Q, morfologia de um canal
O canal das Produções Fictícias, na posição 15 do cabo, é muito mais do que um canal para fazer rir: é provavelmente — e a história futura confirmá-lo-á — a melhor televisão que se faz em Portugal
Lembro-me que, em 2001, na primeira semana de vida da SIC Radical, numa das emissões inaugurais do “Curto Circuito” — na altura o programa-bandeira do canal, hoje reduzido a apenas um gigantesco "spot" publicitário da Optimus —, Francisco Penim, o primeiro director do canal, calçou as suas sapatilhas mais gastas e foi à televisão prometer que a SIC Radical seria um espaço para a geração internet, graças a uma programação irreverente livre de concursos e novelas.
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Lembro-me que, em 2001, na primeira semana de vida da SIC Radical, numa das emissões inaugurais do “Curto Circuito” — na altura o programa-bandeira do canal, hoje reduzido a apenas um gigantesco "spot" publicitário da Optimus —, Francisco Penim, o primeiro director do canal, calçou as suas sapatilhas mais gastas e foi à televisão prometer que a SIC Radical seria um espaço para a geração internet, graças a uma programação irreverente livre de concursos e novelas.
E a Radical cumpriu, efectivamente, essa missão durante algum tempo. Depois, se bem se lembram, veio o “The Moment of Truth”, o “The Apprentice”, uma dezena de programas em que o Gordon Ramsay grita com pessoas aleatórias, repetições a martelo do “Baywatch”, uma ou outra novela espanhola e várias horas semanais de pessoas sentadas a jogar poker — sem contar com o wrestling, claro: preferir o Randy "Macho Man" Savage ao John Cena é, mais do que uma disfunção geracional, uma questão de gosto e de homoerotismo mal direccionado.
E, se é verdade que a SIC Radical teve, recentemente, o mérito, a sorte e o engenho de lançar o Bruno Aleixo ou o Humorista, de mostrar ao país o Anthony Bourdain ou o “Heston's Fantastical Food", de passar o “Peep Show” (a melhor britcom de sempre?), o “Shameless” ou “Breaking Bad”, alguns animes extraordinários e os melhores programas do Rui Unas, também é verdade que, pelo menos para mim, a Radical de hoje limita-se basicamente a ser um canal preguiçoso que diz “bom-dia” sempre da mesma maneira no Facebook.
O que é que isto tem que ver com o Canal Q? Tudo. O canal 15 é, em 2013, o profético veículo de liberdade televisiva que a SIC Radical deixou de ser. Há quantidade e qualidade, tudo para toda a gente. E um punhado de coisas extraordinárias. A primeira coisa que me fidelizou ao canal foi a série “Isto é o Q?”, um "mockumentary" ao estilo do “Office”, mas suficientemente bom para se distanciar das comparações (só mais uma: é mil vezes melhor do que a versão americana com o Steve Carell). Mas há muito, muito mais para ver.
O “Inferno”, por exemplo, um híbrido entre o “Daily Show” e o Inimigo Público, é obrigatório e repete vezes suficientes para dispensar uma box que agende as gravações diárias. O Pedro Vieira, coordenador e co-apresentador, no seu característico estilo "deadpan", é um talento que dificilmente caberia noutro canal e ainda por cima desenha bem (“Irmão Lúcia” é um "digest" visual em formato "app" para desenhar no iPad que acerta sempre no alvo).
Os outros apresentadores, a Inês Lopes Gonçalves e o Guilherme Fonseca cumprem naquela lógica à X-Men: cada um com o seu superpoder. Mas aquilo que é verdadeiramente superlativo no “Inferno” são as rubricas. O Cláudio Almeida, à segunda-feira, é o melhor comentador desportivo que ninguém conhece. Ainda no outro dia, o João Aragão, um tipo normal que é o rei do humor subtil, mimetizou uma peça da TVI sobre castanhas e frio que devia ser mostrada em todas as aulas de jornalismo televisivo e ainda por cima tem uma avó, a dona Margarida Louro, que produz hilariantes tutoriais para a internet na terceira idade (como falar com os netos no Facebook, jogar poker online, tirar selfies, os perigos do facejacking, etc). Às terças, com “Posto de Comando”, a Ana Markl prova-nos sempre que tem mais piada do que o irmão e, no resto dos dias, há sempre qualquer coisa que vale a pena ver, seja o Hélder Gomes a fazer perguntas difíceis a banqueiros, o Rui Pêgo (que, mais do que suportável, consegue superar-se no seu “Ministério da Cultura”) ou algum entrevistado em estúdio.
O Q é o canal que tem, numa mesma grelha, “O Que Fica do Que Passa” (podem sempre, como eu faço, tirar o som quando o Rui Ramos fala), um óptimo programa de conversa séria, ideal para quem está farto das mudanças de cenário do “Eixo do Mal”, e “Altos & Baixos”, que é televisão fácil e low-cost feita na perfeição (pontos extra pelo grafismo Powerpoint da coisa). “Camada de Nervos” é o programa de sketches recomendado para quem acompanhava o “Breviário Biltre” antes da RTP o cancelar e “A Costeleta de Adão” (que viveria muito bem sem o Vasco Palmeirim) é, não raras vezes, a melhor coisa que me acontece nas noites de terça-feira (depende se o Benfica joga na Champions). E vale sempre a pena espreitar o “Baseado Numa História Verídica”, uma espécie de “Bairro Alto”, esse bocejo de 45 minutos na RTP 2, em bom.
É verdade que “Sacanas Sem Lei”, “Nas Nuvens”, “Sem Moderação” ou “Paradoxo da Tangência” ficam uns furos abaixo (pode ser defeito meu), mas o essencial é que o Q, que está na ZON e no MEO, é um oásis de programação inteligente, um canal com uma grelha homogénea que tem um site completo, um Facebook bem gerido e boas condições de imagem/som — o que já é mais do que outros canais recentes do cabo podem dizer. O Canal Q é, muito resumidamente, a melhor coisa que aconteceu à televisão portuguesa nos últimos dez anos e qualquer coisa. Pode ser que um dia haja mais gente a seguir-lhe o exemplo — com ou sem novelas e concursos.