outros. É muito especial. É verdade que sou particularmente interessado em Dante. O livro que estou a escrever agora e que espero terminar no próximo ano desenvolve-se em torno da ideia da Comédia de Dante. Não terá lugar no dicionário de lugares imaginários (risos).

Escolheram o formato de um velho atlas do século XIX. Porquê? Acha que isso apela e ajuda a alimentar a imaginação oferecendo imagens que estão longe do realismo da fotografia que oferece todos os detalhes?

Sim, muito. Sempre gostei muito disso, mesmo quando criança. Gostava dos atlas do século XIX, que não se limitavam apenas a mapas, e tinham várias abordagens ao mostrar as diferentes perspectivas de um lugar. Gosto muito desse estilo. Actualmente, quando queremos encontrar um lugar vamos ao Google Earth, fazemos uma pesquisa na internet, e surgem de imediato fotos oficias. Há uma relação completamente diferente com um atlas. Fico muito contente que tenhamos optado pelo velho estilo.

Muitos escritores defendem que para escrever sobre um lugar real não é necessário ter alguma vez estado nesse sítio. Concorda?

Estou completamente de acordo com a ideia de que não é necessário conhecer um lugar para se escrever sobre ele. Veja o caso de America (1910), do Kafka. É uma América absolutamente real, ou verdadeira, mas Kafka nunca esteve lá.

Este livro transporta-nos para a ideia do leitor enquanto viajante. Como um viajante solitário. O seu último livro publicado, creio que em França e na Inglaterra [The traveler, the tower, and the worm: the reader as metaphor, 2013] trata desta temática específica, do viajante enquanto metáfora que atravessa todo este livro.

A leitura enquanto viagem é uma metáfora muito antiga. Na Epopeia de Gilgamesh [poema épico da Mesopotâmia], o poeta diz ao leitor logo no início para deixar o livro e ir até à cidade de Uruk, entrar e subir à torre. No cimo da torre encontra uma caixa que contém um poema que é o mesmo poema que está a ler. Ou seja, o poema está a oferecer ao leitor parte do texto como uma parte literal e enquanto se vai da página um à pagina dez vamos desenrolando as cenas que o poeta nos quer mostrar. A metáfora começa cedo, mas estende-se a todos os tipos de culturas de todos os tempos. Santo Agostinho comparava a leitura com a viagem quando dizia que começamos em frente a uma paisagem que não conhecemos e à medida que atravessamos o texto a paisagem começa a fazer parte do território da nossa memória. A paisagem que habita a nossa memória expande-se e ganha cada vez mais contornos à medida que a leitura avança. É uma metáfora muito complexa.

De que lugares se compõe o seu universo imaginário particular?

Os sítios com que estou mais familiarizado são o País das Maravilhas, da Alice, os lugares criados por Jorge Luis Borges e mais uns quantos sítios de alguns romances, como o de um escritor húngaro de que gosto muito, Frigyes Karinthy: Cappilaria (1929), por exemplo. Também tenho muito viva a geografia imaginária de Tarzan, porque o lia em criança.

Os livros que formam a imaginação de uma criança são determinantes para a criação e o desenvolvimento de um universo imaginário pessoal adulto? Moldá-lo enquanto viajante literário?

Sim, acho que são, mas também temos de nos lembrar que a geografia imaginária da infância é imaginária e não imaginária. Quando eu era um jovem leitor, um muito jovem leitor, os lugares sobre os quais lia, mesmo sabendo que talvez não existissem, que talvez fossem lugares mágicos criados por alguém, tinham uma realidade que não era muito diferente da minha realidade de todos os dias. E se tivesse de pensar na Ilha do Tesouro (1883) ou nos lugares das Mil e Uma Noites, pensava neles como lugares reais ainda que fossem imaginários. A criança não quer saber da divisão burocrática entre real e imaginário, com o real marcado num mapa oficial. Portanto, esses lugares eram muito reais para mim e, lá atrás, no meu mais íntimo, continuam a ser muito reais.

Aconselha algum método de leitura para este livro, quer marcar um roteiro para percorrer este atlas?

Creio que cada leitor deve escolher o seu caminho. Quer comece pelo princípio ou pelo fim, ou vá pelos sítios de forma aleatória ou à procura dos lugares específicos. Tudo depende do modo como gosta de viajar: se sabe exactamente onde quer ir e tem um guia a organizar a viagem, ou se gosta de se deixar levar pela aventura sem saber onde o vai levar a estrada que escolheu.

Como viajante, qual o método que prefere?

Nunca viajo com guias. Nunca levo nada organizado, tudo o que me acontece é uma surpresa para mim. Por vezes é bom, outras é mau. Perco-me muito facilmente.

Como viajante ou como leitor?

De um modo e de outro. O meu modo de viajar é muito digressivo. Faço muitas paragens para ver a vista ou colher flores.

Acha necessário ter um vocabulário próprio para conseguir dominar e percorrer esse universo imaginário?

Sim e não. Ou seja, tudo o que se faça enquanto leitor ou escritor tem de ser com a consciência de que muito – ou pouco – foi feito antes, a consciência de que algo nos precede e do que nos precede. Não se consegue escrever sem ler. E não se consegue ler sem escrever. É preciso saber que estes livros foram escritos, estar desperto para isso, para a história e para a pré-história do que se está a fazer. Mas não há regras, porque o que se vai criando pode ser um acto de transformação que altera algo tonando-o não mais reconhecível.

Vive numa aldeia de França, Poitou-Charentes. É um lugar que favorece a imaginação?

Felizmente é real. Todas as manhãs toco nas paredes para me assegurar de que existe e até agora continua lá. Até quando, não sei. Vivo aqui há 13 anos e se conseguir viver aqui mais uns tantos fico muito grato.

A imaginação vai persistir a esta actualidade tão real?

É essencialmente importante porque sem imaginação não seremos mais seres humanos. A literatura tem um papel essencial porque ajuda-nos a imaginar.

Qual seria a sua viagem imaginária?

Ohhh... Simplesmente ficar em casa imaginando que o resto do mundo não me viria bater à porta, não me viria incomodar.

Ficava um nómada na biblioteca?

Sim, acho que sim. Transformava a minha casa numa ilha deserta.

A verdade faz-nos mais fortes

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A primeira decisão foi escolher a língua em que conversar. Natural de Buenos Aires, onde nasceu em 1948, falante de inglês como se essa fosse a sua língua materna, cidadão canadiano a viver numa povoação do interior de França desde 2000, Alberto Manguel é fluente em várias línguas e um leitor voraz. Começou a ler para Jorge Luis Borge quando o escritor argentino começou a perder a visão e pediu ao rapaz que trabalhava na livraria Pygmalion para lhe ler em voz alta. Manguel tinha 16 anos. Leu para Borges durante quatro. Depois andou pelo mundo. Quem leu a sua Uma História da Leitura (Presença, 1999) sabe da sua capacidade de encadear saber enciclopédico com a sabedoria de contar histórias. Escreveu ensaios, romances, crítica. Anda pelo fantástico como pela a escrita de Homero, que vai desmontando. Fascina-se com Dante, conhece os mais novos autores. Isolado como pode. Sem telefone nem net, na casa onde vive no interior de França, rodeado por 30 mil volumes, protagoniza um dos acontecimentos literários do ano em Portugal num livro que escreveu com o italiano Gianni Guadalupi (1943-2007). A Tinta da China editou-o na sua colecção de viagens, com tradução de Carlos Vaz Marques e Ana Falcão Bastos. Ao telefone, num inglês contaminado pelo sotaque castelhano, Manguel agradece a aquela que chama da mais bela de todas as edições deste Dicionário dos Lugares Imaginários, onde assina um prefácio que é todo um ensaio sobre literatura, viagem e imaginação. Se pudesse revê-lo agora, garante que juntaria mais uns nomes portugueses ao de José Saramago e de Fernão Mendes Pinto.

O livro de que estamos a falar foi publicado pela primeira vez em 1981...

Sim... Foi no século passado (risos).

No prefácio à edição portuguesa refere-se a esta cartografia da imaginação como a tentativa de “dar vida ao que não pode reclamar presença no mundo do volume e do peso” e que este seria sempre um atlas inacabado. Como é que se parte para um atlas imaginário sabendo que é um trabalho sem fim?

Sim, esse é o problema de lidar com a geografia imaginária. Todos os dias há um livro novo com um lugar imaginário interessante. Fizemos duas edições, a primeira e uma segunda revista. Há lugares, como os da saga de Harry Potter, que apareceram depois do livro ter sido publicado originalmente e que entraram mais tarde. Já me apetece incluir muitos mais. É uma tarefa sempre inacabada. Isso não é necessariamente mau.

Nesse prefácio faz um balanço e uma reflexão sobre todas as alterações que moldaram o imaginário do viajante. Foi uma preocupação de actualização universal ou pensou em concreto no viajante leitor português?

Não tive uma preocupação específica. Não me passou pela cabeça que a audiência portuguesa fosse ler de modo diferente. Escrevi este prefácio quase 40 anos depois do livro original. Talvez reflicta sobre o que fizemos há tantos anos e como me sinto em relação à geografia imaginária actualmente. As coisas mudaram enormemente. Nos anos 80 continuava a poder-se viajar de uma certa maneira, talvez mais romântica, no mundo verdadeiro. Viajar de barco ou de avião é algo que mudou totalmente. Quase ninguém viaja de barco e em terceira classe. E era divertido. Fiz isso pela Europa. Ou de comboio. Viajar de avião, mesmo em classe económica, era um luxo. Agora, mesmo em primeira classe, é uma tortura. Não foi só o mundo que mudou mas também o modo como se viaja pelo mundo. Se imaginássemos o dicionário de lugares imaginários agora teríamos imaginado um livro muito diferente.

Neste momento tem cerca de 2000 lugares.

Acho que sim, nunca os contei.

Inicia esse citando Camões, embora a Ilha dos Amores não esteja entre os lugares cartografados neste dicionário.

Sim, fi-lo a pensar na edição portuguesa. Não está, mas poderia estar.

Não o acha suficientemente emblemático?

É mas não tanto quanto autores como Jonathan Swift ou Tolkien. Podiam estar aqui mais lugares da literatura portuguesa. De José Saramago, por exemplo, há a Cidade dos Cegos. Mas poderiam estar alguns dos lugares de António Lobo Antunes, ainda que muitos façam parte de uma realidade psicológica, ou de Gonçalo M. Tavares. Podemos continuar a incluir lugares.

Fiquemos em Camões. Como descreveria esse espaço literário que se forma n’Os Lusíadas?

A geografia imaginária pode ser classificada de maneiras muito diferentes. Tem lugares que foram criados a partir de um conceito filosófico, tem lugares criados para serem cenários de aventuras fantásticas, tem lugares criados de modo a fixar um ideal de sociedade. O caso de Camões é o caso de muitos outros escritores pioneiros na poesia épica e de viagem: o que temos são lugares que vêm do imaginário tradicional. Camões traz a mitologia europeia, a da Grécia e de Roma, e muitos dos seus elementos, para enaltecer os eventos que narra. É o caso da Ilha dos Amores, da ideia de paraíso na terra. São lugares que não são totalmente imaginários mas pertencem à realidade da imaginação do seu tempo.

Qual foi o maior desafio ao escrever este livro?

Foi o de saber onde e quando parar. O Gianni e eu começámos porque ele queria escrever um guia ficcional para La Ville Vampire, de Paul Féval. Seria um pequeno guia sobre a existência dessa cidade, Selene. Pensámos: porque não fazer sobre mais cidades? Depois achámos que podíamos incluir alguns países e o projecto continuou a crescer até estabelecer limites, como o de nunca termos infernos ou paraísos. Concluímos que não teríamos lugares fora do planeta Terra, que não teríamos lugares como os de Proust. E mesmo com essa selecção deixámos muitas coisas de fora. Fizemos o mais que conseguimos, mas esse acto de incluir e excluir foi, de facto, o principal desafio.

Falou dos infernos e não posso deixar de pensar no Inferno, de Dante (Divina Comédia). Está num dos livros da sua vida. Fala sempre dele. É um lugar muito familiar para si. Não incluir Dante foi excluir algo de muito importante?

Não. Ele não poderia estar nesta categoria de lugares imaginários.

Porquê?

Pela razão que já lhe expliquei. Dissémos sempre a que nunca incluiríamos os céus e infernos, e uma vez que começássemos a abrir excepções entraríamos em questões teológicas e em todas as espécies de potenciais localizações. Onde ficavam estes céus e infernos? Houve uma questão prática para termos decidido deixar de forma esses mundos: saber exactamente ou especular? Sobre o Inferno de Dante só daria para especular. Mas eliminámos também por outra razão: o Inferno de Dante, como o Paraíso de Dante, como o Purgatório, pertencem a concepções muito específicas do mundo, no qual Dante pega em toda a tradição católica e românica e constrói o seu teatro a partir daí. Não é uma geografia como a de Tolkien ou da Alice no Pais das Maravilhas. É um trabalho muito complexo. Não me atreveria a incluí-lo entre os outros. É muito especial. É verdade que sou particularmente interessado em Dante. O livro que estou a escrever agora e que espero terminar no próximo ano desenvolve-se em torno da ideia da Comédia de Dante. Não terá lugar no dicionário de lugares imaginários (risos).

Escolheram o formato de um velho atlas do século XIX. Porquê? Acha que isso apela e ajuda a alimentar a imaginação oferecendo imagens que estão longe do realismo da fotografia que oferece todos os detalhes?

Sim, muito. Sempre gostei muito disso, mesmo quando criança. Gostava dos atlas do século XIX, que não se limitavam apenas a mapas, e tinham várias abordagens ao mostrar as diferentes perspectivas de um lugar. Gosto muito desse estilo. Actualmente, quando queremos encontrar um lugar vamos ao Google Earth, fazemos uma pesquisa na internet, e surgem de imediato fotos oficias. Há uma relação completamente diferente com um atlas. Fico muito contente que tenhamos optado pelo velho estilo.

Muitos escritores defendem que para escrever sobre um lugar real não é necessário ter alguma vez estado nesse sítio. Concorda?

Estou completamente de acordo com a ideia de que não é necessário conhecer um lugar para se escrever sobre ele. Veja o caso de America (1910), do Kafka. É uma América absolutamente real, ou verdadeira, mas Kafka nunca esteve lá.

Este livro transporta-nos para a ideia do leitor enquanto viajante. Como um viajante solitário. O seu último livro publicado, creio que em França e na Inglaterra [The traveler, the tower, and the worm: the reader as metaphor, 2013] trata desta temática específica, do viajante enquanto metáfora que atravessa todo este livro.

A leitura enquanto viagem é uma metáfora muito antiga. Na Epopeia de Gilgamesh [poema épico da Mesopotâmia], o poeta diz ao leitor logo no início para deixar o livro e ir até à cidade de Uruk, entrar e subir à torre. No cimo da torre encontra uma caixa que contém um poema que é o mesmo poema que está a ler. Ou seja, o poema está a oferecer ao leitor parte do texto como uma parte literal e enquanto se vai da página um à pagina dez vamos desenrolando as cenas que o poeta nos quer mostrar. A metáfora começa cedo, mas estende-se a todos os tipos de culturas de todos os tempos. Santo Agostinho comparava a leitura com a viagem quando dizia que começamos em frente a uma paisagem que não conhecemos e à medida que atravessamos o texto a paisagem começa a fazer parte do território da nossa memória. A paisagem que habita a nossa memória expande-se e ganha cada vez mais contornos à medida que a leitura avança. É uma metáfora muito complexa.

De que lugares se compõe o seu universo imaginário particular?

Os sítios com que estou mais familiarizado são o País das Maravilhas, da Alice, os lugares criados por Jorge Luis Borges e mais uns quantos sítios de alguns romances, como o de um escritor húngaro de que gosto muito, Frigyes Karinthy: Cappilaria (1929), por exemplo. Também tenho muito viva a geografia imaginária de Tarzan, porque o lia em criança.

Os livros que formam a imaginação de uma criança são determinantes para a criação e o desenvolvimento de um universo imaginário pessoal adulto? Moldá-lo enquanto viajante literário?

Sim, acho que são, mas também temos de nos lembrar que a geografia imaginária da infância é imaginária e não imaginária. Quando eu era um jovem leitor, um muito jovem leitor, os lugares sobre os quais lia, mesmo sabendo que talvez não existissem, que talvez fossem lugares mágicos criados por alguém, tinham uma realidade que não era muito diferente da minha realidade de todos os dias. E se tivesse de pensar na Ilha do Tesouro (1883) ou nos lugares das Mil e Uma Noites, pensava neles como lugares reais ainda que fossem imaginários. A criança não quer saber da divisão burocrática entre real e imaginário, com o real marcado num mapa oficial. Portanto, esses lugares eram muito reais para mim e, lá atrás, no meu mais íntimo, continuam a ser muito reais.

Aconselha algum método de leitura para este livro, quer marcar um roteiro para percorrer este atlas?

Creio que cada leitor deve escolher o seu caminho. Quer comece pelo princípio ou pelo fim, ou vá pelos sítios de forma aleatória ou à procura dos lugares específicos. Tudo depende do modo como gosta de viajar: se sabe exactamente onde quer ir e tem um guia a organizar a viagem, ou se gosta de se deixar levar pela aventura sem saber onde o vai levar a estrada que escolheu.

Como viajante, qual o método que prefere?

Nunca viajo com guias. Nunca levo nada organizado, tudo o que me acontece é uma surpresa para mim. Por vezes é bom, outras é mau. Perco-me muito facilmente.

Como viajante ou como leitor?

De um modo e de outro. O meu modo de viajar é muito digressivo. Faço muitas paragens para ver a vista ou colher flores.

Acha necessário ter um vocabulário próprio para conseguir dominar e percorrer esse universo imaginário?

Sim e não. Ou seja, tudo o que se faça enquanto leitor ou escritor tem de ser com a consciência de que muito – ou pouco – foi feito antes, a consciência de que algo nos precede e do que nos precede. Não se consegue escrever sem ler. E não se consegue ler sem escrever. É preciso saber que estes livros foram escritos, estar desperto para isso, para a história e para a pré-história do que se está a fazer. Mas não há regras, porque o que se vai criando pode ser um acto de transformação que altera algo tonando-o não mais reconhecível.

Vive numa aldeia de França, Poitou-Charentes. É um lugar que favorece a imaginação?

Felizmente é real. Todas as manhãs toco nas paredes para me assegurar de que existe e até agora continua lá. Até quando, não sei. Vivo aqui há 13 anos e se conseguir viver aqui mais uns tantos fico muito grato.

A imaginação vai persistir a esta actualidade tão real?

É essencialmente importante porque sem imaginação não seremos mais seres humanos. A literatura tem um papel essencial porque ajuda-nos a imaginar.

Qual seria a sua viagem imaginária?

Ohhh... Simplesmente ficar em casa imaginando que o resto do mundo não me viria bater à porta, não me viria incomodar.

Ficava um nómada na biblioteca?

Sim, acho que sim. Transformava a minha casa numa ilha deserta.