Um homem pode mudar o curso da História? Pode

A mão que Madiba estendeu a Frederik De Klerk não teria, porventura, sido apertada, se outro homem, antes dele, não tivesse tido a coragem de “descongelar” o mundo. Talvez apenas Gorbatchov se possa comparar com ele. O que os dois fizeram, por caminhos distintos, foi alterar o curso normal da História, impedindo que a queda do império soviético e o fim do apartheid conduzissem a um banho de sangue. Ninguém como eles, nos anos finais do seculo XX, provou até que ponto um homem pode alterar o rumo inevitável dos acontecimentos. Churchill e Roosevelt foram “gigantes políticos” mas o mundo em que viveram apenas considerava metade da humanidade. A única homenagem fúnebre que reuniu um número semelhante de figuras mundiais foi, provavelmente, a que foi prestada a João Paulo II, o primeiro Papa universal que, um dia, desafiou os polacos a “não terem medo”, desferindo o primeiro golpe sobre a “cortina de ferro” e provando que as ideias podem ser mais fortes do que o mais poderoso dos exércitos. Foram precisos outros homens extraordinários, para além de Mandela, para percorrer o caminho que levou o mundo inteiro ao Soweto – o lugar improvável que simbolizou durante décadas a resistência a um dos regimes mais odiosos que o século XX conheceu para que, hoje, se transformasse no símbolo da “humanidade comum” que Obama prometeu e que Mandela encarnou.

2. Foi também preciso que a América tivesse o arrojo de eleger por duas vezes um Presidente negro para que Obama fosse hoje, no Soweto, o orador mais aclamado. Foi ele que pronunciou o discurso mais político, impedindo que as belas palavras de homenagem ao herói da sua juventude escondessem a realidade de um mundo que ainda está pleno de injustiça, de violência e de caos. “Demasiados líderes dizem-se solidários com Mandela, mas não toleram a dissidência no seu próprio povo”. Havia, certamente, alguns na tribuna de onde falou. Obama homenageou o homem para quem os seres humanos eram todos iguais. O homem que estendeu a mão aos carcereiros, conseguindo o milagre de transformar um regime odioso numa democracia.

Dilma, a antiga guerrilheira contra a ditadura militar que lidera hoje uma potência em ascensão, lembrou que “as suas raízes também estão em África”. A Presidente do Brasil, o seu homólogo indiano e o vice-Presidente chinês tiveram direito à palavra e ao aplauso mais por aquilo que representam do que pelos discursos de circunstância que fizeram. A África do Sul é hoje o S que foi acrescentado aos BRIC. Os sul-africanos conhecem-nos porque são os representantes de um outro mundo a que pertencem e que já não é apenas Ocidental. A China é hoje um dos grandes investidores na África do Sul (como em muitos outros países africanos). Pretória ignorou os sucessivos pedidos de visto do Dalai Lama, muito mais próximo da humanidade de Mandela do que o vice-Presidente chinês. A realpolitik sobrevive.

3. David Cameron chegou mais cedo porque, nas suas próprias palavras, não queria perder nem um minuto da cerimónia. O líder britânico não anda na sua melhor forma e tinha a espinhosa missão de representar o colonizador. A triste ausência da Europa foi também uma das imagens da celebração ao “melhor de nós todos”. Estavam lá as suas cabeças coroadas a quem ninguém ligou particular importância. Estavam também os líderes das suas instituições e de muitos dos seus países. E, no entanto, a ausência da Europa foi indisfarçável. O seu lugar neste novo mundo ainda está por definir. François Hollande e Nicolas Sarkozy conversaram longamente (porventura sobre a tarefa impossível de governar a França ou de responder aos massacres africanos). O Presidente francês devia ter partido hoje directamente para Bangui, a capital da República Centro-Africana, mergulhada numa guerra fratricida e onde 1600 soldados franceses tentam colocar alguma ordem, às ordens das Nações Unidas e sem grande ajuda dos seus parceiros europeus. A França é assim e ainda bem. Também em 1992 François Mitterrand partiu inesperadamente para Sarajevo no final de uma cimeira europeia. Foi o primeiro líder a quebrar o cerco à cidade mártir da guerra dos Balcãs e a dizer aos sérvios que o seu mais forte aliado na Europa tinha perdido a paciência. Se o Presidente alemão estava lá, ninguém o viu. Pelo contrário, a ausência de Angela Merkel foi de uma enorme visibilidade. Talvez também porque a Europa ainda arrasta consigo “o fardo do homem branco”, nenhum líder europeu teve direito a discursar. Hoje a Europa, com todo o seu poder económico, vê a sua influência posta em causa pela China e pelo Brasil. Virada para dentro, vergada por uma crise que ninguém, fora das suas fronteiras, consegue compreender, não consegue ver a oportunidade de comprometer-se com esse mundo novo que encontrou o seu herói num homem que nasceu em África e que aprendeu o valor da dignidade, da liberdade e da democracia numa cela onde passou 27 anos. De Klerk percebeu que o fim da Guerra Fria apenas reforçaria o “cordão sanitário” que tinha sido criado à volta do seu país. Também ele esteve à altura do momento que a História lhe reservou. Hoje, foi mais aplaudido do que o próprio Presidente Zuma. Hoje, o mundo viveu um dia de esperança. Sem isso, lembrou Obama, a política é irrelevante.
 
 

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A mão que Madiba estendeu a Frederik De Klerk não teria, porventura, sido apertada, se outro homem, antes dele, não tivesse tido a coragem de “descongelar” o mundo. Talvez apenas Gorbatchov se possa comparar com ele. O que os dois fizeram, por caminhos distintos, foi alterar o curso normal da História, impedindo que a queda do império soviético e o fim do apartheid conduzissem a um banho de sangue. Ninguém como eles, nos anos finais do seculo XX, provou até que ponto um homem pode alterar o rumo inevitável dos acontecimentos. Churchill e Roosevelt foram “gigantes políticos” mas o mundo em que viveram apenas considerava metade da humanidade. A única homenagem fúnebre que reuniu um número semelhante de figuras mundiais foi, provavelmente, a que foi prestada a João Paulo II, o primeiro Papa universal que, um dia, desafiou os polacos a “não terem medo”, desferindo o primeiro golpe sobre a “cortina de ferro” e provando que as ideias podem ser mais fortes do que o mais poderoso dos exércitos. Foram precisos outros homens extraordinários, para além de Mandela, para percorrer o caminho que levou o mundo inteiro ao Soweto – o lugar improvável que simbolizou durante décadas a resistência a um dos regimes mais odiosos que o século XX conheceu para que, hoje, se transformasse no símbolo da “humanidade comum” que Obama prometeu e que Mandela encarnou.

2. Foi também preciso que a América tivesse o arrojo de eleger por duas vezes um Presidente negro para que Obama fosse hoje, no Soweto, o orador mais aclamado. Foi ele que pronunciou o discurso mais político, impedindo que as belas palavras de homenagem ao herói da sua juventude escondessem a realidade de um mundo que ainda está pleno de injustiça, de violência e de caos. “Demasiados líderes dizem-se solidários com Mandela, mas não toleram a dissidência no seu próprio povo”. Havia, certamente, alguns na tribuna de onde falou. Obama homenageou o homem para quem os seres humanos eram todos iguais. O homem que estendeu a mão aos carcereiros, conseguindo o milagre de transformar um regime odioso numa democracia.

Dilma, a antiga guerrilheira contra a ditadura militar que lidera hoje uma potência em ascensão, lembrou que “as suas raízes também estão em África”. A Presidente do Brasil, o seu homólogo indiano e o vice-Presidente chinês tiveram direito à palavra e ao aplauso mais por aquilo que representam do que pelos discursos de circunstância que fizeram. A África do Sul é hoje o S que foi acrescentado aos BRIC. Os sul-africanos conhecem-nos porque são os representantes de um outro mundo a que pertencem e que já não é apenas Ocidental. A China é hoje um dos grandes investidores na África do Sul (como em muitos outros países africanos). Pretória ignorou os sucessivos pedidos de visto do Dalai Lama, muito mais próximo da humanidade de Mandela do que o vice-Presidente chinês. A realpolitik sobrevive.

3. David Cameron chegou mais cedo porque, nas suas próprias palavras, não queria perder nem um minuto da cerimónia. O líder britânico não anda na sua melhor forma e tinha a espinhosa missão de representar o colonizador. A triste ausência da Europa foi também uma das imagens da celebração ao “melhor de nós todos”. Estavam lá as suas cabeças coroadas a quem ninguém ligou particular importância. Estavam também os líderes das suas instituições e de muitos dos seus países. E, no entanto, a ausência da Europa foi indisfarçável. O seu lugar neste novo mundo ainda está por definir. François Hollande e Nicolas Sarkozy conversaram longamente (porventura sobre a tarefa impossível de governar a França ou de responder aos massacres africanos). O Presidente francês devia ter partido hoje directamente para Bangui, a capital da República Centro-Africana, mergulhada numa guerra fratricida e onde 1600 soldados franceses tentam colocar alguma ordem, às ordens das Nações Unidas e sem grande ajuda dos seus parceiros europeus. A França é assim e ainda bem. Também em 1992 François Mitterrand partiu inesperadamente para Sarajevo no final de uma cimeira europeia. Foi o primeiro líder a quebrar o cerco à cidade mártir da guerra dos Balcãs e a dizer aos sérvios que o seu mais forte aliado na Europa tinha perdido a paciência. Se o Presidente alemão estava lá, ninguém o viu. Pelo contrário, a ausência de Angela Merkel foi de uma enorme visibilidade. Talvez também porque a Europa ainda arrasta consigo “o fardo do homem branco”, nenhum líder europeu teve direito a discursar. Hoje a Europa, com todo o seu poder económico, vê a sua influência posta em causa pela China e pelo Brasil. Virada para dentro, vergada por uma crise que ninguém, fora das suas fronteiras, consegue compreender, não consegue ver a oportunidade de comprometer-se com esse mundo novo que encontrou o seu herói num homem que nasceu em África e que aprendeu o valor da dignidade, da liberdade e da democracia numa cela onde passou 27 anos. De Klerk percebeu que o fim da Guerra Fria apenas reforçaria o “cordão sanitário” que tinha sido criado à volta do seu país. Também ele esteve à altura do momento que a História lhe reservou. Hoje, foi mais aplaudido do que o próprio Presidente Zuma. Hoje, o mundo viveu um dia de esperança. Sem isso, lembrou Obama, a política é irrelevante.