O estado de graça da nova África do Sul de Mandela desapareceu antes dele
A transição chegou ao fim na África do Sul, mas incompleta. As desigualdades sociais persistem e a questão da raça continua presente.
É como um ambiente de fim de festa, de estado de graça que se desvaneceu. A consternação e o luto, pela morte do ícone da luta de libertação, ampliam esse sentimento de que o momento é grave num país que podia ter correspondido melhor ao seu legado. O estado de graça da nova África do Sul, criada por Mandela, já tinha desaparecido antes dele.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
É como um ambiente de fim de festa, de estado de graça que se desvaneceu. A consternação e o luto, pela morte do ícone da luta de libertação, ampliam esse sentimento de que o momento é grave num país que podia ter correspondido melhor ao seu legado. O estado de graça da nova África do Sul, criada por Mandela, já tinha desaparecido antes dele.
“O partido de Mandela tinha todo o capital da libertação” e podia ter beneficiado mais dele, diz em entrevista Nic Dawes, director do jornal Mail & Guardian. Podia tê-lo aproveitado melhor. “Agora, esse capital está a esgotar-se.”
Celebração é palavra que não se ouve frequentemente. Só talvez na cultura – a pujante criação contemporânea vive como se ainda festejasse o fim do apartheid.
Mas os pilares – instituições fortes, uma imprensa livre, uma justiça independente e uma economia robusta – que fazem da África do Sul um país central na África Austral e no continente não estão garantidos, alerta Nic Dawes. “A África do Sul enfrenta riscos bem mais graves do que aqueles que Mandela poderia imaginar. Riscos que podem pôr em causa a Constituição, base da nossa democracia”, completa, exemplificando com leis que o partido no poder, o ANC liderado por Jacob Zuma, tem feito passar ou pretende fazer passar e limitam as liberdades dos media e dão mais poder à polícia e aos serviços de segurança e serviços secretos. O risco maior, diz ao PÚBLICO, é o de “uma erosão dos valores constitucionais [sul-africanos]” – contra aquela que seria a vontade de Mandela.
Por outro lado, a África do Sul dispõe de bons recursos e talvez encontre o rumo certo. Muito vai depender da forma como as desigualdades forem resolvidas, considera. Muito vai depender, escreve numa crónica no Mail & Guardian (do final de Junho) intitulada “Mandela, a longa despedida”, da forma como o país souber homenagear Mandela – não com uma estátua, mas com “um potencial de vida”, tornando vivos os seus valores e a ideia da “construção de uma democracia onde a realização da humanidade individual e colectiva é possível”.
A miragem da igualdade
Vinte anos é muito tempo, mas também pouco. Pouco tempo para que a questão racial deixe de estar tão presente na mente das pessoas e na linha que separa os ricos e os pobres. Uma classe média negra emergiu com o fim das discriminações e as novas oportunidades do programa do Black Economic Empowerment para trazer os negros, indianos, mestiços e outros grupos da população não branca para os centros de decisão. Os brancos deixaram de ser protegidos como eram, pelo regime do apartheid. Porém, pobreza e desemprego, dificuldade de acesso à saúde e à educação, não deixaram ainda de atingir sobretudo os negros.
“A questão racial vai continuar presente durante muitos mais anos”, acrescenta Rapule Tabana, jornalista e cronista do Mail & Guardian. Tabana é negro e diz que esse conceito de “igualdade de oportunidades para todos” não é uma miragem, mas quase. “Vai demorar muito tempo” a alcançar um “equilíbrio” na sociedade. Por enquanto, a África do Sul ainda é um país de acentuadas desigualdades definidas pelas diferenças raciais.
Nelson Mandela dizia: “Tudo é impossível até ser feito.” Mas seriam 20 anos suficientes para concretizar plenamente um ideal? De inclusão e justiça social, como acreditava Mandela? Não foi o que aconteceu. E nas últimas duas décadas cresceu o sentimento, hoje tão presente, de que “o país não proporciona o que devia a toda a gente”, continua Nic Dawes, que fala em “exaustão” das pessoas, contestação e mesmo “raiva”.
Algumas pessoas foram completamente esquecidas, enquanto uma elite beneficia da corrupção, sustenta. O problema, acrescenta, é que a transição chegou ao fim, mas incompleta. O debate gira muito à volta da reconstrução e da reconciliação. Mas outras questões – como a das desigualdades – são as mais prementes, defende Dawes.
Muito foi feito – cita o exemplo dos milhões de casas construídas –, mas muito fica por fazer para dar sentido a valores que todos viram como garantidos quando a vitória de Mandela foi celebrada em Abril de 1994.
Desde então, outras três eleições gerais seguiram o curso esperado, com vitórias do ANC acima dos 60%, com Thabo Mbeki na liderança do partido e depois Jacob Zuma. Mas o ANC – do partido Mandela dizia: “Sem ele, eu não seria nada” – também se desviou dos seus princípios, alimentando hoje um nacionalismo que Mandela teria rejeitado, escreve Nic Dawes na crónica.
Um “antes” e um “depois” de Marikana
Nesse desvio, uma sombra pesa sobre a África do Sul: Marikana. É o nome da mina em Rustenburg onde 34 mineiros foram mortos pela polícia e 78 ficaram feridos em Agosto de 2012 (dias depois de se contabilizarem dez vítimas em confrontos entre mineiros). Numa reportagem que deu a volta ao mundo, o fotojornalista da África do Sul Greg Marinovich expõe o que diz serem as provas de que a polícia executou os mineiros e não os matou com disparos em situação de confrontos. Um inquérito está em curso. Seja como for, a gravidade dos acontecimentos faz com que haja um “antes” e um “depois Marikana”.
“A imagem da polícia a disparar sobre negros é uma imagem muito dolorosa herdada do apartheid na África do Sul”, diz ao PÚBLICO Kevin Bloom, jornalista do Empire Magazine e Maverick Magazine, além de autor do livro Ways of Staying (2010).
Em Marikana, nota o jornalista, a polícia, agora também constituída por negros, “disparou contra o seu próprio povo”. E acrescenta: “Marikana veio recordar como era o país há 25 anos. Foi um acontecimento muito importante na história recente da África do Sul.”
Um acontecimento recente que ensombra a história dos últimos 20 anos, como também os elevados números do desemprego jovem (70%), de doentes de sida (embora as mortes tenham diminuído significativamente) e de criminalidade no país.
Mandela dizia que “a liberdade não teria sentido sem segurança nas casas e nas ruas”. Num inquérito feito pela BBC a sul-africanos sobre o seu país uma década depois das eleições de 1994, David Romano dizia que a criminalidade era a sua maior preocupação. “Fiquei feliz quando votei em 1994, mas hoje estou triste.” Também nascido em 1964, Robert Zongo mostrava-se convencido de que não fazia parte da geração que “verdadeiramente beneficiaria das novas liberdades” E acrescentava: “Estamos a preparar o terreno para os nossos filhos e as gerações futuras.”
Dez anos depois destes testemunhos, os “born free” (“nascidos livres”), nascidos já depois do fim do apartheid, crescem sem perspectivas de futuro. As coisas pioraram sobretudo nos chamados "anos Zuma", desde que este foi eleito em 2009, considera Kevin Bloom. O desemprego atinge particularmente os jovens e estes podem exprimir, através do voto, o seu descontentamento.
Para já, no entanto, Kevin Bloom não vislumbra um cenário de alternância política. “Estamos ainda a dez ou 15 anos de ver o tradicional apoiante do ANC, o trabalhador negro, encontrar uma alternativa credível a esse partido”, diz. A isso Nic Dawes acrescenta: “Na África do Sul, o voto é uma expressão de quem a pessoa é e de onde vem.” Tem sido esse o garante do poder do ANC num país onde a maioria da população é negra e resistiu ao apartheid. Mas também isso começa lentamente a mudar.
Em 2004, o ANC conquistou quase 70% dos votos. Em 2009, já com Zuma na liderança, desceu para 65%. E 2014 será o ano da mais dura campanha para o ANC desde 1994. A contestação ganhou voz, potenciada pelo descontentamento social e pelos acontecimentos de Marikana. Algumas alternativas ao ANC começam a desenhar-se.
Duas mulheres desafiam Zuma
Há duas mulheres a desafiar Zuma. A primeira: Mamphela Ramphele. A histórica activista do ANC é hoje uma voz de peso – independente e credível – contra a cultura da impunidade e do abuso de poder que cresce no movimento antes liderado por Nelson Mandela. Académica, empresária e ex-companheira do activista anti-apartheid assassinado na cadeia em 1977 Steve Biko, Mamphela Ramphele lançou um movimento político para disputar o poder ao ANC nas eleições do próximo ano e salvar “a grandeza da nação” em risco pelo “fracasso colossal da governação”. Tem o apoio do arcebispo Desmond Tutu, Nobel da Paz.
A segunda: Lindiwe Mazibuko, líder parlamentar do principal partido da oposição, a Aliança Democrática (DA, na sigla em inglês). Em 2009, o partido venceu as eleições no Cabo Ocidental, conquistando o poder ao ANC nessa província onde agora governa. É liderado por Helen Zille, mas Lindiwe Mazibuko será quem melhor personifica essa aspiração de alternativa de poder. Como deputada negra, apela mais facilmente a um eleitorado negro, embora mantendo esse papel de contrapoder à hegemonia do ANC. Como principal voz da oposição no Parlamento, denuncia a crescente corrupção e os casos que envolvem o próprio Presidente e trouxe para o debate os acontecimentos na mina de Marikana que põem em causa o legado de Mandela e os próprios valores do novo país construído sobre as ruínas do apartheid.
Gravidade e esperança
“Não há como escapar à gravidade da situação da África do Sul”, escreveu o analista Thomas Cargill num artigo intitulado South Africa: Facing Fundamental Changes ainda sobre Marikana. “As mortes de Marikana e os acontecimentos que se seguiram [aumento da contestação social] vêm recordar que a transição chegou ao fim.”
Ao mesmo tempo, este ex-investigador da Chatham House (Royal Institute of International Affairs de Londres) lembra que “o país percorreu um longo caminho desde 1994”, defende que – apesar de todos os problemas – “a experiência passada mostra que a África do Sul pode continuar a ser um modelo para muitos outros” e adverte que “as análises alarmistas dos recentes acontecimentos” que suscitaram comparações com o Zimbabwe “podem fazer mais mal do que bem e não se justificam”, sob pena de se encorajar “a divisão e o pânico”.
Nos últimos meses de vida de Mandela, e com o aproximar da hora da despedida, falou-se no receio de que o seu desaparecimento potencie nas ruas a expressão de uma tensão social latente. Mas as muitas mensagens deixadas, com flores e fotografias, à porta da casa de Mandela em Joanesburgo, durante a sua permanência no hospital, são mensagens de paz e promessas de manter vivo o seu sonho de um país – se não plenamente reconciliado – no caminho da reconciliação.