Violência
A Educação nacional está a ser confrontada com caminhos que desprezam a sua natureza axiológica e procuram impor-lhe o modelo de mercado.
Se apelarmos à memória, salta à vista a convergência ideológica entre Maria de Lurdes Rodrigues e Nuno Crato, relativamente ao papel dos professores. Uma ou outra divergência quanto a processos não apaga o essencial. Do outro lado da barricada, a classe dos professores não interiorizou, enquanto tal, a dimensão política da sua profissão. E, em momentos vitais das lutas a que tem ido, soçobrou por isso.
As mudanças sociais e económicas que varrem a vida dos portugueses colocam à Educação problemas novos e emprestam uma dimensão maior aos problemas de sempre. Mas o maior de todos é político e como tal ideológico e intencional. A Educação nacional está a ser confrontada com caminhos que desprezam a sua natureza axiológica e procuram impor-lhe o modelo de mercado. Trata-se de apresentar a Educação como um simples serviço, circunscrito a objectivos utilitários e instrumentais e regulado apenas por normas de eficiência e eficácia. Trata-se de impor um acto educativo transformado em produto e a escola transformada em empresa de serviços. Trata-se de impor uma ideologia marcada pela sede de desinstitucionalizar e pela pressa de privatizar. De entre tantas mudanças que aqui não cabem, recordemos as duas que melhor servem tal desígnio: a criação da Parque Escolar e o regime jurídico de gestão das escolas. Com a primeira, passou-se para o domínio empresarial a propriedade de mais de metade das escolas secundárias do país. São milhares e milhares de metros quadrados urbanizados nas zonas mais nobres das maiores cidades. Se o BPN foi nacionalizado e a SLN ficou de fora, por que não considerar que a Parque Escolar pode vir a ser vendida ao grupo GPS ou à empresária Isabel dos Santos? Com a segunda, escancararam-se as portas à possível gestão privada das escolas públicas. Porquê? Porque o órgão de gestão das escolas passou a ser escolhido por uma espécie de assembleia de accionistas das empresas (Conselho Geral, onde a maioria dos membros não pertencem à Escola); porque o director assim escolhido também pode, ele próprio, ser estranho à própria Escola ou mesmo, no momento, a qualquer escola, um simples contratado por alguém, que cumpra os requisitos legais. Muitos não pensaram nisto, nem no como pode ser atraente para outros juntar as duas peças, sob a bênção da ideologia de Passos e Crato. Aos primeiros recordo Sun Tzu:
“… Se conheces o inimigo e te conheces a ti mesmo, não precisas de temer o resultado de cem batalhas. Se te conheces mas não conheces o inimigo, por cada vitória sofrerás uma derrota. Se não te conheces nem a ti próprio nem ao inimigo, perderás todas as batalhas…”
A distorção nas representações sobre as condições de exercício da profissão docente, ardilosamente passada pelo Governo para a sociedade em geral, atingiu o limite do suportável e ameaça hoje a própria integridade profissional dos professores, que não se têm afirmado suficientemente vigorosos para destruir estereótipos desvalorizantes. Com tristeza o digo, mas a classe dos professores manifesta-se cada vez mais como classe de dependências. E quem assim se deixa aculturar dificilmente compreenderá o valor da independência e aceitará pagar o seu custo. É neste contexto que devemos olhar para a Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades, criada por Maria de Lurdes Rodrigues, importa não esquecer, e então fortemente contestada pelo PSD, importa recordar. Não é coisa de alguns. É coisa de todos. Pese embora tudo o que se possa dizer, o carácter facilitista da prova serve para esvaziar a sua contestação. O PÚBLICO evidenciou o grotesco da prova quando mostrou que adolescentes dos 8.º e 9.º anos a resolvem com facilidade e rapidamente. Mas, recordemos, há uma segunda prova, sobre conhecimentos específicos, que… pode ser bem diferente. Enquanto chamarmos básica, ridícula, elementar, insultuosa, apatetada, desadequada, absurda, a uma prova que é tudo isso, não nos ocupamos de uma política, que vem de longe, que a utiliza para descredibilizar os docentes da escola pública e para os apontar como responsáveis pela degradação da Educação, etapa importante para o que virá a seguir. A todos aqueles vocábulos há que acrescentar a palavra que falta: violência. É o que esta prova é: uma violência.
Dizem os dicionários que a violência é a qualidade de tudo aquilo que opera com ímpeto, que se exerce com força, que se opõe ao direito ou à justiça. Porque há vários tipos de força, o conceito de violência é, de forma mais lata, aplicado comummente a todo o tipo de comportamento que, com intencionalidade, agride ou intimida. Não só do ponto de vista físico, mas, também, do ponto de vista psíquico e moral. O rompimento abrupto das normas e dos princípios constitutivos da moral social vigente é, no meu entendimento, sempre, uma violência. Quantas vezes mais bárbara do que a que se exerce de bastão na mão.
Professor do ensino superior
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Se apelarmos à memória, salta à vista a convergência ideológica entre Maria de Lurdes Rodrigues e Nuno Crato, relativamente ao papel dos professores. Uma ou outra divergência quanto a processos não apaga o essencial. Do outro lado da barricada, a classe dos professores não interiorizou, enquanto tal, a dimensão política da sua profissão. E, em momentos vitais das lutas a que tem ido, soçobrou por isso.
As mudanças sociais e económicas que varrem a vida dos portugueses colocam à Educação problemas novos e emprestam uma dimensão maior aos problemas de sempre. Mas o maior de todos é político e como tal ideológico e intencional. A Educação nacional está a ser confrontada com caminhos que desprezam a sua natureza axiológica e procuram impor-lhe o modelo de mercado. Trata-se de apresentar a Educação como um simples serviço, circunscrito a objectivos utilitários e instrumentais e regulado apenas por normas de eficiência e eficácia. Trata-se de impor um acto educativo transformado em produto e a escola transformada em empresa de serviços. Trata-se de impor uma ideologia marcada pela sede de desinstitucionalizar e pela pressa de privatizar. De entre tantas mudanças que aqui não cabem, recordemos as duas que melhor servem tal desígnio: a criação da Parque Escolar e o regime jurídico de gestão das escolas. Com a primeira, passou-se para o domínio empresarial a propriedade de mais de metade das escolas secundárias do país. São milhares e milhares de metros quadrados urbanizados nas zonas mais nobres das maiores cidades. Se o BPN foi nacionalizado e a SLN ficou de fora, por que não considerar que a Parque Escolar pode vir a ser vendida ao grupo GPS ou à empresária Isabel dos Santos? Com a segunda, escancararam-se as portas à possível gestão privada das escolas públicas. Porquê? Porque o órgão de gestão das escolas passou a ser escolhido por uma espécie de assembleia de accionistas das empresas (Conselho Geral, onde a maioria dos membros não pertencem à Escola); porque o director assim escolhido também pode, ele próprio, ser estranho à própria Escola ou mesmo, no momento, a qualquer escola, um simples contratado por alguém, que cumpra os requisitos legais. Muitos não pensaram nisto, nem no como pode ser atraente para outros juntar as duas peças, sob a bênção da ideologia de Passos e Crato. Aos primeiros recordo Sun Tzu:
“… Se conheces o inimigo e te conheces a ti mesmo, não precisas de temer o resultado de cem batalhas. Se te conheces mas não conheces o inimigo, por cada vitória sofrerás uma derrota. Se não te conheces nem a ti próprio nem ao inimigo, perderás todas as batalhas…”
A distorção nas representações sobre as condições de exercício da profissão docente, ardilosamente passada pelo Governo para a sociedade em geral, atingiu o limite do suportável e ameaça hoje a própria integridade profissional dos professores, que não se têm afirmado suficientemente vigorosos para destruir estereótipos desvalorizantes. Com tristeza o digo, mas a classe dos professores manifesta-se cada vez mais como classe de dependências. E quem assim se deixa aculturar dificilmente compreenderá o valor da independência e aceitará pagar o seu custo. É neste contexto que devemos olhar para a Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades, criada por Maria de Lurdes Rodrigues, importa não esquecer, e então fortemente contestada pelo PSD, importa recordar. Não é coisa de alguns. É coisa de todos. Pese embora tudo o que se possa dizer, o carácter facilitista da prova serve para esvaziar a sua contestação. O PÚBLICO evidenciou o grotesco da prova quando mostrou que adolescentes dos 8.º e 9.º anos a resolvem com facilidade e rapidamente. Mas, recordemos, há uma segunda prova, sobre conhecimentos específicos, que… pode ser bem diferente. Enquanto chamarmos básica, ridícula, elementar, insultuosa, apatetada, desadequada, absurda, a uma prova que é tudo isso, não nos ocupamos de uma política, que vem de longe, que a utiliza para descredibilizar os docentes da escola pública e para os apontar como responsáveis pela degradação da Educação, etapa importante para o que virá a seguir. A todos aqueles vocábulos há que acrescentar a palavra que falta: violência. É o que esta prova é: uma violência.
Dizem os dicionários que a violência é a qualidade de tudo aquilo que opera com ímpeto, que se exerce com força, que se opõe ao direito ou à justiça. Porque há vários tipos de força, o conceito de violência é, de forma mais lata, aplicado comummente a todo o tipo de comportamento que, com intencionalidade, agride ou intimida. Não só do ponto de vista físico, mas, também, do ponto de vista psíquico e moral. O rompimento abrupto das normas e dos princípios constitutivos da moral social vigente é, no meu entendimento, sempre, uma violência. Quantas vezes mais bárbara do que a que se exerce de bastão na mão.
Professor do ensino superior