O cinema de Manoel de Oliveira também mora na arquitectura

O realizador sempre teve uma atracção especial pela arquitectura, fazendo-a muitas vezes ser mais do que um cenário nos seus filmes. A casa que construiu em 1939, com projecto de José Porto, e onde viveu quatro décadas, foi agora alvo de classificação patrimonial pelo seu modernismo. Dois projectos dos dois “Pritzker” portugueses, também associados ao nome de Oliveira, conheceram destinos diversos.

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Mas esta classificação – cujo processo fora iniciado há já uma década – vem realçar uma relação antiga do realizador com a arquitectura. Seja através das casas que habitou ou a que tem dado o nome, seja através dos filmes, de O Passado e o Presente e Benilde ou a Virgem-Mãe a Vou para Casa e Espelho Mágico, ou seja mesmo pela consagração de uma carreira, cujo primeiro doutoramento honoris causa partiu da… Faculdade de Arquitectura do Porto.

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Mas esta classificação – cujo processo fora iniciado há já uma década – vem realçar uma relação antiga do realizador com a arquitectura. Seja através das casas que habitou ou a que tem dado o nome, seja através dos filmes, de O Passado e o Presente e Benilde ou a Virgem-Mãe a Vou para Casa e Espelho Mágico, ou seja mesmo pela consagração de uma carreira, cujo primeiro doutoramento honoris causa partiu da… Faculdade de Arquitectura do Porto.

Numa decisão assinada pelo secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, no dia 2 de Dezembro – e com o propósito visível de a sua publicação calhar no dia do aniversário –, a Casa da Vilarinha é valorizada por, além do seu promotor e primeiro morador, ter a sua história “igualmente ligada a grandes nomes do modernismo português”, desde logo o autor do projecto, José Porto (1883-1965), mas também os arquitectos Viana de Lima e Cassiano Branco.

Sobre a relevância desta classificação, Sérgio Fernandez não tem qualquer dúvida. “Trata-se de uma das obras mais notáveis da arquitectura doméstica do Porto e mesmo da arquitectura portuguesa daquela época”, diz o arquitecto e professor, mesmo que tenha visitado a casa apenas uma vez, quando, há meia dúzia de anos, fez parte de uma equipa que realizava um inquérito sobre a arquitectura moderna em Portugal.

“A dimensão, a linguagem, a caracterização espacial de um edifício que quase não tem portas, e onde os espaços contíguos se articulam de uma maneira notável, com várias variações de pé direito” são as razões que Fernandez vê para a individualidade deste projecto e do edifício, que, a partir de agora, para além da classificação como IIP, goza também da criação de uma Zona Especial de Protecção destinada a salvaguardar o seu enquadramento urbanístico.

Um arquitecto modernista
Numa entrevista aos críticos franceses Antoine de Baecque e Jacques Parsi (Conversas com Manuel de Oliveira, edição Campo das Letras, 1996), o realizador recorda as circunstâncias da construção da sua casa na Rua da Vilarinha, freguesia de Aldoar, para cujo projecto escolheu “um arquitecto amigo, José Porto, que tinha estudado em França no tempo dos grandes arquitectos, Le Corbusier, [Auguste] Perret”, e que “tinha uma formação muito boa”.
De facto, depois de estudos secundários feitos em Lisboa e da formação em arquitectura como pensionista na Escola de Artes Industriais de Genebra, onde residiria entre 1907-21, José Porto mudou-se para em Paris, onde viveu a década prodigiosa da geração dos modernistas, tendo aí trabalhado como arquitecto mas também pintor, ilustrador, decorador, cenografista, etc.

No seu regresso ao Porto, em 1933, o arquitecto nascido em Vilar de Mouros (e que nunca deixou de visitar a sua terra natal nos períodos de férias) virá a assinar alguns projectos que deixaram marca na cidade e também no Minho.

A casa de Manoel de Oliveira (1939), até pela notoriedade do morador, haveria de ficar como o projecto mais emblemático de todos. Mas merecem também atenção no Porto – segundo Paulo Torres Bento, autor do catálogo e da exposição dedicada ao arquitecto na sua terra natal, em 2003, nos 120 anos do seu nascimento – duas outras casas unifamiliares, na Rua de Nevala (1934) e na Avenida de Montevideu (1937), além do bloco de habitações Emporium (1947), na Baixa da cidade.

Sérgio Fernandez chama ainda a atenção para o hotel que José Porto desenhou para a Praça de D. João I, e que acabaria, afinal, por nunca abrir com esse uso. “É um edifício notabilíssimo, que depois foi algo descaracterizado”, nota Fernandez, considerando como o outro grande momento da obra do arquitecto o Grande Hotel da Beira, que projectou na década de 1940, quando foi trabalhar para Moçambique.

Um filme póstumo
Ainda sobre a sua casa – e tendo em vista a sua ideia de que “uma casa é uma relação íntima, pessoal, onde se encontram as raízes” –, Oliveira reclama a co-autoria através do acompanhamento permanente da construção. “Segui de perto o desenvolvimento do traçado, que foi recomeçado três vezes. O primeiro projecto era algo monumental. Reduziu-se no seguinte: depois o terceiro, a meu pedido, era mais modesto. Foi durante a guerra. Casei-me em 1940. Tinha pensado na construção da casa já antes do casamento, mas só foi concluída depois. Surgiram numerosas dificuldades por causa da guerra e a construção levou tempo”, recordou Oliveira na entrevista citada.

Na casa, para além de José Porto, intervieram dois outros arquitectos de renome: Viana de Lima, que se ocupou do detalhe da decoração interior, nomeadamente após a partida do projectista para Moçambique, e Cassiano Branco, que desenharia os espaços exteriores.

Foi nesta casa que Manoel de Oliveira viveu e constituiu a sua família – quatro filhos e sete netos –, durante mais de quatro décadas. Acabaria por perdê-la após o 25 de Abril de 1974, na sequência de uma hipoteca para a remodelação da fábrica de malhas fundada pelo pai. “Alguns dos operários ocuparam a empresa, logo a seguir ao 25 de Abril, e venderam as máquinas e a matéria-prima ao desbarato. Em consequência, tive de vender a minha casa para pagar a dívida entretanto contraída ao Banco de Fomento”, disse o realizador ao Público Magazine (8/7/1990).

Antes de se despedir definitivamente da sua casa, Oliveira decidiu registá-la em película. “A meu pedido, a Agustina [Bessa-Luís] fez um texto, muito bonito, a que chamou Visita. E eu acrescentei-lhe algumas reflexões sobre a casa e sobre a minha vida”. Daí nasceu o documentário Visita ou Memória e Confissões (1982), que o realizador decidiu que só seria revelado após a sua morte – até hoje, apenas um número limitado de membros da equipa de produção e de amigos próximos do realizador pôde ver o filme.

A casa foi entretanto adquirida por um conhecido médico do Porto, que nela promoveu algumas intervenções, que seriam assinadas por outros arquitectos conhecidos: Eduardo Souto de Moura projectou um court de ténis, piscina e ginásio, Gonçalo Ribeiro Telles desenhou os jardins, e Alexandre Burmester e Maria de Fátima Burmester assinaram a recuperação da moradia – um trabalho que lhes valeu uma menção honrosa do Prémio Municipal João de Almada, em 1990.

Presentemente, a casa tem como novo proprietário um empresário nortenho do sector mobiliário.

Honoris Causa em Arquitectura
Em Junho de 1989, Manoel de Oliveira recebeu o seu primeiro doutoramento honoris causa, por iniciativa da Faculdade de Arquitectura do Porto. Apadrinhado pelo seu amigo e documentarista francês Jean Rouch, o cineasta congregou à sua volta uma plêiade de arquitectos da Escola do Porto, entre os quais Fernando Távora, Nuno Portas e o seu afilhado Alexandre Alves Costa...

A atenção que Oliveira sempre tinha dado a esta disciplina, tanto na sua vida como nos seus filmes – na composição da imagem, no rigor do enquadramento, na profundidade de campo… –, justificou esta atenção da escola portuense a uma carreira “identificada com o exercício da criação artística objectivado na sua obra cinematográfica”, como então salientou Nuno Portas.

Passado quase um quarto de século – e numa altura em que se sabe que um dos projectos na secretária do realizador é uma visita guiada à obra de Álvaro Siza –, coube ao primeiro Pritzker português a assinatura do projecto para a prometida Casa do Cinema Manoel de Oliveira, recentemente anunciada pela Fundação de Serralves na sequência de um protocolo assinado com o realizador e a sua família.

A instalar na antiga garagem da residência do Conde de Vizela, através da readaptação do edifício existente e de um novo corpo a construir de raiz, o equipamento terá um arquivo para o acervo do realizador, um auditório, uma sala de exposições e espaços de investigação, mas salvaguardando e respeitando o edifício original, que se pensa possa ter sido projectado pelo arquitecto José Marques da Silva.

Com o protocolo assinado com Serralves, ficou definitivamente posta de parte a utilização, por Manoel de Oliveira, da casa projectada pelo outro Pritzker português, Eduardo Souto de Moura. Anunciado, por altura do 90.º aniversário do realizador, pelo então presidente da Câmara do Porto, Fernando Gomes, o projecto de uma casa para o cinema de Manoel de Oliveira, e para ele próprio, viria a ser terminado em 2003, mas sem que a autarquia, que depois passou a ser governada por Rui Rio, tivesse chegado a acordo com o interessado. O edifício, que Souto de Moura imaginou sobretudo como um espaço “introvertido” e desenhou por analogia com uma câmara de filmar e o olhar de um insecto, está há uma década a degradar-se, e à espera de utilização – resta saber que destino lhe vai ser dado pela nova equipa da Câmara do Porto.

Na quarta-feira passada, depois de uma jornada de homenagens públicas, que terminou na apresentação de um bule lançado pela Vista Alegre, com uma imagem de Aniki-Bóbó, Manoel de Oliveira dizia: “Agora vou para casa”. Mas não era um desabafo de desistência, como o de Gilbert Valence/Michel Piccoli no filme Vou para Casa, em que um velho actor reconhece a sua incapacidade de continuar a desempenhar o seu papel.

Em Manoel de Oliveira, a casa é “algo verdadeiramente sagrado; é o segundo corpo do homem, um refúgio divino”. É nela que o cineasta recupera as energias para continuar a arquitectar os seus filmes. Mesmo se Oliveira chama a atenção para a “grande diferença [que há] entre a arquitectura e o cinema: a arquitectura não mexe, e o cinema, por vezes, mexe demasiado”.

Aos 105 anos, a sonhar com O Velho do Restelo, Oliveira continua a mexer. E não acha que seja de mais.