Nas Cerci cada pessoa com deficiência é “um cliente” que merece o “máximo”
O Prémio Direitos Humanos 2013, da Assembleia da República, é entregue terça-feira à Fenacerci pelo seu trabalho com pessoas com deficiência intelectual. Farid Walizadeh, um afegão de 16 anos, e José António Pinto, assistente social da Junta de Freguesia de Campanhã, são distinguidos com uma medalha de ouro. Histórias de esperança em tempos de crise.
“À noite vêem as notícias em casa, na televisão. Algumas são um pouco confusas para eles. Quando chegam aqui de manhã, começam a falar disso. De repente, acham que o país vai entrar em ruptura, que as pessoas vão todas ficar sem dinheiro”, conta Inês Melo, psicóloga no Centro de Transição para a Vida Adulta e Activa, em Marvila, um dos três centros da Cerci (Cooperativa de Educação e Integração de Cidadãos com Incapacidades) de Lisboa. As técnicas procuraram explicar as notícias que parecem perturbá-los mais. Mas, às vezes, a ansiedade é difícil de domar. “Descontrolam-se ao ponto de ficarem agressivos.” Já aconteceu com Luís.
A Cerci de Lisboa é uma das 54 que existem em todo o país. Acompanham 12 mil pessoas com deficiência intelectual ou multideficiência. Empregam 3500 funcionários. A Federação Nacional de Cooperativas de Solidariedade (Fenacerci), que as representa, é a organização que a Assembleia da Republica decidiu, este ano, distinguir com o Prémio Direitos Humanos.
O prémio tem o valor de 25 mil euros. E será entregue terça-feira, Dia dos Direitos Humanos, no Palácio de S. Bento. O júri foi constituído pelos deputados Fernando Negrão (presidente), Guilherme Silva (PSD), Maria de Belém Roseira (PS), Telmo Correia (CDS/PP), António Filipe (PCP), Cecília Honório (BE), José Luís Ferreira (PEV). Que justificaram assim a escolha da Fenacerci: “Pela sua intervenção na defesa dos interesses e direitos das pessoas com deficiência intelectual e/ou multideficiência e suas famílias e pelo trabalho desenvolvido em termos de sensibilização da opinião pública sobre esta problemática.”
As Cerci têm quase 40 anos. Mas muito tem mudado na sua intervenção junto das pessoas com deficiência. O centro de Marvila, visitado pelo PÚBLICO na sexta-feira, tem mais de 100 “clientes” – “clientes” passou a ser a palavra usada por todos os técnicos e funcionários, substituindo a palavra “utentes”, que é a que mais se ouve quando se visitam outras instituições sociais. É uma questão de atitude, diz Julieta Sanches, presidente da direcção da Fenacerci.
Tem a ver com a noção de que aqui se oferece um serviço que procura ter “a máxima qualidade” e sobre o qual o cliente tem uma palavra a dizer, continua. “Chamar-lhes clientes aumenta a sua auto-estima e muda atitudes. As deles, as dos técnicos e as das famílias.”
Todos os clientes que frequentam centros deste tipo têm mais de 18 anos. No de Marvila passam os dias em actividades, das nove da manhã às cinco da tarde – de actividades lúdicas e desportivas, como o teatro e a ginástica, às chamadas “actividades socialmente úteis”, que têm como objectivo promover a “autonomia e facilitar uma possível transição para programas de inserção sócio-profissional”. Vários estão integrados em empresas, como os CTT, e têm uma pequena remuneração, conta Ana Santos, a directora do centro
Cada cliente tem um projecto de vida, que é reavaliado de três em três anos, onde se definem terapias, actividades, objectivos. Sempre em função das características de cada um – e são todos muito diferentes.
Humberto, de 38 anos, ouve mal, tem um atraso cognitivo, mas fixa todas as datas – dos aniversários dos funcionários da Cerci, aos anos em que as equipas do campeonato português ficaram em 1.º lugar. Nuno, de 37, é um dos quatro, em mais de 100, que tem noção da deficiência que tem, que sabe explicar a causa da mesma (um acidente de automóvel, em criança, no qual perdeu uma grande quantidade de massa encefálica) e o impacto que ela tem na sua vida. Há tempos, desabafava: “Não posso fazer o que ‘os outros’ fazem. Não posso casar-me, por exemplo.”
Na sala ao lado daquela onde Luís nos fala da troika e das famílias que não pagam a luz, encontramos ainda Mário, o rapaz de 23 anos a quem os médicos disseram, quando era pequeno, que ficaria para sempre dependente de uma cadeira de rodas. Mário também tem uma deficiência intelectual, com diagnóstico não especificado, associada a problemas motores. Mas este sportinguista, fã de música rock (“Tara Perdida, Xutos, João Pedro Pais e... e...” Falta uma banda. Como se pôde esquecer? É uma das suas favoritas. “E Orelha Negra!!”, diz alto, entusiasmado, mal o nome lhe vem à cabeça), esforça-se ao máximo e faz todos os exercícios que a fisioterapeuta do centro lhe diz para fazer. Afinal, anda, as pernas obedecem-lhe.
Crise em várias frentes
Há actividades em cada sala: numa fazem-se mealheiros, com pasta de papel; noutra, candeeiros; noutra há fisioterapia; e na de Mário todos trabalham afincadamente para dar conta de uma encomenda de uma empresa que pediu à Cerci de Lisboa 100 cartões de boas-festas. Encomendas deste tipo ajudam as Cerci a sobreviver.
Cerca de 60% do financiamento destas instituições que têm o estatuto de utilidade pública provém do Estado, explica Julieta Sanches; outra parte é suportada pelas mensalidades das famílias (em média, 130 euros), que pagam em função do escalão de IRS; e, por fim, há as campanhas, como a do Pirilampo Mágico (anos houve em que se vendiam um milhão por ano, passou para 600 mil). Quanto aos donativos, de particulares, empresas e autarquias, têm vindo a baixar. A culpa é da crise, garante.
De resto, muitas famílias têm vindo a pedir a revisão da comparticipação que lhes cabe, porque não conseguem pagar. “Na Cerci de Lisboa já houve uma pessoa a tirar o familiar do centro.” Por outro lado, prossegue, tudo está mais caro. A começar pelos produtos alimentares. Já o financiamento do Estado não acompanhou. “Nestes últimos anos os acertos têm sido da ordem dos 0,9% ao ano, o que é pouco significativo. E coloca dificuldades às instituições.”
Mas há mais. As Cerci nasceram na segunda metade da década de 70. No início, o trabalho era fundamentalmente dirigido à população em idade escolar, mas, nos últimos anos, as crianças passaram a frequentar as escolas públicas e é aí que muitos técnicos das Cercis (terapeutas da fala, fisioterapeutas, entre outros) trabalham actualmente, em colaboração com os professores. Não sem problemas.
Não só os apoios do Estado (para pagar a esses técnicos) ficam “substancialmente aquém das necessidades” – o que faz com que nem todas as crianças tenham as respostas necessárias – como se atrasam. E há mesmo Cerci a pedir empréstimos bancários para pagar salários, já que muitas não recebem desde Setembro.
Mas apesar das dificuldades, o prémio é considerado “uma honra” – “É um prémio que reconhece o esforço da Fenacerci”, diz Julieta Sanches. “É um trabalho árduo. Nem sempre é fácil dialogar com os políticos. No entanto, a defesa dos direitos destas pessoas é a missão que a Fenacerci tem.”
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“À noite vêem as notícias em casa, na televisão. Algumas são um pouco confusas para eles. Quando chegam aqui de manhã, começam a falar disso. De repente, acham que o país vai entrar em ruptura, que as pessoas vão todas ficar sem dinheiro”, conta Inês Melo, psicóloga no Centro de Transição para a Vida Adulta e Activa, em Marvila, um dos três centros da Cerci (Cooperativa de Educação e Integração de Cidadãos com Incapacidades) de Lisboa. As técnicas procuraram explicar as notícias que parecem perturbá-los mais. Mas, às vezes, a ansiedade é difícil de domar. “Descontrolam-se ao ponto de ficarem agressivos.” Já aconteceu com Luís.
A Cerci de Lisboa é uma das 54 que existem em todo o país. Acompanham 12 mil pessoas com deficiência intelectual ou multideficiência. Empregam 3500 funcionários. A Federação Nacional de Cooperativas de Solidariedade (Fenacerci), que as representa, é a organização que a Assembleia da Republica decidiu, este ano, distinguir com o Prémio Direitos Humanos.
O prémio tem o valor de 25 mil euros. E será entregue terça-feira, Dia dos Direitos Humanos, no Palácio de S. Bento. O júri foi constituído pelos deputados Fernando Negrão (presidente), Guilherme Silva (PSD), Maria de Belém Roseira (PS), Telmo Correia (CDS/PP), António Filipe (PCP), Cecília Honório (BE), José Luís Ferreira (PEV). Que justificaram assim a escolha da Fenacerci: “Pela sua intervenção na defesa dos interesses e direitos das pessoas com deficiência intelectual e/ou multideficiência e suas famílias e pelo trabalho desenvolvido em termos de sensibilização da opinião pública sobre esta problemática.”
As Cerci têm quase 40 anos. Mas muito tem mudado na sua intervenção junto das pessoas com deficiência. O centro de Marvila, visitado pelo PÚBLICO na sexta-feira, tem mais de 100 “clientes” – “clientes” passou a ser a palavra usada por todos os técnicos e funcionários, substituindo a palavra “utentes”, que é a que mais se ouve quando se visitam outras instituições sociais. É uma questão de atitude, diz Julieta Sanches, presidente da direcção da Fenacerci.
Tem a ver com a noção de que aqui se oferece um serviço que procura ter “a máxima qualidade” e sobre o qual o cliente tem uma palavra a dizer, continua. “Chamar-lhes clientes aumenta a sua auto-estima e muda atitudes. As deles, as dos técnicos e as das famílias.”
Todos os clientes que frequentam centros deste tipo têm mais de 18 anos. No de Marvila passam os dias em actividades, das nove da manhã às cinco da tarde – de actividades lúdicas e desportivas, como o teatro e a ginástica, às chamadas “actividades socialmente úteis”, que têm como objectivo promover a “autonomia e facilitar uma possível transição para programas de inserção sócio-profissional”. Vários estão integrados em empresas, como os CTT, e têm uma pequena remuneração, conta Ana Santos, a directora do centro
Cada cliente tem um projecto de vida, que é reavaliado de três em três anos, onde se definem terapias, actividades, objectivos. Sempre em função das características de cada um – e são todos muito diferentes.
Humberto, de 38 anos, ouve mal, tem um atraso cognitivo, mas fixa todas as datas – dos aniversários dos funcionários da Cerci, aos anos em que as equipas do campeonato português ficaram em 1.º lugar. Nuno, de 37, é um dos quatro, em mais de 100, que tem noção da deficiência que tem, que sabe explicar a causa da mesma (um acidente de automóvel, em criança, no qual perdeu uma grande quantidade de massa encefálica) e o impacto que ela tem na sua vida. Há tempos, desabafava: “Não posso fazer o que ‘os outros’ fazem. Não posso casar-me, por exemplo.”
Na sala ao lado daquela onde Luís nos fala da troika e das famílias que não pagam a luz, encontramos ainda Mário, o rapaz de 23 anos a quem os médicos disseram, quando era pequeno, que ficaria para sempre dependente de uma cadeira de rodas. Mário também tem uma deficiência intelectual, com diagnóstico não especificado, associada a problemas motores. Mas este sportinguista, fã de música rock (“Tara Perdida, Xutos, João Pedro Pais e... e...” Falta uma banda. Como se pôde esquecer? É uma das suas favoritas. “E Orelha Negra!!”, diz alto, entusiasmado, mal o nome lhe vem à cabeça), esforça-se ao máximo e faz todos os exercícios que a fisioterapeuta do centro lhe diz para fazer. Afinal, anda, as pernas obedecem-lhe.
Crise em várias frentes
Há actividades em cada sala: numa fazem-se mealheiros, com pasta de papel; noutra, candeeiros; noutra há fisioterapia; e na de Mário todos trabalham afincadamente para dar conta de uma encomenda de uma empresa que pediu à Cerci de Lisboa 100 cartões de boas-festas. Encomendas deste tipo ajudam as Cerci a sobreviver.
Cerca de 60% do financiamento destas instituições que têm o estatuto de utilidade pública provém do Estado, explica Julieta Sanches; outra parte é suportada pelas mensalidades das famílias (em média, 130 euros), que pagam em função do escalão de IRS; e, por fim, há as campanhas, como a do Pirilampo Mágico (anos houve em que se vendiam um milhão por ano, passou para 600 mil). Quanto aos donativos, de particulares, empresas e autarquias, têm vindo a baixar. A culpa é da crise, garante.
De resto, muitas famílias têm vindo a pedir a revisão da comparticipação que lhes cabe, porque não conseguem pagar. “Na Cerci de Lisboa já houve uma pessoa a tirar o familiar do centro.” Por outro lado, prossegue, tudo está mais caro. A começar pelos produtos alimentares. Já o financiamento do Estado não acompanhou. “Nestes últimos anos os acertos têm sido da ordem dos 0,9% ao ano, o que é pouco significativo. E coloca dificuldades às instituições.”
Mas há mais. As Cerci nasceram na segunda metade da década de 70. No início, o trabalho era fundamentalmente dirigido à população em idade escolar, mas, nos últimos anos, as crianças passaram a frequentar as escolas públicas e é aí que muitos técnicos das Cercis (terapeutas da fala, fisioterapeutas, entre outros) trabalham actualmente, em colaboração com os professores. Não sem problemas.
Não só os apoios do Estado (para pagar a esses técnicos) ficam “substancialmente aquém das necessidades” – o que faz com que nem todas as crianças tenham as respostas necessárias – como se atrasam. E há mesmo Cerci a pedir empréstimos bancários para pagar salários, já que muitas não recebem desde Setembro.
Mas apesar das dificuldades, o prémio é considerado “uma honra” – “É um prémio que reconhece o esforço da Fenacerci”, diz Julieta Sanches. “É um trabalho árduo. Nem sempre é fácil dialogar com os políticos. No entanto, a defesa dos direitos destas pessoas é a missão que a Fenacerci tem.”