A condição humana do cantor folk
“Se nunca foi nova e se nunca envelhece então é uma canção folk”, diz-se numa das primeiras linhas de diálogo do novo filme dos irmãos Coen. Podíamos encontrar uma analogia com o próprio cinema da dupla, que continua a ter um dos percursos mais idiossincráticos e pessoais do moderno cinema americano - e que o tem conseguido sem precisar de fazer cedências a quem quer que seja. E A Propósito de Llewyn Davis mantém intacto o olhar dos irmãos, ora lúcido ora sarcástico, sobre a imensa variedade da condição humana, e o seu interesse em personagens de losers confrontados com os “doze trabalhos” que não são garantia nenhuma de alcançarem o pote de ouro no fim do arco-íris.
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“Se nunca foi nova e se nunca envelhece então é uma canção folk”, diz-se numa das primeiras linhas de diálogo do novo filme dos irmãos Coen. Podíamos encontrar uma analogia com o próprio cinema da dupla, que continua a ter um dos percursos mais idiossincráticos e pessoais do moderno cinema americano - e que o tem conseguido sem precisar de fazer cedências a quem quer que seja. E A Propósito de Llewyn Davis mantém intacto o olhar dos irmãos, ora lúcido ora sarcástico, sobre a imensa variedade da condição humana, e o seu interesse em personagens de losers confrontados com os “doze trabalhos” que não são garantia nenhuma de alcançarem o pote de ouro no fim do arco-íris.
O loser de 2013 é Llewyn Davis, cantor folk em dificuldades na Nova Iorque do início dos anos 1960, um de dezenas de aspirantes ao sucesso e ao reconhecimento, constantemente sem dinheiro, vagabundeando de casa de amigos em casa de amigos enquanto tenta atar as pontas da sua vida. E os Coen, demiurgos impiedosos, atiram-no para uma odisseia de ida e volta Nova Iorque-Chicago-Nova Iorque onde tudo o que podia correr mal corre, estruturada como uma espécie de “dia sem fim” fotografado em tons foscos e invernais por Bruno Delbonnel e pontuado por mais uma extraordinária banda-sonora como só os manos conseguem arrancar (com a ajuda preciosa do cúmplice T-Bone Burnett). De certo modo, A Propósito de Llewyn Davis torna-se na “versão folk” da odisseia musical do excelente Irmão, Onde Estás?, mas - e aqui reside a diferença - temperado por uma ternura, por uma compreensão, por uma humanidade que os Coen têm lentamente deixado entrar no seu cinema. Não que o seu cinismo escarninho nem as suas referências idiossincráticas tenham desaparecido - Carey Mulligan é aqui a porta-voz de alguns dos mais refinados diálogos dos irmãos, como a referência ao “irmão idiota do rei Midas”, e um gato cor-de-laranja que tem um papel importante chama-se Ulisses.
Mas Llewyn, espantosamente interpretado por Oscar Isaac, que carrega o filme com o peso do mundo aos ombros, não é um pobre diabo nem um cretino de todo o tamanho: é apenas um homem com defeitos e ambições confrontado com as consequências das suas acções. Chamemos-lhe um beautiful loser - e raramente os Coen terão criado um loser tão beautiful como Llewyn Davis. Condenado a nunca sair da cepa torta - numa das ironias mais trágicas, há uma inconfundível voz nasalada que sobe ao palco logo a seguir a Llewyn terminar uma actuação, como quem diz, “olha, filho, estás feito que está aqui o Dylan” - mas nem por isso menos digno, menos humano.