Como comemorar Álvaro Cunhal?
A biografia de Álvaro Cunhal, da autoria de José Pacheco Pereira, começada a publicar em 1999, tem-se imposto como uma das obras mais relevantes da historiografia portuguesa contemporânea. A curiosidade de bibliófilo e arquivista do seu autor, a sua formação académica e a sua experiência política de décadas permitiram-lhe encontrar os instrumentos necessários para empreender uma obra de dois milhares de páginas, a que se somará em breve um quarto volume.
Por sua vez, Fernando Rosas tem sabido atrair para o seu magistério universitário investigadores interessados na história da Ditadura, incluindo nela a resistência desencadeada pelo Partido Comunista Português. Foi o que aconteceu com João Madeira, autor de um estudo pioneiro de história política intitulado Os Engenheiros de Almas: o Partido Comunista e os intelectuais (dos anos 30 a inícios de 60) (Estampa, 1996) e de uma tese de doutoramento sobre o PCP e a Guerra Fria que permanece inédita. O mesmo sucedeu com o coordenador desta obra colectiva sobre Cunhal, José Neves, autor de um outro importante estudo de história cultural intitulado Comunismo e Nacionalismo em Portugal. Política, cultura e história no século XX (Tinta da China, 2008).
Haverá um contraste marcante entre as duas perspectivas sobre Álvaro Cunhal? Ou seja, será possível opor a visão histórica de Pacheco Pereira à de Fernando Rosas e dos seus discípulos ou colaboradores mais próximos, a começar por José Neves?
De um lado, o biógrafo de Cunhal ostenta permanentemente o seu arquivo pessoal — situado na célebre Marmeleira —, como se se tratasse de um arsenal de instrumentos de prova, com a capacidade de, só por si, fazer reconhecer as suas interpretações. Claro que há, nas constantes evocações aos documentos de arquivo, o propósito de um contraste, com cheiro a denúncia, dos arquivos secretos do PCP. Só este desígnio justifica a transcrição ou simples reprodução de milhares de documentos que têm caracterizado o trabalho do autor da mais extensa biografia do dirigente comunista. Mas o mais importante é constatar que a intensidade com que Pacheco Pereira se refere ao arquivo, fonte de autoridade do biógrafo, não encontra paralelo no trabalho dos historiadores e cientistas sociais de profissão ligados a instituições universitárias, que participam do livro coordenado por José Neves.
No programa estabelecido pelo último e que serve de introdução ao livro em apreço, estudar Cunhal implica perceber o contexto de pertinência da sua vida, com as suas respectivas estruturas, relações de campo e culturas políticas ou organizativas. Aliás, não será por acaso que quem melhor cumpre este mesmo programa é Fernando Rosas, ao analisar com uma profundidade exemplar três momentos cruciais da vida de Cunhal à luz de um quadro de relações e estruturas mais alargado. Exercícios desta mesma natureza proporcionam a criação de uma distância que permite substituir a admiração do biógrafo em relação ao biografado por uma perspectiva mais equilibrada, objectiva e contida. Ora, nem todos os colaboradores deste livro conseguem criar a mesma distância, caindo por vezes no registo hagiográfico das virtudes e na confissão emotiva do carácter “impressionante” ou no encómio da “argúcia” de Cunhal (é o que acontece, desde logo, nos capítulos da autoria de Arsénio Nunes e de João Madeira).
Frente ao programa de estudo definido por Neves e por Rosas, que toma Álvaro Cunhal como seu objecto, será difícil reduzir a biografia de Pacheco Pereira a um único sentido. A vastidão da informação recolhida pode apontar para uma polifonia e, no seu interior, há inúmeros conflitos de interpretação. Mas o certo é que — por admiração ou por estratégia destinada a construir um “herói” oposto a Salazar — a biografia de Cunhal da autoria de Pacheco Pereira parece mais centrada numa pessoa singular, como se de um bloco individual de grandes dimensões se tratasse. Enquanto o programa de estudos proposto pelo livro de vários autores, coordenado por José Neves, atende mais ao meio, ao contexto e às estruturas.
Apesar do último contraste aqui ensaiado, nem por sombras se pense que incorro na leitura redutora de tomar a obra de Pacheco Pereira como um estudo exclusivamente centrado no indivíduo, por oposição ao programa de investigação do livro coordenado por Neves, atento ao meio e a uma escala de análise mais colectiva. Apesar de qualquer estudante iniciado numa perspectiva crítica de história e ciências sociais saber que a exigência das disciplinas que pratica tende a valorizar os aspectos sociais e de conjunto sobre os individuais e particulares, há em Pacheco Pereira preocupações de sentido crítico e reflexivo acerca do seu próprio trabalho como autor de uma biografia, que poucos historiadores estão em condições de conseguir elaborar e que, por isso mesmo, devem tomar como uma lição modelar.
Arriscaria até dizer que o melhor acerca de Álvaro Cunhal escrito por Pacheco Pereira aconteceu muito recentemente, em dois artigos do PÚBLICO (10 e 11 de Novembro, 2013). Talvez tivesse sido mesmo necessário ao biógrafo de Cunhal escrever milhares de páginas sobre o seu objecto para alcançar um tão elevado nível de controlo e vigilância crítica sobre o seu próprio trabalho. Mas o certo é que foi no confronto com perspectivas como as reunidas neste livro por José Neves que Pacheco Pereira terá sentido a necessidade de explicitar as suas preocupações de uma teoria histórica da prática biográfica (a qual também se opõe às vogas mais superficiais do biografismo, a paredes meias com o romance histórico, que tanto atrai os desesperados historiadores de ofício com vidas mansas organizadas pela academia, mas sempre de olho no mercado e no que está a dar).
Última observação de carácter comparativo, que toma em linha de conta as relações destes autores com o campo político, sem esquecer a questão do determinismo ideológico: será que um confronto entre estas duas visões sobre o legado de Cunhal representa uma oposição entre uma perspectiva mais liberal ou social-democrata e os autores do livro coordenado por José Neves, situados numa diversidade de lugares de uma esquerda radical bem longe de Pacheco Pereira? Existirá um contraste evidente ou, pelo contrário, haverá entre ambas as perspectivas mais pontos de contacto, por razões de afinidade académica ou de carácter analítico? Devo dizer que, bem feitas as contas e mesmo atendendo à desproporção das páginas e do trabalho empreendido por Pacheco Pereira, os pontos de contacto parecem maiores que os de divergência. É que, em ambos os casos, a preocupação de carácter analítico constitui-se em antídoto para qualquer tipo de comemorativismo acrítico em que alguns pretendem encerrar a figura de Álvaro Cunhal.
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A biografia de Álvaro Cunhal, da autoria de José Pacheco Pereira, começada a publicar em 1999, tem-se imposto como uma das obras mais relevantes da historiografia portuguesa contemporânea. A curiosidade de bibliófilo e arquivista do seu autor, a sua formação académica e a sua experiência política de décadas permitiram-lhe encontrar os instrumentos necessários para empreender uma obra de dois milhares de páginas, a que se somará em breve um quarto volume.
Por sua vez, Fernando Rosas tem sabido atrair para o seu magistério universitário investigadores interessados na história da Ditadura, incluindo nela a resistência desencadeada pelo Partido Comunista Português. Foi o que aconteceu com João Madeira, autor de um estudo pioneiro de história política intitulado Os Engenheiros de Almas: o Partido Comunista e os intelectuais (dos anos 30 a inícios de 60) (Estampa, 1996) e de uma tese de doutoramento sobre o PCP e a Guerra Fria que permanece inédita. O mesmo sucedeu com o coordenador desta obra colectiva sobre Cunhal, José Neves, autor de um outro importante estudo de história cultural intitulado Comunismo e Nacionalismo em Portugal. Política, cultura e história no século XX (Tinta da China, 2008).
Haverá um contraste marcante entre as duas perspectivas sobre Álvaro Cunhal? Ou seja, será possível opor a visão histórica de Pacheco Pereira à de Fernando Rosas e dos seus discípulos ou colaboradores mais próximos, a começar por José Neves?
De um lado, o biógrafo de Cunhal ostenta permanentemente o seu arquivo pessoal — situado na célebre Marmeleira —, como se se tratasse de um arsenal de instrumentos de prova, com a capacidade de, só por si, fazer reconhecer as suas interpretações. Claro que há, nas constantes evocações aos documentos de arquivo, o propósito de um contraste, com cheiro a denúncia, dos arquivos secretos do PCP. Só este desígnio justifica a transcrição ou simples reprodução de milhares de documentos que têm caracterizado o trabalho do autor da mais extensa biografia do dirigente comunista. Mas o mais importante é constatar que a intensidade com que Pacheco Pereira se refere ao arquivo, fonte de autoridade do biógrafo, não encontra paralelo no trabalho dos historiadores e cientistas sociais de profissão ligados a instituições universitárias, que participam do livro coordenado por José Neves.
No programa estabelecido pelo último e que serve de introdução ao livro em apreço, estudar Cunhal implica perceber o contexto de pertinência da sua vida, com as suas respectivas estruturas, relações de campo e culturas políticas ou organizativas. Aliás, não será por acaso que quem melhor cumpre este mesmo programa é Fernando Rosas, ao analisar com uma profundidade exemplar três momentos cruciais da vida de Cunhal à luz de um quadro de relações e estruturas mais alargado. Exercícios desta mesma natureza proporcionam a criação de uma distância que permite substituir a admiração do biógrafo em relação ao biografado por uma perspectiva mais equilibrada, objectiva e contida. Ora, nem todos os colaboradores deste livro conseguem criar a mesma distância, caindo por vezes no registo hagiográfico das virtudes e na confissão emotiva do carácter “impressionante” ou no encómio da “argúcia” de Cunhal (é o que acontece, desde logo, nos capítulos da autoria de Arsénio Nunes e de João Madeira).
Frente ao programa de estudo definido por Neves e por Rosas, que toma Álvaro Cunhal como seu objecto, será difícil reduzir a biografia de Pacheco Pereira a um único sentido. A vastidão da informação recolhida pode apontar para uma polifonia e, no seu interior, há inúmeros conflitos de interpretação. Mas o certo é que — por admiração ou por estratégia destinada a construir um “herói” oposto a Salazar — a biografia de Cunhal da autoria de Pacheco Pereira parece mais centrada numa pessoa singular, como se de um bloco individual de grandes dimensões se tratasse. Enquanto o programa de estudos proposto pelo livro de vários autores, coordenado por José Neves, atende mais ao meio, ao contexto e às estruturas.
Apesar do último contraste aqui ensaiado, nem por sombras se pense que incorro na leitura redutora de tomar a obra de Pacheco Pereira como um estudo exclusivamente centrado no indivíduo, por oposição ao programa de investigação do livro coordenado por Neves, atento ao meio e a uma escala de análise mais colectiva. Apesar de qualquer estudante iniciado numa perspectiva crítica de história e ciências sociais saber que a exigência das disciplinas que pratica tende a valorizar os aspectos sociais e de conjunto sobre os individuais e particulares, há em Pacheco Pereira preocupações de sentido crítico e reflexivo acerca do seu próprio trabalho como autor de uma biografia, que poucos historiadores estão em condições de conseguir elaborar e que, por isso mesmo, devem tomar como uma lição modelar.
Arriscaria até dizer que o melhor acerca de Álvaro Cunhal escrito por Pacheco Pereira aconteceu muito recentemente, em dois artigos do PÚBLICO (10 e 11 de Novembro, 2013). Talvez tivesse sido mesmo necessário ao biógrafo de Cunhal escrever milhares de páginas sobre o seu objecto para alcançar um tão elevado nível de controlo e vigilância crítica sobre o seu próprio trabalho. Mas o certo é que foi no confronto com perspectivas como as reunidas neste livro por José Neves que Pacheco Pereira terá sentido a necessidade de explicitar as suas preocupações de uma teoria histórica da prática biográfica (a qual também se opõe às vogas mais superficiais do biografismo, a paredes meias com o romance histórico, que tanto atrai os desesperados historiadores de ofício com vidas mansas organizadas pela academia, mas sempre de olho no mercado e no que está a dar).
Última observação de carácter comparativo, que toma em linha de conta as relações destes autores com o campo político, sem esquecer a questão do determinismo ideológico: será que um confronto entre estas duas visões sobre o legado de Cunhal representa uma oposição entre uma perspectiva mais liberal ou social-democrata e os autores do livro coordenado por José Neves, situados numa diversidade de lugares de uma esquerda radical bem longe de Pacheco Pereira? Existirá um contraste evidente ou, pelo contrário, haverá entre ambas as perspectivas mais pontos de contacto, por razões de afinidade académica ou de carácter analítico? Devo dizer que, bem feitas as contas e mesmo atendendo à desproporção das páginas e do trabalho empreendido por Pacheco Pereira, os pontos de contacto parecem maiores que os de divergência. É que, em ambos os casos, a preocupação de carácter analítico constitui-se em antídoto para qualquer tipo de comemorativismo acrítico em que alguns pretendem encerrar a figura de Álvaro Cunhal.