Valério Romão um pequeno terramoto
Primeiro: “atiram-se” as personagens para um espaço pequeno, fechado, quase claustrofóbico (por exemplo, a sala de espera de um hospital). Confinado àquele espaço sufocante, o leitor fica agarrado à história, sem nunca a largar, até poder respirar, por fim, de alívio.
Isto não é uma fórmula, uma receita. “Talvez só agora esteja a ter este raciocínio, como resultado desta conversa”, explica Valério Romão. “Faz sentido, não é consciente: colocar as personagens em situações-limite é interessante porque podemos perceber o que é mais instintivo nelas.”
Segundo: as personagens “atiradas” lá para dentro vão reagir, jogar entre si, lidar com o imprevisto. O escritor também não sabe o que vai acontecer, é tão cego como elas. “A acção vai-se construindo. Entro naquele espaço e não faço a mínima ideia do que está lá dentro. É um momento interessante para mim também”, continua.
Se há um relógio de parede, uma pintura, uma fissura, qual a cor dos cabelos ou como estavam vestidos — são aspectos da narrativa que não lhe interessam. “Interessa-me sobretudo o que eles estavam a pensar, a fazer e sentir.” Por isso, a acção não é rocambolesca, cheia de peripécias. Apesar de a escrita ser “dramática, teatral ou cinematográfica” — um dos seus contos, À medida que fomos recuperando a mãe, publicado no primeiro número da Granta portuguesa (e acabado de sair na secção New Writing da Granta inglesa online) vai ser adaptado para uma curta-metragem pelo actor e realizador Gonçalo Waddington. “É uma acção que se constrói de dentro para fora. As personagens agem e reagem no limite das forças e das motivações. É essa pressão que os leva a fazer coisas. Como placas tectónicas que chocam: levam muito tempo a recolher toda aquela energia e quando finalmente se juntam, dá-se um terramoto.”
Dentro do abismo
Foram como pequenos terramotos, os romances Autismo e O da Joana, publicados pela recém-criada editora Abysmo, de João Paulo Cotrim — a estreia de Valério Romão, 39 anos, no romance, foi também a estreia do seu editor na publicação de ficção. “Quando acabei de escrever Autismo, enviei-o ao [escritor e crítico] António Cabrita, pessoa com quem sempre trabalhei, que sempre me incentivou e me levou a sério. Ele é amigo do João Paulo Cotrim e disse-me: ‘Um amigo está a lançar uma editora nova e isto podia ser um bom começo para ambos.’”
Atiraram-se à trilogia Paternidades Falhadas, de que Autismo é o primeiro volume, e O da Joana, segundo. Os dois romances estavam escritos e saíram com um ano de diferença. O terceiro virá: “Ainda está na minha cabeça. Já tem um título e as personagens definidas”, explica. Histórias que lhe foram contando e que foi recolhendo. Chama-se Alzheimer.
Há uma continuidade temática e atmosférica, um paralelo entre Autismo e O da Joana. As personagens sentem-se próximas. Podiam estar no mesmo hospital, no mesmo dia, encontrar-se no corredor ou na tal sala de espera, filhas do desespero. “O hospital é um espaço onde acontecem uma série de coisas que muitos de nós não gostaríamos de ver à hora das refeições”, explica. Não há nenhum desejo mórbido de habitar os dramas de um hospital, mas em mostrar o contraste entre os corredores kafkianos, o espaço do hospital como lugar de ninguém, asséptico mas ao mesmo tempo visceral, sujo, demasiado humano.
Estas “paternidades falhadas” têm a ver a “necessidade de aclarar pontos com pouca luz, desocultar, desvelar, pôr à luz” estes assuntos. No caso de Autismo, uma criança autista e a história da sua família. Em O da Joana, uma gravidez, um nascimento precoce, um nado-morto.
Valério Romão não pretende revelar nada de novo: “Isto é quotidiano, faz parte da nossa experiência. São coisas que acontecem, mas são aspectos da vida com os quais as pessoas se dão mal. Temos uma série de constrangimentos relativamente a assuntos de que não queremos falar ou sobre os quais não queremos ouvir.”
Autismo surgiu como resultado de um aspecto autobiográfico, mas também “da vontade de escrever um livro que não fosse lamechas ou de auto-ajuda, ou que não fosse a clássica literatura sobre autismo”, explica. Havia uma história para contar: “Tinha a sensação de que o autismo era um tema bastante maltratado, havia muitas perspectivas mas faltava uma, essencial, que é o lado da vida de qualquer pai em que há muita dor.” Normalmente, chegam-nos as histórias de sucesso, “são essas que vão parar a livros, filmes, mas as outras, em que o sucesso não é uma componente essencial, são abafadas e vividas em sofrimento”. O grande medo de Valério Romão era ser lamechas, auto-referencial ou falar ao coração do leitor: “Não queria que houvesse ganchos emocionais. Queria uma coisa crua, também, e por isso, visceral. E que valesse por si, independentemente de ter sido uma experiência minha, ou não. É uma história que merece ser contada e escrita.”
Em O da Joana, continuamos na assunção de “uma paternidade ou uma maternidade que não é muito comum”, continuamos a falar de “crianças desejadas ou formas desejadas de as ter”. Mas aqui há uma distensão do tempo presente que prolonga o desespero da personagem até ao limite. Valério Romão recorre a Heidegger para se explicar: “Quando começamos a olhar para o relógio, duas coisas estão a acontecer: tédio ou desespero. Em qualquer dos casos, o tempo distende-se. Quando se decreta o desespero torna-se fácil, no sentido narrativo, que o tempo se distenda. Se imprimirmos esse desespero à personagem, começam-se a ver coisas a acontecer dentro desse desespero levado ao limite. O importante é que o desespero da personagem passe para o leitor como uma ansiedade de ficar agarrado e não conseguir parar de ler.”
Em Autismo, o autor tinha a “coluna vertebral da história dentro das urgências e uma série de costelas que iam entrando para explicar o passado” daquela criança e daquela família. Havia um código e uma porta e, assim, uma situação de tensão. “As costelas serviam para obtermos perspectivas diferentes e respirarmos. Criava-se esse mecanismo de fole: entrar naquela câmara de compressão e sair dela, entrar e sair.” Em O da Joana, do princípio ao fim, não saímos dessa câmara de compressão. “Não tinha mecanismos, estratégias de fuga. Não podia fugir e não podia arriscar que o leitor pousasse o livro.” Havia que manter um fio que o agarrasse e o fizesse querer saber o que se ia passar. O desespero de Joana vai criando uma série de acontecimentos que a revelam e temos, assim, acesso incondicional à cabeça e ao coração daquela mulher. “É uma mulher numa situação catastrófica, perante aquilo que ela mais gostava de ter (um filho) e isso falhou. É a derrocada. Temos acesso a uma situação de pré-ruína. Se este livro tivesse um epílogo, podia ser a fotografia de uma ruína.”
Filho da filosofia
Mas antes disto houve Facas. Apesar de escrito em 2001, este conjunto de contos foi publicado recentemente pela editora Companhia das Ilhas. Estes contos eram “algo que tinha pronto e por que ainda sentia afecto — normalmente isso acontece-me: se deixarmos passar um ano ou dois, olhamos para trás e achamos que já não vale a pena. Já passaram 12 anos e achei que ainda valia”, diz, revelando ter rejeitado um romance que escreveu há vários anos.
Naquela fase, reconhece, talvez a sua escrita tivesse ecos de Lobo Antunes. O da Joana cita “descaradamente” Saramago, de Todos os Nomes. Autismo é kafkiano, sem dúvida. Mas as suas referências vêm sobretudo da filosofia. Apesar de os seus romances não serem necessariamente eruditos — é quase sempre “um saber incorporado, diluído e purgado, que volta com uma subjectividade que é minha”, explica este informático “das nove às tantas” que estudou filosofia.
“Sempre quis escrever, desde os 13, 14 anos. Quando escolhi um curso optei por um que me ia enriquecer mais como escritor, do que literatura. A filosofia tinha a ver com a vida”, explica. E se “eu queria escrever sobre a vida, o melhor era aprender sobre o seu conteúdo”.
Agora, confessa, anda a ler mais literatura. “Escrever obriga-te a estar a par do que está a ser escrito. Porque escrever é também uma forma de confronto, silencioso e solitário. O teu oponente não está ali no palco; está, também ele, noutro ringue, silencioso e solitário. Escrever obriga-te a saber o que está a ser feito. É óbvio que há ambição nisto e há também uma competição, um diálogo competitivo”, explica.
Mas com quem é que se está competir? “Com os melhores”, sorri. “E também comigo próprio. Porque quando escrevemos um livro queremos sempre superar o anterior, queremos que o próximo seja ainda melhor.”
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Primeiro: “atiram-se” as personagens para um espaço pequeno, fechado, quase claustrofóbico (por exemplo, a sala de espera de um hospital). Confinado àquele espaço sufocante, o leitor fica agarrado à história, sem nunca a largar, até poder respirar, por fim, de alívio.
Isto não é uma fórmula, uma receita. “Talvez só agora esteja a ter este raciocínio, como resultado desta conversa”, explica Valério Romão. “Faz sentido, não é consciente: colocar as personagens em situações-limite é interessante porque podemos perceber o que é mais instintivo nelas.”
Segundo: as personagens “atiradas” lá para dentro vão reagir, jogar entre si, lidar com o imprevisto. O escritor também não sabe o que vai acontecer, é tão cego como elas. “A acção vai-se construindo. Entro naquele espaço e não faço a mínima ideia do que está lá dentro. É um momento interessante para mim também”, continua.
Se há um relógio de parede, uma pintura, uma fissura, qual a cor dos cabelos ou como estavam vestidos — são aspectos da narrativa que não lhe interessam. “Interessa-me sobretudo o que eles estavam a pensar, a fazer e sentir.” Por isso, a acção não é rocambolesca, cheia de peripécias. Apesar de a escrita ser “dramática, teatral ou cinematográfica” — um dos seus contos, À medida que fomos recuperando a mãe, publicado no primeiro número da Granta portuguesa (e acabado de sair na secção New Writing da Granta inglesa online) vai ser adaptado para uma curta-metragem pelo actor e realizador Gonçalo Waddington. “É uma acção que se constrói de dentro para fora. As personagens agem e reagem no limite das forças e das motivações. É essa pressão que os leva a fazer coisas. Como placas tectónicas que chocam: levam muito tempo a recolher toda aquela energia e quando finalmente se juntam, dá-se um terramoto.”
Dentro do abismo
Foram como pequenos terramotos, os romances Autismo e O da Joana, publicados pela recém-criada editora Abysmo, de João Paulo Cotrim — a estreia de Valério Romão, 39 anos, no romance, foi também a estreia do seu editor na publicação de ficção. “Quando acabei de escrever Autismo, enviei-o ao [escritor e crítico] António Cabrita, pessoa com quem sempre trabalhei, que sempre me incentivou e me levou a sério. Ele é amigo do João Paulo Cotrim e disse-me: ‘Um amigo está a lançar uma editora nova e isto podia ser um bom começo para ambos.’”
Atiraram-se à trilogia Paternidades Falhadas, de que Autismo é o primeiro volume, e O da Joana, segundo. Os dois romances estavam escritos e saíram com um ano de diferença. O terceiro virá: “Ainda está na minha cabeça. Já tem um título e as personagens definidas”, explica. Histórias que lhe foram contando e que foi recolhendo. Chama-se Alzheimer.
Há uma continuidade temática e atmosférica, um paralelo entre Autismo e O da Joana. As personagens sentem-se próximas. Podiam estar no mesmo hospital, no mesmo dia, encontrar-se no corredor ou na tal sala de espera, filhas do desespero. “O hospital é um espaço onde acontecem uma série de coisas que muitos de nós não gostaríamos de ver à hora das refeições”, explica. Não há nenhum desejo mórbido de habitar os dramas de um hospital, mas em mostrar o contraste entre os corredores kafkianos, o espaço do hospital como lugar de ninguém, asséptico mas ao mesmo tempo visceral, sujo, demasiado humano.
Estas “paternidades falhadas” têm a ver a “necessidade de aclarar pontos com pouca luz, desocultar, desvelar, pôr à luz” estes assuntos. No caso de Autismo, uma criança autista e a história da sua família. Em O da Joana, uma gravidez, um nascimento precoce, um nado-morto.
Valério Romão não pretende revelar nada de novo: “Isto é quotidiano, faz parte da nossa experiência. São coisas que acontecem, mas são aspectos da vida com os quais as pessoas se dão mal. Temos uma série de constrangimentos relativamente a assuntos de que não queremos falar ou sobre os quais não queremos ouvir.”
Autismo surgiu como resultado de um aspecto autobiográfico, mas também “da vontade de escrever um livro que não fosse lamechas ou de auto-ajuda, ou que não fosse a clássica literatura sobre autismo”, explica. Havia uma história para contar: “Tinha a sensação de que o autismo era um tema bastante maltratado, havia muitas perspectivas mas faltava uma, essencial, que é o lado da vida de qualquer pai em que há muita dor.” Normalmente, chegam-nos as histórias de sucesso, “são essas que vão parar a livros, filmes, mas as outras, em que o sucesso não é uma componente essencial, são abafadas e vividas em sofrimento”. O grande medo de Valério Romão era ser lamechas, auto-referencial ou falar ao coração do leitor: “Não queria que houvesse ganchos emocionais. Queria uma coisa crua, também, e por isso, visceral. E que valesse por si, independentemente de ter sido uma experiência minha, ou não. É uma história que merece ser contada e escrita.”
Em O da Joana, continuamos na assunção de “uma paternidade ou uma maternidade que não é muito comum”, continuamos a falar de “crianças desejadas ou formas desejadas de as ter”. Mas aqui há uma distensão do tempo presente que prolonga o desespero da personagem até ao limite. Valério Romão recorre a Heidegger para se explicar: “Quando começamos a olhar para o relógio, duas coisas estão a acontecer: tédio ou desespero. Em qualquer dos casos, o tempo distende-se. Quando se decreta o desespero torna-se fácil, no sentido narrativo, que o tempo se distenda. Se imprimirmos esse desespero à personagem, começam-se a ver coisas a acontecer dentro desse desespero levado ao limite. O importante é que o desespero da personagem passe para o leitor como uma ansiedade de ficar agarrado e não conseguir parar de ler.”
Em Autismo, o autor tinha a “coluna vertebral da história dentro das urgências e uma série de costelas que iam entrando para explicar o passado” daquela criança e daquela família. Havia um código e uma porta e, assim, uma situação de tensão. “As costelas serviam para obtermos perspectivas diferentes e respirarmos. Criava-se esse mecanismo de fole: entrar naquela câmara de compressão e sair dela, entrar e sair.” Em O da Joana, do princípio ao fim, não saímos dessa câmara de compressão. “Não tinha mecanismos, estratégias de fuga. Não podia fugir e não podia arriscar que o leitor pousasse o livro.” Havia que manter um fio que o agarrasse e o fizesse querer saber o que se ia passar. O desespero de Joana vai criando uma série de acontecimentos que a revelam e temos, assim, acesso incondicional à cabeça e ao coração daquela mulher. “É uma mulher numa situação catastrófica, perante aquilo que ela mais gostava de ter (um filho) e isso falhou. É a derrocada. Temos acesso a uma situação de pré-ruína. Se este livro tivesse um epílogo, podia ser a fotografia de uma ruína.”
Filho da filosofia
Mas antes disto houve Facas. Apesar de escrito em 2001, este conjunto de contos foi publicado recentemente pela editora Companhia das Ilhas. Estes contos eram “algo que tinha pronto e por que ainda sentia afecto — normalmente isso acontece-me: se deixarmos passar um ano ou dois, olhamos para trás e achamos que já não vale a pena. Já passaram 12 anos e achei que ainda valia”, diz, revelando ter rejeitado um romance que escreveu há vários anos.
Naquela fase, reconhece, talvez a sua escrita tivesse ecos de Lobo Antunes. O da Joana cita “descaradamente” Saramago, de Todos os Nomes. Autismo é kafkiano, sem dúvida. Mas as suas referências vêm sobretudo da filosofia. Apesar de os seus romances não serem necessariamente eruditos — é quase sempre “um saber incorporado, diluído e purgado, que volta com uma subjectividade que é minha”, explica este informático “das nove às tantas” que estudou filosofia.
“Sempre quis escrever, desde os 13, 14 anos. Quando escolhi um curso optei por um que me ia enriquecer mais como escritor, do que literatura. A filosofia tinha a ver com a vida”, explica. E se “eu queria escrever sobre a vida, o melhor era aprender sobre o seu conteúdo”.
Agora, confessa, anda a ler mais literatura. “Escrever obriga-te a estar a par do que está a ser escrito. Porque escrever é também uma forma de confronto, silencioso e solitário. O teu oponente não está ali no palco; está, também ele, noutro ringue, silencioso e solitário. Escrever obriga-te a saber o que está a ser feito. É óbvio que há ambição nisto e há também uma competição, um diálogo competitivo”, explica.
Mas com quem é que se está competir? “Com os melhores”, sorri. “E também comigo próprio. Porque quando escrevemos um livro queremos sempre superar o anterior, queremos que o próximo seja ainda melhor.”