A casa dos sonhos de Teresa tornou-se no seu maior pesadelo


A primeira vez que Teresa entrou no número 62 da Square Marie-Louise, no Bairro Europeu, em Bruxelas, soube que aquela seria uma paixão para a vida. “Apaixonei-me por esta casa como uma mulher se apaixona por um homem. Só que não era um homem, era o homem.” O chão de madeira de carvalho, os tectos altos, os vitrais do século XIX, o sumptuoso salão onde imaginou logo “uma mesa para mais de 20 pessoas como a dos Cavaleiros da Távola Redonda”, transportaram-na para as memórias da casa de Goa, a terra natal dos pais, onde nunca esteve, mas que tantas vezes lhe foi descrita.

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A primeira vez que Teresa entrou no número 62 da Square Marie-Louise, no Bairro Europeu, em Bruxelas, soube que aquela seria uma paixão para a vida. “Apaixonei-me por esta casa como uma mulher se apaixona por um homem. Só que não era um homem, era o homem.” O chão de madeira de carvalho, os tectos altos, os vitrais do século XIX, o sumptuoso salão onde imaginou logo “uma mesa para mais de 20 pessoas como a dos Cavaleiros da Távola Redonda”, transportaram-na para as memórias da casa de Goa, a terra natal dos pais, onde nunca esteve, mas que tantas vezes lhe foi descrita.

Lembra-se de olhar para as paredes e pensar como havia espaço de sobra para pendurar as fotografias dos seus avós que trouxe consigo de Portugal e teve a certeza de que seriam aqueles 640m2 a abrigar o passado, o presente e o futuro da sua família. Tal como nos grandes amores, não sabe bem explicar o que lhe aconteceu: “Senti que era esta, pronto.” O marido disse-lhe que só podia estar doida, “era uma casa demasiado grande, a precisar de muitas obras, que exigia um grande investimento”. A mãe, como mãe que vê um filho perdido de amor, pediu-lhe para ter calma e alertou-a: “Tu vê lá no que te estás a meter, Teresa. Esta casa não é para ti.”

Situada no Bairro Europeu, um dos mais caros de Bruxelas, tem vista para um lago onde corre uma cascata e está rodeada por casas burguesas unifamiliares. “Um edifício de estilo ecléctico, inspiração Renascentista e composição assimétrica, de 1884”, descreve o Inventário do Património Arquitectónico de Bruxelas. Ao fundo da rua, o Hotel van Eetvelde, desenhado por Victor Horta (um conhecido arquitecto belga) em 1895 e declarado Património da Humanidade pela UNESCO, é o ex-líbris da área.

“O preço da casa foi muito interessante porque esta zona não era nada do que se vê hoje. Estava praticamente abandonada, havia apenas umas 30 vivendas com árvores a sair pelos telhados. Depois, a vaga de expropriações que ocorreram no Bairro Europeu fez com que as pessoas tivessem medo de investir aqui. Se não estivesse a ‘cair de podre’, nunca teríamos podido comprá-la”, confessa Manuel, preferindo não revelar números. “Em Portugal, ninguém normal, como nós, pode ter uma casa destas, mesmo que a encontre a morrer de velha. Não me devia ter deslumbrado porque agora é o nosso maior pesadelo”, lamenta Teresa.

O Quartier Léopold ou Quartier Européen, como acabou por ficar conhecido, começou a ser construído em 1837, uma iniciativa da Sociedade Civil para a Expansão e Embelezamento da Capital da Bélgica, apoiada pelo rei Léopold I, a quem deve o seu nome. Durante a segunda metade do século XX, o bairro quase perdeu todos os seus habitantes, muitos deles forçados a vender casas e terrenos para que pudessem ser construídos escritórios e edifícios administrativos.

“Eurolândia” é assim que o apelida o jornal La Libre Bélgique, num artigo publicado em Junho de 2010. Abriga a sede do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia, é aí que vivem também muitos dos seus funcionários. “Zona administrativa sem alma”, “gueto de colarinhos brancos”, “apartheid económico-social” são alguns dos nomes que a imprensa belga lhe chama. Ali, trabalha cerca de 10% da população total de Bruxelas, uma comunidade que tem “tendência a viver num mundo paralelo”, de acordo com o investigador Emanuele Gatti, autor de vários estudos sobre expatriados na Bélgica. Talvez por isso o vizinho do lado de Teresa e Manuel não tenha percebido como é que um casal de imigrantes luso-espanhol conseguiu comprar uma casa naquele bairro: “Não entendo como é que pessoas como vocês vivem aqui”, disse-lhes logo quando se mudaram. “Há muita gente que pensa que por sermos português e espanhol somos inferiores”, atira Teresa.

Mestres-de-obras

Teresa Oliveira, 51 anos, e Manuel Cerviño, 49, ainda não se conheciam quando deixaram Lisboa e Madrid para ir trabalhar para a Comissão Europeia, no Luxemburgo. Queriam “apanhar o ar fresco da Europa e experimentar outras culturas, mais tolerantes e democráticas”. No final dos anos 1980, fervilhavam a discoteca Kremlin, os bares de Alcântara e a movida madrileña, e tanto Portugal como Espanha tinham saído de uma ditadura há pouco mais de dez anos. Teresa e Manuel viviam o sonho da Europa, acreditavam no projecto europeu e sentiam-se com força para mudar o mundo. Conheceram-se depois de Teresa ter passado um fim de ano no Rio de Janeiro e ter pedido a Iemanjá (deusa do mar) para lhe arranjar um marido. Quando regressou ao Luxemburgo, depois das férias, cruzou-se com Manuel. Tinha 27 anos e já se estava a preparar para voltar a Portugal: “Preferia morrer casada e pobre do que rica e só.”

Quase dez anos depois, mudaram-se do Luxemburgo para Bruxelas com as duas filhas, Marta e Inês, agora com 21 e 19 anos. Teresa queria fazer um mestrado em Política Internacional, passou a trabalhar na Direcção-Geral de Educação e Cultura e o marido na Direcção-Geral de Informática, ambos na Comissão Europeia. Com apenas 15 dias de Bélgica, decidiu que o número 62 da Square Marie-Louise seria a sua casa. Manuel olhava para o tamanho gigante do edifício, para o seu estado degradado e não conseguia deixar de pensar que “estava a dar um passo maior do que a perna”. Obstinada, Teresa não se rendeu. Quando a agência imobiliária lhe disse que a casa já estava vendida, contactou directamente o proprietário: “Não, não está nada vendida. Se a quiserem, é vossa”, ouviu do outro lado. “Tudo especulação imobiliária para ver se pagávamos mais”, explica Manuel.

Foi assim que, no início de 1999, começaram a transformar uma habitação senhorial do século XIX quase em ruínas no seu “palácio”. Viram logo que era um projecto para muito tempo. Em 14 anos, já gastaram em remodelações duas vezes mais do que o preço de compra. Picaram paredes, trocaram o chumbo das canalizações por cobre, fizeram um novo telhado de xisto, recuperaram a garagem. A traça antiga era aquilo de que mais gostavam, por isso, o lema era “preservar, preservar, preservar”.

Teresa foi sempre a mestre-de-obras, “aqui em casa funciona ao contrário, eu não gosto nada desses trabalhos”, confessa Manuel. Contrataram um especialista em restauro de castelos para arranjar o tecto da sala e outro em recuperação de vitrais. Foi Teresa quem tirou, um a um, os mosaicos antigos do chão da cozinha para que não se partissem e explicou ao ladrilhador a forma como deveriam ficar dispostos. De Inglaterra, trouxe os interruptores para a sala, a imitar os antigos, que já não se vendiam em Bruxelas.

Aos fins-de-semana, em vez de ir ao cinema, passava ali o seu tempo. Foi naquela casa que as filhas fizeram festas de pijama, celebraram aniversários e a entrada na universidade e se despediram de amigos que entretanto já deixaram Bruxelas. “Estava sempre cheia, os miúdos adoravam vir para cá. Era a nossa casa, que nós tínhamos construído com os móveis da minha mãe, as nossas fotografias, as nossas recordações. Deu-me muito gozo montá-la”, recorda Teresa, enquanto olha em volta para o espaço agora vazio. Queriam tudo do bom e do melhor para só terem de “gastar o dinheiro uma vez”.

A caldeira Viessman (uma conhecida marca alemã famosa pela qualidade das suas soluções de aquecimento) foi o carro novo que Teresa nunca teve. “Vendi o meu apartamento em Lisboa para ter dinheiro para o restauro, investimos aqui 27 anos de trabalho e ainda faltam mais cinco para acabarmos de pagar o empréstimo. Não comprámos uma casa em Espanha ou em Portugal. Nada. Tudo o que temos está nestas paredes”, diz com a voz embargada a apontar para a fenda que se abriu no tecto de gesso da sala nos últimos meses. As lágrimas começam a correr-lhe pelo rosto, já só consegue chorar. O marido afaga-lhe as costas e pede-lhe para se acalmar. Às vezes, atropelam-se um ao outro e ficam ainda mais enervados, têm ânsia de contar tudo ao mesmo tempo, não querem deixar escapar nenhum pormenor.

Sustos atrás de sustos 

A “cronologia do horror”, como lhe chama Manuel, começou em Agosto de 2012, quando uma das maiores construtoras belgas, a centenária Lixon, iniciou a demolição do prédio ao lado da sua casa para erguer o Lake View [Vista para o Lago], um complexo de 33 apartamentos com “acabamentos de alta qualidade” e “vista para o lago da Square Marie-Louise”, “a 300 metros da Comissão Europeia”, com preços entre os 240 mil euros (67m2) e os 565 mil euros (167m2), descreve o site da empresa. Primeiro, a parede da garagem estalou do rés-do-chão até ao sótão. Dois ou três dias mais tarde, uma das vigas de madeira da casa incendiou-se.

A seguir, foi Inês, a filha mais nova, quem apanhou um susto enquanto tomava banho: “Ó pai, ó mãe, venham cá porque há bocados de tijolo a cair no chão”, o resultado foram dois buracos na parede do sótão. Mas, até aí, acharam tudo normal. Atribuíram a culpa das fissuras que começavam a aparecer por toda a casa à trepidação causada pelas obras.

Estavam contentes porque o prédio ocupado por toxicodependentes e sem-abrigo durante mais de dez anos iria desaparecer. Relevaram quando souberam que a entrada para as garagens ficaria paredes meias com a janela do seu quarto e tentaram ignorar o horário matutino a que começavam as obras. “Vinham pôr contentores às quatro da manhã com sinais luminosos e sonoros. Depois, às cinco e meia, quando já tínhamos conseguido adormecer de novo, começavam com as demolições. Era a tortura do sono”, relata Manuel.

Em Outubro, alugaram um pequeno apartamento com um quarto e uma sala (as filhas ficavam no sofá). Continuaram a viver em casa, mas à noite, depois do jantar, pegavam nas roupas para o dia seguinte, enfrentavam o frio, a chuva e a neve, e iam dormir para o apartamento alugado. Nunca se queixaram, só queriam que tudo acabasse o mais depressa possível.

Crateras no chão

A 5 de Março deste ano, quando um bloco de cimento perfurou o solo da garagem e fez um grande buraco no chão, tiveram a certeza de que algo de anormal se passava. A Lixon prometeu parar as obras até identificar o problema e enviar uma conclusão por escrito sobre o que tinha acontecido. O documento nunca chegou e, três dias depois, eclodiram mais “dois vulcões de betão” na garagem. Nessa altura, decidiram voltar a dormir em casa. As fissuras nas paredes eram cada vez mais e maiores e as escadas de madeira, que Teresa tantas vezes encerou, começavam a sair da parede. Descobriram que, sem autorização deles, a Lixon estava a mexer no subsolo da sua casa e a injectar cimento de alta pressão através de barras metálicas com mais de oito metros de comprimento. Por sorte, não tocaram nas frágeis fundações, construídas sobre tijolo em cima de um lago, ou tudo teria ruído como uma torre construída com um baralho de cartas.

“As fundações da casa são frágeis e o solo muito pobre, encontrámos uma realidade pior do que a que esperávamos, por isso tivemos de recorrer a medidas adicionais. Somos uma empresa familiar, a última coisa que queremos é criar problemas”, explica a administradora delegada da Lixon, Virginie Dufrasne.

Os Dufrasne, proprietários da Lixon, estão entre as 200 famílias mais ricas da Bélgica, com uma fortuna avaliada em 32.834 milhões de euros, de acordo com o anuário publicado pela editora Van Halewyck. “Trabalhamos com os melhores profissionais e os nossos engenheiros garantem que as injecções de cimento são o procedimento mais adequado em casos como este”, acrescenta a administradora.

O engenheiro civil e professor do Instituto Superior Técnico (IST) Alexandre Pinto, a quem a família Cerviño recorre sempre que necessita de um parecer técnico, não concorda: “O jet grouting é uma prática pouco corrente, agravada pelo facto de ter sido feita sem o consentimento dos proprietários. Além disso, a pressão utilizada, na ordem de 500 a 400 bar, foi excessiva, sobretudo tratando-se de um edifício sensível, com mais de 125 anos.” Com esta técnica, a empresa gera mais área útil para os estacionamentos, reduz o tempo de construção, mas põe em risco a sustentação da casa do lado “porque as colunas de contenção estão inclinadas na direcção do subsolo do edifício vizinho”, precisa Alexandre Pinto.

David contra Golias

Perceberam que nunca conseguiriam chegar a um acordo com a Lixon, “era a luta de David contra Golias”, compara Teresa, e decidiram contratar uma advogada belga para os defender. “É uma situação inadmissível”, disse quando o casal lhes explicou os últimos episódios. Deram entrada com um processo em tribunal e nesse mesmo dia, a 11 de Abril, o juiz proibiu que a construtora continuasse a servir-se do terreno vizinho. Quatro dias depois, numa mudança de comportamento que até hoje não conseguem explicar, a mesma advogada começou a pressioná-los a assinar um acordo para que a Lixon pudesse prosseguir com os trabalhos: “É uma empresa séria, o melhor é chegarem a acordo o mais rapidamente possível ou poderão ser obrigados a pagar 25 mil euros por cada dia de paragem [o valor diário que diziam perder].” Mudaram de advogado e começaram a sentir medo, não só de viverem dentro de uma casa que de dia para dia parecia mais frágil, mas também dos contornos “surreais” que o caso estava a tomar.

A 13 de Junho, Teresa acordou de manhã e ouviu um ruído estridente. Já a tinham avisado que no dia em que isso acontecesse só haveria uma coisa a fazer: fugir. Telefonou para o 112 a pedir ajuda, umas horas depois os bombeiros declararam a sua casa “inabitável¨. Com a polícia à porta, tiveram duas horas para recolher tudo o que precisavam. “Nessa altura, percebi o que os judeus sofreram durante a II Guerra Mundial, quando eram obrigados a deixar as suas casas”, recorda Manuel. “Quando chamei os bombeiros, nunca pensei que nos iam pôr na rua. Até porque nunca pensei que a irresponsabilidade pudesse chegar a este nível. Ninguém está preparado. Nestes momentos, não sabemos de nada, não encontramos nada, é um choque”, acrescenta Teresa. Saíram com quatro malas na mão, duas de roupa, as outras duas cheias de dossiers do processo contra a Lixon. “A Teresa ainda teve o cuidado de esvaziar os congeladores e levar a comida”, brinca Manuel ao mesmo tempo que lhe faz uma festa no rosto. Apesar de tudo, nunca perde o sentido de humor. Voltaram a ter autorização para entrar, mas não podem lá viver.

Nos últimos meses, tinham tentado falar com o Departamento de Urbanismo da Câmara Municipal de Bruxelas vezes sem conta. Voltaram a fazê-lo e voltaram a receber a velha resposta: “Não podemos adiantar nada, esse é um problema entre particulares. A nós, compete-nos apenas aprovar os projectos, tudo o resto terá de ser resolvido em tribunal.” A Revista 2 contactou o gabinete do vereador do Urbanismo e Património, Geoffroy Coomans de Brachène, que se recusou a comentar o caso por se tratar “de um assunto privado entre duas partes.” “Em Portugal, sobretudo em Lisboa, existe um regulamento moderno e exigente para estes casos (RMUEL). A câmara municipal aprecia as soluções de projecto e fiscaliza as obras. O dono da obra, sobretudo em trabalhos sensíveis, também o faz. Em Bruxelas, fomos informados de que esta não é uma prática corrente. A câmara poderá não se envolver entre dois particulares, mas deverá intervir sempre que a segurança de pessoas e bens esteja posta em causa”, analisa o professor do IST.

"Inabitável"

Depois de o perito nomeado pelo tribunal lhes ter dito ao telefone que a única solução disponível seria prosseguirem com as injecções de betão — “vamos a meio do rio, temos de continuar a nadar” —, decidiram a 18 de Junho, já em desespero de causa, montar uma tenda na rua. Durante quatro noites, Teresa, Marta, Inês e Manuel, dormiram dentro dos seus dois carros com um único intuito: chamar a atenção mediática. “Liguei para a Agência Belga, de notícias, e disseram-me que se acampasse à porta enviariam para aqui jornalistas. Foi isso que fiz, estava disposta a tudo. Se não resultasse, a seguir fazia greve de fome. O facto de haver mais pessoas a conhecer esta história descansava-me, sentia-me mais protegida”, confessa Teresa. Foram notícia no Jornal da Noite da SIC e em várias televisões e jornais belgas. Publicaram um vídeo no YouTube, “We lost our home! Please, help us”, criaram uma página no Facebook, “Square Marie Louise 62, Bruxelles”, e lançaram uma petição online, “Ensemble pour que Lixon cesse la destruction! [Juntos para que Lixon pare a destruição!]”.

Espantaram-se quando, num dos dias em que estavam acampados, o vereador do Urbanismo e Património da Câmara Municipal de Bruxelas, com quem até então nunca tinham falado, lhes apareceu à porta de moto, depois da meia-noite. Geoffroy de Brachène queria conversar com o casal, Teresa antecipou-lhe que o próximo passo seria pendurar-se na máquina mais alta das obras e algemar-se lá em cima. “Estava passada, só lhe disse anormalidades”, confessa.

Depois de todo o aparato, a Lixon aceitou entrar no número 62 da Square Marie-Louise para avaliar os estragos, a primeira vez em quatro meses. Apresentaram um plano de estabilização com o qual o professor Alexandre Pinto não concordou por considerar “perigoso” e levaram quase dois meses a responder às suas dúvidas e comentários. “Respeito muito a opinião do professor Pinto, mas os meus engenheiros dizem-me o contrário. Aquilo que sugiro é que nos sentemos a uma mesa ou falemos por telefone, enviar emails, como tem acontecido até agora, não facilita a discussão. Além disso, nessa altura, propusemos pagar à família Cerviño um ano de renda noutro apartamento e oferecemos-lhe um adiantamento de dinheiro que recusaram. Tentamos telefonar, mandamos mensagens, sempre sem resposta, assim é difícil”, queixa-se Virginie Dufrasne.

Teresa ri-se de nervoso e reage: “O professor Alexandre Pinto já veio a Bruxelas, pago por nós, explicar por que não concorda com os métodos da Lixon, mas não conseguiram chegar a nenhum acordo. Perdemos toda a confiança, não queremos mais diálogos verbais, agora é tudo por escrito para ficar registado. Os 25 mil euros que nos quiseram adiantar, tinham como contrapartida pararmos com a exposição mediática, além de que desconhecíamos as implicações legais de aceitarmos esse dinheiro. E é mentira que nos tenham tentado contactar.” “E também é mentira que nos tenham oferecido um mês de renda. Aquilo que nos propuseram foi que lhes alugássemos a nossa casa durante um ano, por 3 mil euros mensais, para fazerem todas as obras sem que pudéssemos lá entrar”, acrescenta Manuel.

Vida em suspenso

Farto do diz-que-disse, Manuel decidiu que a melhor solução seria vender a casa. Sabia que seria uma “decisão muito dolorosa para Teresa”, para a poupar deu sozinho os primeiros passos para a negociação. Incapaz de entrar em diálogo com a construtora, pediu ao cunhado, com experiência no mercado imobiliário, que fosse a Bruxelas para mediar o negócio. Como resposta, receberam uma carta onde a Lixon lhes oferecia metade do valor em que a consultora internacional Knight Frank tinha avaliado o imóvel. Uma espécie de “ultimato”: “Se não aceitarem, vamos processar-vos.” Assim foi, no mês de Novembro foram chamados a uma audiência em tribunal por “abuso de direito”. “Põem mais esforços nos media e nas redes sociais do que a tentar chegar a um acordo connosco. Esta situação tem de ser resolvida o mais depressa possível, não podemos perder mais tempo”, acusa Virginie Dufrasne. O caso aguarda por uma decisão do tribunal mas, entretanto, a família Cerviño não sabe quantos mais meses terá de pagar ao advogado. Tem a vida em suspenso e todos os dias vê a sua casa a descolar-se mais uns milímetros da do vizinho.

"O que eu não consigo perceber é porque é que a Lixon não prossegue com a construção sem usar o nosso terreno, é só isso que pedimos, que não mexam mais no subsolo da nossa casa. Mesmo de um ponto de vista empresarial, avaliando o custo/benefício, o que ganham eles por ter uma obra parada há mais de sete meses?”, desabafa Manuel, que, com tanto stress, já perdeu dez quilos desde Junho. “No fundo, pensam que mais cedo ou mais tarde acabaremos por ceder e vender-lhes isto por tuta e meia, mas enganam-se”, remata Teresa.

Agora estão a viver num apartamento alugado, “simpático mas com muito menos de metade do espaço”, guardaram a mobília num guarda-móveis (uma espécie de armazém) e passam os fins-de-semana a fazer carregamentos, à procura de objectos dentro de caixas. São muitas recordações de que não se querem desfazer, muitas coisas miúdas para arrumar, quando nem sequer sabem por quanto mais tempo terão dinheiro para continuar a pagar o aluguer. Já só desejam voltar a ter uma vida normal, com as preocupações de uma família normal. “Esta casa é como uma filha, mas não é a minha filha. Eu tenho duas filhas que estão a sofrer com isto tudo [Marta e Inês já não querem falar sobre o tema e só a muito custo aceitaram ser fotografadas]. A única solução que vejo, por muito que me doa, é darem-me o valor justo para eu poder seguir com a minha vida. Se me tivessem contado que uma história como esta aconteceu em Bruxelas, no Bairro Europeu, no século XXI, nem eu própria acreditaria.”

Teresa vive num dilema. Por um lado, a última coisa que deseja é desfazer-se da casa, por outro, não quer que a sua família continue a passar por este sofrimento. “Agora já não me admiram as histórias de casais que se separam, famílias destruídas por causa de casos como este. O que eles querem é levar as pessoas à exaustão, para que depois se desfaçam dos bens quase dados. Mas connosco aconteceu exactamente o contrário, estamos ainda mais unidos”, diz Manuel.

Relações de vizinhança

Os problemas do número 62 alastraram-se aos restantes edifícios da correnteza, mas a administração da Lixon diz não ter conhecimento de nada. “Fizemos obras em 2008 e temos as paredes todas abertas, a casa de trás está a despegar-se da do vizinho e os passeios estão todos aos altos e baixos. Mas eu não tenho forças, nem tempo, nem dinheiro, para pôr o caso em tribunal. A minha seguradora está em contacto com a da Lixon, mas ainda não me foi apresentada nenhuma solução”, conta a vizinha do número 64, Miriam Vu, também funcionária da Comissão Europeia. “Não sei quem é essa senhora, nunca falei com ela”, reage Virginie Dufrasne.

Teresa confessa já não ter esperança de que a sua casa volte a ser o que era, mas os gestos atraiçoam-na. Continua a alertar as filhas para esfregarem os sapatos no tapete “por causa do chão de madeira”, tacteia com doçura os vitrais e as molduras da lareira que limpava sempre com sabão de Marselha para não perderem o brilho, certifica-se, antes de sair, que o aquecimento fica ligado para que a humidade não se infiltre ainda mais. Entre aquelas paredes, viveu momentos muito felizes mas também muitas limitações: “Cada vez que me lembro que proibia as miúdas de correrem, jogarem à bola, comerem no quarto, para não estragarem nada, ainda fico mais revoltada. Tanto cuidado para quê? Agora está tudo destruído...”

São já poucos os vestígios de que a família Cerviño ali viveu, restam os três peixes no aquário, algumas fotografias de Marta e Inês penduradas na parede, um caixote com livros da Anita e um Happy Birthday [Feliz Aniversário] de cartão pendurado no tecto da garagem onde deram tantas festas. O jardim, em tempos florido, está seco. Teresa garante que não vai ceder, “se isto é o sistema, então mude-se o sistema”, mas sente-se cansada e as filhas temem-lhe a fraqueza: “Tu tens a mania que vais mudar o mundo, mas tenho medo de que desta vez não consigas, mãe”, confessou-lhe Inês numa noite destas, enquanto a abraçava.

Esta reportagem foi publicada na Revista 2, edição 8 Dezembro 2013