Braço-de-ferro da oposição encurrala Presidente ucraniano
Manifestantes cercam sede do Governo e paralisaram centro da capital. Primeiro-ministro diz que acontecimentos em Kiev se assemelham a um golpe de Estado.
Depois da grande manifestação de domingo, a maior desde a Revolução Laranja de 2004, segunda-feira foi um dia de impasse, com oposição e Governo a medirem forças sem se enfrentarem.
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Depois da grande manifestação de domingo, a maior desde a Revolução Laranja de 2004, segunda-feira foi um dia de impasse, com oposição e Governo a medirem forças sem se enfrentarem.
Respondendo ao apelo dos dirigentes da oposição, centenas de manifestantes não abandonaram a Praça da Independência quando a multidão se dispersou. Montaram tendas, trouxeram mantimentos e acenderam fogueiras para iludir o frio da noite. Outros usaram tudo o que tinham à mão para erguer barricadas – bancos de jardim, barreiras policiais e até peças de uma árvore de Natal artificial gigante foram sendo empilhadas ao longo da noite.
Quando a capital acordou, todas as ruas em redor da sede do Governo estavam cortadas ao tráfego e, naquelas onde as barreiras não chegaram, simpatizantes da oposição estacionaram carros no meio do pavimento para impedir a circulação. Perto dali, centenas de pessoas mantinham-se no edifício da Câmara Municipal, invadido durante a manifestação de domingo e transformado em “quartel-general da revolução”. “Vou ficar aqui até ao fim. Precisamos de mudar as coisas. Não posso ir trabalhar, nem ficar em casa. É impossível”, disse à AFP Tatiana, uma ucraniana de 55 anos que veio com a filha, de 16 anos.
Por causa do bloqueio, a maioria dos ministérios esteve de portas fechadas, mas era difícil perceber o impacto da greve geral convocada pela oposição para forçar o Presidente a demitir-se e a convocar eleições antecipadas. “Temos que mobilizar o país e não perder a iniciativa”, disse Vitali Klitchko, antigo campeão de boxe e líder do Udar, um dos três partidos que aderiram aos protestos contra a recusa de Ianukovich em assinar um acordo que aproximaria a Ucrânia da UE.
As autoridades de Lviv e Ivano-Frankivsk, duas cidades no Oeste do país, tradicionalmente pró-europeu, declararam o seu apoio à oposição. Mas no Leste, onde a maioria da população é russófona, não havia notícias de protestos, apesar de no dia anterior algumas centenas de pessoas terem desafiado as autoridades manifestando-se contra o Governo.
Contenção e ameaças
Depois da carga policial de sábado, de uma violência que chocou os ucranianos, as forças de segurança têm ordens para evitar confrontos. Uma jornalista da AFP viu vários camiões da Berkut, as forças antimotim, estacionados no bairro administrativo, mas os manifestantes não foram importunados. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Leonid Kozhara, assegurou também ao seu homólogo da Polónia que Kiev “não tem qualquer plano para decretar o estado de emergência”, ao contrário do que foi noticiado na véspera.
Quebrando quase três dias de silêncio, o Presidente apelou aos manifestantes para não recorrerem à violência – “uma má paz é melhor do que uma boa guerra”, disse. Mas o seu primeiro-ministro foi mais directo e acusou a oposição de usar “métodos ilegais” para “radicalizar a situação”. “O que se está a passar tem todos os sinais de um golpe de Estado. É algo muito sério. Até aqui temos dados provas de paciência, mas não queremos que os nossos parceiros pensem que tudo lhes é permitido”, avisou Mikola Azarov.
A optar pela linha dura, Ianukovich poderá contar com o apoio de Vladimir Putin que, de visita à Arménia, país que em Setembro trocou a parceria com a UE por um acordo com Moscovo, disse que os acontecimentos dos últimos dias em Kiev “assemelham-se mais a um pogrom do que a uma revolução”. “É uma tentativa de desestabilizar um Governo legítimo”, disse o Presidente russo, que não escapou a protestos também em Ierevan, a capital arménia.
Mas se os benefícios de uma aproximação à UE não eram consensuais no país, a forma como Ianukovich recuou à última hora (e o envio de polícias para dispersar uma manifestação pacífica) estão a deixar marcas.
A juntar à pressão das ruas, Serhi Liovochkin, chefe de gabinete do Presidente, apresentou a sua demissão em protesto contra a carga policial, num exemplo seguido por pelo menos dois deputados do Partido das Regiões. E há sinais de que pelo menos parte da oligarquia está preparada para se distanciar do Governo – um dirigente da oposição contou ao New York Times que foi convidado para falar na televisão de Rinat Akhmetov, o oligarca de Donetsk que foi o principal financiador do partido no poder.
Barroso não reabre negociações
Nesta terça-feira, a oposição tentará votar no Parlamento uma moção de censura ao Governo, na expectativa de conseguir o apoio de deputados da maioria. Ianukovich fez saber que mantém os planos para uma visita oficial à China, mas não é certo que abandone o país.
Entretanto telefonou ao presidente da Comissão Europeia, pedindo-lhe que receba uma delegação ucraniana para discutir “certos aspectos do acordo de associação”. Durão Barroso disse estar disponível para falar, mas reafirmou que “em nenhum caso a Comissão vai reabrir as negociações” sobre o acordo. Assiná-lo tal como foi apresentado em Vílnius seria entregar a vitória nas mãos da oposição e comprar uma guerra com Moscovo.
Nenhuma das opções parece neste momento auspiciosa para a sobrevivência política de Ianukovich. “Os seus cálculos sobre política e poder, poucas vezes manifestados de forma tão rude e transparente, estão fazer ricochete”, sentenciou Ian Traynor, editor de política europeia do Guardian.