Elogio da moderação
Só pela via do jogo democrático se poderão promover as mudanças conducentes a uma alteração do actual estado de coisas.
Magris, oriundo de Trieste, escritor, ensaísta e professor de Literatura, habitante de duas línguas e culturas – a italiana e a germânica –, é hoje um dos mais lúcidos pensadores da vida europeia. Como poucos tem colocado o seu talento e a sua energia ao serviço de um combate a um dos males do nosso tempo e das nossas democracias: a confusão instalada entre direito, moral, política e puro sentimentalismo. Desta mistura, infelizmente tão banalizada no ambiente cultural em que nos movemos, emergem discursos e posições potencialmente atentatórios dessa forma precária de civilização que poderemos designar por democrático-liberal. Um dos perigos que podem surgir é o do avanço das opções extremistas em detrimento de atitudes moderadas e propensas ao diálogo e a alguma forma de consenso. A aversão que Magris revela pelos extremismos não confisca, nem tão-pouco diminui, a sua consciência crítica ou a sua capacidade de indignação. Pelo contrário, nessa recusa da identificação entre convicção e crença dogmática, entre disponibilidade para a contestação com a declinação mecânica de receitas doutrinárias é que reside a força do seu verbo, da sua inteligência e das posições que frontalmente nunca deixou de tomar.
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Magris, oriundo de Trieste, escritor, ensaísta e professor de Literatura, habitante de duas línguas e culturas – a italiana e a germânica –, é hoje um dos mais lúcidos pensadores da vida europeia. Como poucos tem colocado o seu talento e a sua energia ao serviço de um combate a um dos males do nosso tempo e das nossas democracias: a confusão instalada entre direito, moral, política e puro sentimentalismo. Desta mistura, infelizmente tão banalizada no ambiente cultural em que nos movemos, emergem discursos e posições potencialmente atentatórios dessa forma precária de civilização que poderemos designar por democrático-liberal. Um dos perigos que podem surgir é o do avanço das opções extremistas em detrimento de atitudes moderadas e propensas ao diálogo e a alguma forma de consenso. A aversão que Magris revela pelos extremismos não confisca, nem tão-pouco diminui, a sua consciência crítica ou a sua capacidade de indignação. Pelo contrário, nessa recusa da identificação entre convicção e crença dogmática, entre disponibilidade para a contestação com a declinação mecânica de receitas doutrinárias é que reside a força do seu verbo, da sua inteligência e das posições que frontalmente nunca deixou de tomar.
As palavras acima reproduzidas, dedicadas a um dos maiores pensadores contemporâneos da democracia, do Estado de direito e do Estado-providência, revestem-se de uma indiscutível actualidade histórica. Em épocas de crise, como aquela que atravessamos, há alguma tendência para questionar e contestar aquilo que ele tão bem designou como constituindo os “valores frios” da democracia. É precisamente por aí que pode começar a ascensão das posições extremistas, quer à direita, quer à esquerda. À direita, em nome de um ideal organicista e naturalista de uma comunidade assente em formas de vinculação conservadoras; à esquerda, pela invocação de uma utopia colectivista inibidora de qualquer perspectiva de verdadeira autonomia individual. Estamos ainda muito longe de um cenário dessa natureza mas não devemos desvalorizar a importância de alguns sinais que se vislumbram no horizonte.
Temos vindo a observar o regresso do discurso panfletário com todas as suas funestas consequências: o empobrecimento do pensamento, o abastardamento da linguagem, a exaltação do simplismo na representação da realidade. Pouco a pouco o debate resvala para uma contraposição de enunciações quase vazias e o diálogo dá lugar a um confronto polarizado em torno de posições imbuídas de um carácter pretensamente mais de natureza moral do que política. Quando assim sucede, assiste-se a uma dissolução do esforço argumentativo substituído por uma retórica de exaltação dogmática.
No decorrer do século XX a esquerda democrática conseguiu operar um verdadeiro milagre: a conciliação de um património constitucional republicano e liberal com a concretização das aspirações democráticas das massas populares emergentes e a construção de um Estado-providência promotor de igualdade e de solidariedade. Não o fez sozinha, como o sabemos, e para o fazer teve de derrotar as correntes extremistas existentes no seu próprio seio. O resultado deste extraordinário artifício histórico é por de mais conhecido: adesão às regras da democracia representativa, valorização dos objectivos de compromisso social, aprofundamento dos direitos individuais. Uma esquerda forte, apoiada por sujeitos colectivos e por movimentos sociais agregadores contribuiu decisivamente para a conciliação de uma certa forma de capitalismo com múltiplas reivindicações democráticas. A crise económica e social que afecta vários países europeus está a pôr em causa esta conciliação; isso é visível também no caso português.
O que a esquerda não deve é cair na armadilha que lhe é estendida pela direita mais radical e que consiste num incitamento à sua deserção do plano da realidade para o universo da denúncia quixotesca e dos projectos inexequíveis. A acontecer, isso teria repercussões trágicas, já que acabaria por gerar fortes frustrações colectivas.
Por isso mesmo é que é importante enaltecer, mesmo contra aquilo que parece ser uma corrente momentaneamente dominante, os méritos da moderação política e do respeito pelas regras institucionais. Só pela via do jogo democrático se poderão promover as mudanças conducentes a uma alteração do actual estado de coisas. Não teremos razões para cultivar um optimismo excessivo, mas isso não pode conduzir a uma atitude de desespero incompatível com a participação na vida cívica de uma sociedade aberta e pluralista. Compete em grande parte à esquerda moderada evitar que a presente crise do capitalismo ocidental se transforme num colapso do modelo democrático-liberal. Para isso tem que lutar contra a força dissolvente que o neoliberalismo constitui, mas também tem de revelar uma adesão convicta às regras formais do regime democrático. Se bem sabemos como pode ser desumano o capitalismo sem regras, também temos a obrigação de não esquecer como se revelaram aviltantes da dignidade humana todas as formas de organização política que em nome de uma suposta democracia material começaram por anular os princípios mais básicos no plano formal. É por isso mesmo que há pequenos passos, aparentemente inócuos, que nunca devem ser dados.
Deputado do PS