“Nós não inventamos nada”

O sétimo álbum de Pedro Abrunhosa chama-se Contramão e prossegue no caminho da canção clássica americana inaugurado com o anterior Longe . Novamente com a banda Comité Caviar, o músico aponta baterias à situação política portuguesa, e convida Camané e Duquende.

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Contramão vai buscar o seu título ao acto de resistência que significa actualmente editar – “apesar da falência da indústria discográfica e apesar da situação económica do país”, explica o músico. Num álbum construído em torno da ideia da canção clássica de rock, acontecem desvios como uma aproximação à alma do flamenco ou o gospel de A.M.O.R., uma “canção de elevação contra a intolerância religiosa”. Sem o arrojo excessivo que reconhece a Silêncio (1999) – “é um disco um pouco arrogante e mal produzido”, confessa – Contramão surge quase vinte anos depois da edição do seminal Viagens. É por aí que começamos.

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Contramão vai buscar o seu título ao acto de resistência que significa actualmente editar – “apesar da falência da indústria discográfica e apesar da situação económica do país”, explica o músico. Num álbum construído em torno da ideia da canção clássica de rock, acontecem desvios como uma aproximação à alma do flamenco ou o gospel de A.M.O.R., uma “canção de elevação contra a intolerância religiosa”. Sem o arrojo excessivo que reconhece a Silêncio (1999) – “é um disco um pouco arrogante e mal produzido”, confessa – Contramão surge quase vinte anos depois da edição do seminal Viagens. É por aí que começamos.

Faltam escassos meses para o 20º aniversário do seu álbum de estreia, Viagens. Lembra-se onde estava há 20 anos?
Sei exactamente onde estava: em Battle, Inglaterra, com o Quico [Serrano] a misturar o Viagens. Foi nesta altura – Novembro/ Dezembro de 1993. Fomos para lá de carro, com a parte de trás completamente atulhada de fitas e com o gravador de fitas porque tínhamos medo que o deles estivesse desafinado. Levámos tudo, uma parafernália tecnológica que hoje em dia cabe num disco [rígido].

Esse foi também o seu modo de vida durante muito tempo, a viajar de carro por toda a Europa.
Sim, estava muito habituado a fazer essas viagens de carro. Para mim ir a Londres era uma coisa simplicíssima. Parámos em Saragoça e depois em França, para dormir. Quando estávamos no cais de Calais, à espera do ferry, parámos o carro e começou a tocar no rádio o Sitting on the Dock of the Bay [de Otis Redding]. Pôr-do-sol, os ferries de Calais, nós com um disco na mala sem saber o que ia acontecer e o Sitting on the Dock of the Bay. Chegámos a Londres de madrugada e depois seguimos para Parkgate, uma quinta transformada num extraordinário estúdio residencial, em que as antigas cavalariças tinham sido convertidas em fantásticos alojamentos para músicos. Battle – o nome vem da Batalha de Hastings, em 1066 – fica no meio do nada. Para mim, que sou um alucinado com História e Arqueologia, foi óptimo porque aprendi muito sobre a História de Inglaterra. Esse retiro foi muito importante, porque não havia mais nada para fazer a não ser passear nos caminhos medievais e trabalhar. Curiosamente, a última música do disco nem sequer era para entrar. Nunca tínhamos tocado o Tudo o que Eu te Dou, mas o Quico sabia os acordes e eu tinha a música imaginada. Saiu à primeira, gravado às duas da manhã do dia anterior a irmos embora.

Isso é prévio ao seu contacto com o Carlos Maria Trindade na Polygram?
Isso já é obra do Carlos Maria, essa já foi a parte financiada pela Polygram. Até ali já tinha gasto tudo o que tinha e não tinha. O meu dinheiro tinha acabado – para pagar ao Maceo [Parker, saxofonista], para pagar as coisas que eram necessárias. Não foi um disco muito caro.

Mesmo com o Maceo Parker?
Sim. O Maceo Parker foi a coisa mais cara. Conheci-o num festival de jazz três anos antes, abordei-o e empatizámos um com o outro. Eu tinha uma grande admiração pelo Miles Davis e o Miles tinha na altura o Kenny Garrett como saxofonista, com um som muito idêntico ao do Maceo, muito forte, acutilante, com uma precisão rítmica espantosa. E o Kenny Garrett dizia: “No saxofone só há dois nomes – o Charlie Parker e o Maceo Parker”. O Maceo era uma lenda entre os saxofonistas de jazz. Mandei-lhe uma cassete e ele aceitou de imediato. Claro que vinha com um preço. Mas quando o Maceo vem, aquilo que está negociado com a empresária dele são dois solos e quatro naipes. Gravámos o Maceo, que vinha de grandes estúdios de Nova Iorque, Memphis e Nashville, numa salinha de dobragem de desenhos animados no Porto. Já estava tudo pago, o cheque entregue, e a empresária adormeceu profundamente na sala de espera do estúdio. Os apaixonados pela música muitas vezes estão-se a marimbar para o que os empresários combinam e querem é tocar. Eu sabia disso e aproveitei-me. Gravámos rapidamente as músicas que ele deveria fazer e disse ao Quico para deixar a fita a rodar. O Maceo tocou o disco todo. Repetimos a brincadeira durante os três dias de gravação. Temos alternate takes para dez edições. Ficou uma amizade muito forte. Um destes dias, vou chamá-lo. Não para fazer um concerto, mas uma temporada. E ele também me tem convidado a tocar com ele.

Começou, precisamente, como contrabaixista. Não tem saudades dessa vida de jazzman, de andar na estrada como instrumentista?
Não tenho muitas. É uma vida dura e fi-lo durantes muitos anos. Comecei a tocar contrabaixo com 15/16 anos, a acompanhar músicos e a tocar em bares. O meu percurso até chegar ao Viagens é um percurso de estrada, muito duro, e portanto não deixa grandes saudades. Não havia auto-estradas. Para chegar a Braga e fazer um concerto em que se ia ganhar 25 escudos demoravas três horas. Chegava a casa às cinco da manhã, tinha de descarregar a camioneta, o motorista ficava de braços cruzados e ganhava mais do que eu. Isto aconteceu muitas vezes.


Mas tocar com o Maceo agora não seria nessas condições.
Não, claro. Foi muito gradual. Mas esse percurso é doloroso. Eu tinha aulas em Cascais com o Alejandro Oliva, o líder do naipe da Gulbenkian, e ia todas as semanas de contrabaixo para Lisboa. Apanhava um táxi, tinha de convencer o homem a meter o contrabaixo no táxi, em Campanhã metia o contrabaixo a custo no comboio, depois vinha a proteger o contrabaixo em pé, fazia quatro horas de viagem. Chegava à uma da tarde, tinha de convencer o homem do táxi a levar-me até ao Cais do Sodré, metia o contrabaixo no táxi, depois no comboio, apanhava um táxi e chegava a casa do meu professor às quatro da tarde para ter uma hora de aula, e fazer o percurso inverso. Levanta-me às seis e chegava a casa ao Porto às duas ou três da manhã. Essa é a paixão que tenho pela música e sempre tive. Tenho saudades disso? Nostalgia, mas saudades não. Foram tempos de aprendizagem, valeu a pena porque os professores eram notáveis, aprendi muito. Não havia YouTubes nem Facebooks; havia estrada, estrada, estrada. Ganhei uma consistência dada pela estrada e pelas aulas – fui aluno do Jorge Peixinho, uma das grandes epifanias e que me abriu mais horizontes.

Em que é que esses ensinamentos têm aplicação na escrita de canções?
É difícil dizer, mas o que tem de concreto pode ser técnico – as aulas de contraponto, a arte de a uma linha melódica contrapor outra sem conflituar. Só que o contraponto numa grande orquestra faz-se entre um naipe de 150 instrumentos e numa banda de pop/rock faz-se entre sete ou oito. Não é fácil. Sobretudo porque os músicos têm de tocar algo que pode não lhes parecer muito utilitário e não demonstrar as suas capacidades. Esse é um dos grandes problemas dos grupos, é que todos se querem ouvir muito bem. Mas a música não resulta da atitude de um, resulta do conjunto das atitudes de todos. Se ouvirmos uma sinfonia de Mahler e isolarmos o oboé aquilo é absurdo e ridículo. Mas faz todo o sentido quando o que está a fazer o clarinete, o primeiro violino, o violoncelo e a trompa também é absolutamente ridículo individualmente. Só que o conjunto não é ridículo, é genial. A canção rock é isso: o somatório de uma série de partes que tem de servir de tabuleiro a uma coisa chamada letra. São as azeitonas em cima dos canapés e a letra é o leitãozinho com a maçã na boca. Mas mais do que essas questões técnicas, são ensinamentos um pouco mais abstractos, é a atitude que o Álvaro Salazar e o Jorge Peixinho tinham perante a música. Eu estudava no Conservatório mediante as regras do barroco ou do Renascimento e quando mostrava o meu exercício de composição ou aquilo soava a Bach ou chumbava. Ao chegar às mãos do Peixinho e do Álvaro Salazar a primeira coisa que eles disseram foi: “Meus caros, na música tudo é possível”. Essa frase é mais inspiradora do que 20 aulas de contraponto.

Quando formou os Bandemónio queria explorar a sonoridade acid jazz. Agora, com o Comité Caviar, que som tinha na cabeça e queria perseguir?
A referência é o rock. Aliás, nunca abandonei o rock. Queria explorar o som das guitarras e o som da bateria e fazer canções em cima disso. O rock-funk e o rock-canção, que é uma coisa notável, aquela massa sonora sempre de raízes negras. Estou a ir à raiz da canção e sempre foi esse o meu objectivo – independentemente de ter harpa ou piano. Na altura o acid jazz estava muito em voga em Inglaterra e ouvia-se numa certa elite em Lisboa e no Porto. E eu achava aquilo muito fácil. Os Bandemónio fizeram-no maravilhosamente. O disco tem essa componente acid jazz mas de garras de fora, porque o acid jazz era muito mais educado. O Gilles Peterson queria assinar o Viagens pela Talkin’ Loud. Mas assinei pela Polygram porque me permitia distribuição e publishing internacional. Nesta altura, o que me preocupa é a canção, a palavra, servir os textos. Fascina-me Schubert, aquela fórmula incrível de três minutos e meio. A canção mahleriana, a canção de Strauss, uma orquestração e uma melodia soberba em cima.

Segue uma matriz de canção clássica rock que é muito norte-americana, sente-se aqui o Bruce Springsteen, o Tom Waits…
O Tom Petty, o James Brown, o Prince. Nós não inventamos nada. Ai de quem tenha essa veleidade… Somos o somatório das nossas influências todas. O Tom Waits é uma figura tutelar no meio disto tudo. E curiosamente faz discos e discos sempre com os mesmos três acordes. Tal como o Lou Reed fazia. Mas depois há aquela atitude em cima e a orquestração, que é fundamental. O Tom Petty é uma influência muito grande na minha vida – o Viagens é-lhe dedicado.

Como encaixam aí o fado do Camané e o flamenco do Duquende?
No Tempo tenho funk, com os músicos do Prince, e, de repente, o Opus Ensemble a tocar com o Carlos do Carmo. E soa absolutamente coerente. Aqui estou a tocar piano e é como se ele estivesse ali e lhe dissesse “oh Camané, anda cá”. E é uma coisa extraordinária ouvi-lo cantar – é o Lou Reed português, o homem que mais cidade tem na voz. Quanto ao Duquende, sempre referi o flamenco como a música soul europeia. A voz gutural do Camarón [de la Isla] é igual à voz gutural do James Brown e do Otis Redding. Acho que não há música europeia que tenha mais alma e mais peso histórico e sociológico do que o flamenco. O flamenco é música dos ciganos, uma etnia que faz a colheita do tomate e da azeitona, e que se torna curiosamente a música nacional espanhola, e a soul é música que vem gospel, dos espirituais negros, de quem apanha algodão e cana do açúcar, e torna-se a música nacional americana. Escrevi uma canção que é indefensável na minha voz e só poderia ser feita por um grande fadista ou por um flamenquista. A cúpula deste disco chama-se autoria, que é a capacidade de dar consistência a uma peça, mesmo que ela pareça um conjunto, como no contraponto, de coisas que não encaixam. E acho consigo fazer algumas canções interessantes, nomeadamente o Todos Lá para Trás, porque também retrata um momento elegante da nossa situação política.

No Todos Lá para Trás, recupera a referência a Cavaco Silva, que já antes fora um alvo da sua língua.
Falo num Presidente ineficaz. Infelizmente, são muitos os Presidentes ineficazes.

Mas há um retrato muito claro da realidade portuguesa. Acredita mesmo num ‘todos lá para trás’, numa luz para a descrença profunda que existe neste momento na política e neste sistema partidário?
A democracia assenta numa base partidária. As pessoas aglomeram-se em partidos porque estes defendem uma determinada postura ideológica para a gestão do bem comum. Podemos estar de acordo ou em desacordo com as bases programáticas do partido, mas os valores são aqueles. E há dois grandes valores: um valor humanista, de partilha, do bem comum, uma distribuição da riqueza sobretudo por quem a produz e de acesso igualitário dos cidadãos aos bens fundamentais como sejam a Justiça, a Saúde, a Educação, os bens culturais, etc. E depois há uma outra visão individualista, lançada na Europa selvaticamente por Margaret Thatcher nos anos 80 e que diz que o Estado deve ter uma competência reguladora, apenas isso. Essa demissão do Estado das suas competências sociais é uma das premissas de uma outra vertente ideológica em que algumas pessoas votam. Creio que maior parte das pessoas que vota nesta segunda, chamada ‘a direita’, não sabe que está a votar nisso, porque não é isso que lhes é dito.

Se a direita fosse clara no seu discurso jamais teria a maioria em Portugal. Isto foi o que se tentou evitar a seguir ao 25 de Abril, que os meios de produção nacionais caíssem todos de uma vez só nas mãos de pequenos grupos empresariais, particulares e individuais. Há coisas sobre as quais o Estado não pode perder a tutela. Se o Estado não existe para ser social então não vale a pena haver Estado, passa a ser uma entidade absolutamente burocrática, desprovida de ideologia para colectar impostos. Ora acontece que o Estado tem mesmo de ingerir nas vidas porque o mundo não é só feito das pessoas que têm, é também feito daqueles que não têm.

A República foi interrompida durante 48 anos e voltou a ser instituída no 25 de abril. Agora não temos República, não temos Presidente. Vamos ver onde estava [Cavaco Silva] há 25 anos? Era primeiro-ministro e houve uma votação da ONU para que fosse libertado Nelson Mandela. O que votou o governo português? Contra. Isto revela a mediocridade do político, a falta de perspectiva histórica. O Todos Lá para Trás é isso: já chega! Estes novos que são velhos, o que sabem do país é aquilo que lhes é ensinado pelos incestuosos professores, da realidade sabem pouco, passaram do liceu de presidentes de associações de estudantes a primeiros-ministros. A política é uma nobre arte de dirigir o bem público – para o bem público, não para o proveito próprio.

Em entrevista recente dizia que o público é mais conservador do que os artistas. Sente que tem de vencer muita resistência e que é difícil o gesto artístico ser devidamente compreendido?
Por acaso não sinto. A minha carreira é feita do legado das canções. Antigamente dizia-se que “vendeu 280 mil discos” e comparava-se as coisas assim. O que de si já não é comparação, é uma deturpação da realidade artística, o que interessa é que as coisas sejam consistentes e boas. Claro que quando se é arrojado de mais, louco de mais ou se tem autoconfiança de mais como foi o meu caso no Silêncio… É um disco um pouco arrogante e que está mal produzido, assumo a minha culpa, devido a excesso de confiança e uma pressão muito grande humana e mediática.

Estava cansado do sucesso – não quer dizer que não quisesse ter sucesso com o disco. Mas precisava de dizer “deixem-me em paz”. É um disco zangado. Creio que agora entrei numa fase em que vou arrojando. Vamos ver o que as pessoas dirão sobre o Saudade É, sobre o Todos Lá para Trás ou o A.M.O.R., uma canção de elevação contra a intolerância religiosa que coloca a questão: será que os fundamentalistas islâmicos não amam como nós amamos as suas mulheres e os seus filhos, será que os fundamentalistas cristãos americanos não amam as suas mulheres e os seus filhos como os islâmicos e os judeus? Isto é irrealista – só um artista ou o Nelson Mandela pode ser assim –, mas se se arranjasse uma plataforma, um denominador comum entre todos, não poderia ser o amor? Por outro lado, é um gospel no sentido baptista do termo, que é uma coisa que gostava de explorar. Lembro-me de chegar a casa do liceu e a minha mãe estar a ouvir Mahalia Jackson.

Nalgum ponto se sentiu ferido na autoestima quando os resultados foram menos bons?
Sim, claro. Somos humanos.

Foi-lhe difícil voltar a compor?
Não, porque isso seria a contradição de tudo aquilo que tenho feito e por que tenho lutado. Difícil é tudo o resto que faço, em termos humanos, familiares e pessoais, depois do muito trabalho que tenho. Neste meio competitivo e criativo, em que se está taco a taco com grandes músicos, não se pode esmorecer. Essa chamada à terra é fundamental. Muito antes do Viagens, uns três ou quatro anos, tivemos a primeira apresentação pública da Máquina do Som [grupo que precedeu os Bandemónio] no Porto, em que já fazia alguns dos temas que entraram no Viagens, e foi assobiada pela crítica. Nessa fase, teria vacilado. Mas não vacilei, porque já tinha confiança no que fazia, aquilo podia ser um caminho. Não me preocupou, porque a vida é feita de momentos em que se é celebrado e de outros em que se é crucificado. No dia seguinte, tínhamos um concerto ao ar livre na Praça da Ribeira, no Porto, e metade dos músicos faltou. Magoou-me muito as pessoas não confiarem nessa visão. Mas passados trinta e tal anos, aqui estamos.