O som da frente do Brasil

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Miguel Manso/PÚBLICO

Há ano e meio, o IndieLisboa revelava em Portugal uma das obras-sensação do cinema do mundo dos últimos anos: O Som ao Redor, primeira longa-metragem de ficção do crítico e jornalista brasileiro Kleber Mendonça Filho. Nomeado como candidato brasileiro aos Óscares 2013, premiado em Roterdão e Copenhaga, exibido em Locarno e na Viennale, mostrado um pouco por todo o mundo, O Som ao Redor foi escolhido como um dos dez filmes de 2012 por A. O. Scott, do jornal New York Times, e Walter Salles, realizador de Central do Brasil, considerou-o uma obra-prima e o melhor filme brasileiro da última década.

Sem complacências nem lugares-comuns, o filme olha para o Brasil para lá do eixo Rio-São Paulo, centrando-se numa rua da cidade pernambucana do Recife (que, por acaso, é a rua onde o próprio realizador mora) e nas histórias que aí se cruzam ao longo de vários meses.

Uma das propostas mais intrigantes de uma cinematografia independente que tem atravessado infrequentemente o Atlântico, O Som ao Redor chega finalmente esta semana às salas portuguesas. Em Abril de 2012, Kleber Mendonça Filho esteve em Lisboa a acompanhar a passagem do seu filme pela competição do IndieLisboa, e sentou-se a conversar sobre uma obra que então disse ser fortemente influenciada por John Carpenter.



O Som ao Redor não remete muito para a ideia que temos do que é o cinema brasileiro...

A primeira vez que me disseram que não parecia um filme brasileiro, fiquei um bocadinho na dúvida. Pela imagem? Pela articulação do plano? Pela ausência de elementos que se tornaram um vício? Fico um pouco perdido... Então devolvo a pergunta: em que sentido não seria um filme brasileiro? Na estética, num certo corte cultural?

É um filme feito no Brasil e sobre o Brasil, mas que fala para todo o mundo sobre um Brasil que não conhecemos nem identificamos. Não é Central do Brasil, nem Cidade de Deus...

No meu caso, e no de muitos cineastas, quando se parte para fazer um filme é um pouco como fazer parte de um debate: você começa a achar que não gosta da direcção que [esse debate] está a tomar. Então põe a mão no ar e apresenta outra coisa que não estava a ser discutida. Como observador do cinema brasileiro, acho que temos filmes interessantes; mas como cinéfilo, alguém que é brasileiro e que vê filmes brasileiros, queria ver um filme como este. Claro que se pode dizer que é um filme sobre a natureza humana, a política, o amor, o medo, o terror, mas é um filme sobre a forma como vejo o Brasil. Mas essa ideia de não parecer um filme brasileiro... Vivemos num mundo muito interessante, onde partilhamos o acesso a muitas coisas que não são portuguesas nem brasileiras mas que se tornam nossas. Sempre vimos filmes do mundo inteiro. Para mim é muito natural, quando escrevo um argumento, que cheguem nomes do passado que se instalam ao nosso lado. Não os chamei, eles chegaram e sentaram-se ali. E não foi Glauber Rocha nem Nelson Pereira dos Santos; no meu caso é um director americano chamado John Carpenter, que adoro desde a adolescência e acho que é a grande influência deste filme. Agora, também não tenho como negar que toda a sequência de abertura vem de um grande filme brasileiro, talvez um dos dez melhores de sempre, Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho.

Aquilo que torna O Som ao Redor muito brasileiro é também algo que remete para o cinema inglês: a presença constante da questão social, da luta de classes à falta de melhor frase.

As pessoas ainda não tiveram a dimensão correcta do que aconteceu nos anos em que o Lula assumiu o poder. Ele já vinha tentando assumir o poder desde 1989, perdeu uma série de eleições, e o Brasil foi-se preparando aos poucos porque talvez em 1989 fosse uma mudança radical demais. Mas ao longo dos anos essa ideia do Lula subir ao poder foi ficando cada vez mais real e possível. E quando ele foi eleito, acho que houve uma mudança. Os outros presidentes ou eram militares ou eram formandos da Sorbonne, aquela elite branca que parece não entender que existe um Brasil enorme, e as classes mais baixas, que sempre foram destituídas de muita coisa, passaram a ver-se [a si próprias] com mais respeito. Foi uma das coisas que mudou muito e que também me fez querer fazer o filme. A forma como tentei retratar as diversas classes é de respeito por todos, mas guardando a verdade que por vezes é um pouco brusca e rude.

É um filme que parece abdicar da sua bagagem de crítico.

Nasceu de uma série de observações. Tipo: o cachorro não pára de ladrar, não aguento mais esse cachorro, queria matar esse cachorro, mas não vou matar porque sou boa pessoa e gosto de animais. É um drama interessante: é muito fácil pegar num Colt 45 e dar um tiro, mas acho mais interessante querer matar mas saber que não pode. Anos atrás estava numa padaria, vi duas irmãs numa briga horrível, e dois dias depois soube que eram irmãs. São pequenas coisas que, se tudo der certo, formam um panorama humano, dramático, que me interessa. E o Brasil é muito barulhento.

Daí o título, O Som ao Redor?

Sim. O som é prova de vida, mostra que há pessoas ali. Depende da cultura, claro; se você vai para o Cairo é um som, em Copenhaga é outro som.

A esse propósito, um dos aspectos importantes do filme é a filigrana do som, o trabalho de enquadramento, fotografia, montagem – há uma procura de envolver o espectador naquele universo.

Uma pretensão que eu tinha era fazer algo extremamente trivial, quase como um home movie, só que usando uma linguagem absolutamente clássica de cinema; écrã panorâmico, enquadramentos largos, fixos, talvez travellings, e evitar ao máximo o vício que se tornou muito comum da câmara à mão. Queria quase fazer um Douglas Sirk ou um Alfred Hitchcock; extremamente clássico, mas contrabalançando a trivialidade de muitas situações. Não vejo interesse em filmar momentos triviais de maneira trivial. Mas se filmar o trivial de maneira clássica, acrescenta poder, força. Uma cozinha é um lugar trivial, mas se a enquadrar ela vira uma cozinha de cinema. Não queria fazer um filme cem por cento realista, porque isso tornaria o filme desinteressante. O filme nunca cruza a linha do fantástico, mas medo, paranóia, temor são coisas que toda a gente sente.
 

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Há ano e meio, o IndieLisboa revelava em Portugal uma das obras-sensação do cinema do mundo dos últimos anos: O Som ao Redor, primeira longa-metragem de ficção do crítico e jornalista brasileiro Kleber Mendonça Filho. Nomeado como candidato brasileiro aos Óscares 2013, premiado em Roterdão e Copenhaga, exibido em Locarno e na Viennale, mostrado um pouco por todo o mundo, O Som ao Redor foi escolhido como um dos dez filmes de 2012 por A. O. Scott, do jornal New York Times, e Walter Salles, realizador de Central do Brasil, considerou-o uma obra-prima e o melhor filme brasileiro da última década.

Sem complacências nem lugares-comuns, o filme olha para o Brasil para lá do eixo Rio-São Paulo, centrando-se numa rua da cidade pernambucana do Recife (que, por acaso, é a rua onde o próprio realizador mora) e nas histórias que aí se cruzam ao longo de vários meses.

Uma das propostas mais intrigantes de uma cinematografia independente que tem atravessado infrequentemente o Atlântico, O Som ao Redor chega finalmente esta semana às salas portuguesas. Em Abril de 2012, Kleber Mendonça Filho esteve em Lisboa a acompanhar a passagem do seu filme pela competição do IndieLisboa, e sentou-se a conversar sobre uma obra que então disse ser fortemente influenciada por John Carpenter.



O Som ao Redor não remete muito para a ideia que temos do que é o cinema brasileiro...

A primeira vez que me disseram que não parecia um filme brasileiro, fiquei um bocadinho na dúvida. Pela imagem? Pela articulação do plano? Pela ausência de elementos que se tornaram um vício? Fico um pouco perdido... Então devolvo a pergunta: em que sentido não seria um filme brasileiro? Na estética, num certo corte cultural?

É um filme feito no Brasil e sobre o Brasil, mas que fala para todo o mundo sobre um Brasil que não conhecemos nem identificamos. Não é Central do Brasil, nem Cidade de Deus...

No meu caso, e no de muitos cineastas, quando se parte para fazer um filme é um pouco como fazer parte de um debate: você começa a achar que não gosta da direcção que [esse debate] está a tomar. Então põe a mão no ar e apresenta outra coisa que não estava a ser discutida. Como observador do cinema brasileiro, acho que temos filmes interessantes; mas como cinéfilo, alguém que é brasileiro e que vê filmes brasileiros, queria ver um filme como este. Claro que se pode dizer que é um filme sobre a natureza humana, a política, o amor, o medo, o terror, mas é um filme sobre a forma como vejo o Brasil. Mas essa ideia de não parecer um filme brasileiro... Vivemos num mundo muito interessante, onde partilhamos o acesso a muitas coisas que não são portuguesas nem brasileiras mas que se tornam nossas. Sempre vimos filmes do mundo inteiro. Para mim é muito natural, quando escrevo um argumento, que cheguem nomes do passado que se instalam ao nosso lado. Não os chamei, eles chegaram e sentaram-se ali. E não foi Glauber Rocha nem Nelson Pereira dos Santos; no meu caso é um director americano chamado John Carpenter, que adoro desde a adolescência e acho que é a grande influência deste filme. Agora, também não tenho como negar que toda a sequência de abertura vem de um grande filme brasileiro, talvez um dos dez melhores de sempre, Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho.

Aquilo que torna O Som ao Redor muito brasileiro é também algo que remete para o cinema inglês: a presença constante da questão social, da luta de classes à falta de melhor frase.

As pessoas ainda não tiveram a dimensão correcta do que aconteceu nos anos em que o Lula assumiu o poder. Ele já vinha tentando assumir o poder desde 1989, perdeu uma série de eleições, e o Brasil foi-se preparando aos poucos porque talvez em 1989 fosse uma mudança radical demais. Mas ao longo dos anos essa ideia do Lula subir ao poder foi ficando cada vez mais real e possível. E quando ele foi eleito, acho que houve uma mudança. Os outros presidentes ou eram militares ou eram formandos da Sorbonne, aquela elite branca que parece não entender que existe um Brasil enorme, e as classes mais baixas, que sempre foram destituídas de muita coisa, passaram a ver-se [a si próprias] com mais respeito. Foi uma das coisas que mudou muito e que também me fez querer fazer o filme. A forma como tentei retratar as diversas classes é de respeito por todos, mas guardando a verdade que por vezes é um pouco brusca e rude.

É um filme que parece abdicar da sua bagagem de crítico.

Nasceu de uma série de observações. Tipo: o cachorro não pára de ladrar, não aguento mais esse cachorro, queria matar esse cachorro, mas não vou matar porque sou boa pessoa e gosto de animais. É um drama interessante: é muito fácil pegar num Colt 45 e dar um tiro, mas acho mais interessante querer matar mas saber que não pode. Anos atrás estava numa padaria, vi duas irmãs numa briga horrível, e dois dias depois soube que eram irmãs. São pequenas coisas que, se tudo der certo, formam um panorama humano, dramático, que me interessa. E o Brasil é muito barulhento.

Daí o título, O Som ao Redor?

Sim. O som é prova de vida, mostra que há pessoas ali. Depende da cultura, claro; se você vai para o Cairo é um som, em Copenhaga é outro som.

A esse propósito, um dos aspectos importantes do filme é a filigrana do som, o trabalho de enquadramento, fotografia, montagem – há uma procura de envolver o espectador naquele universo.

Uma pretensão que eu tinha era fazer algo extremamente trivial, quase como um home movie, só que usando uma linguagem absolutamente clássica de cinema; écrã panorâmico, enquadramentos largos, fixos, talvez travellings, e evitar ao máximo o vício que se tornou muito comum da câmara à mão. Queria quase fazer um Douglas Sirk ou um Alfred Hitchcock; extremamente clássico, mas contrabalançando a trivialidade de muitas situações. Não vejo interesse em filmar momentos triviais de maneira trivial. Mas se filmar o trivial de maneira clássica, acrescenta poder, força. Uma cozinha é um lugar trivial, mas se a enquadrar ela vira uma cozinha de cinema. Não queria fazer um filme cem por cento realista, porque isso tornaria o filme desinteressante. O filme nunca cruza a linha do fantástico, mas medo, paranóia, temor são coisas que toda a gente sente.