Um fenómeno chamado Daughter e um endiabrado Legendary Tigerman

No Vodafone Mexefest, cada pessoa é um roteiro diferente. As escolhas são inevitáveis, ver tudo é tarefa impossível. Essa é a sua identidade. Ainda assim, qualquer que seja o roteiro escolhido, há destaques inevitáveis. No segundo e último dia de festival, sábado, eles foram o culto erguido em volta dos ingleses Daughter e um infernal Legendary Tigerman.

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Ao fundo do palco, ouvem-no atentos e descontraídos um flautista e um norueguês altíssimo que, minutos antes, decidira ceder o protagonismo ao colega de palco. Erlend Öye, metade do duo Kings Of Convenience, dono de uma carreira a solo seguida por cá com toda a atenção e músico que, pela simpatia cativante e descontração bem humorada revelada nas inúmeras viagens a Portugal, já faz parte da mobília (de afectos), era um dos nomes fortes de sábado, segundo e último dia do Vodafone Mexefest, festival que levou música a locais evidentes e não tão evidentes no eixo da Avenida da Liberdade.

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Ao fundo do palco, ouvem-no atentos e descontraídos um flautista e um norueguês altíssimo que, minutos antes, decidira ceder o protagonismo ao colega de palco. Erlend Öye, metade do duo Kings Of Convenience, dono de uma carreira a solo seguida por cá com toda a atenção e músico que, pela simpatia cativante e descontração bem humorada revelada nas inúmeras viagens a Portugal, já faz parte da mobília (de afectos), era um dos nomes fortes de sábado, segundo e último dia do Vodafone Mexefest, festival que levou música a locais evidentes e não tão evidentes no eixo da Avenida da Liberdade.

Seria Erlend Öye a explicar aquilo que o Vodafone Mexefest tem de mais interessante. Contou que, no dia anterior, andara a deambular de sala em sala para ver, por exemplo, Savages, Woodkid ou o “último acorde do concerto dos Wavves” (“mas um grande acorde”, brincou), e elogiou o facto de serem abertas as portas de edifícios antigos a público e bandas. Muitas vezes fecham-se esses espaços por receio de que possam ser danificados, disse, “e é bom ver que em Portugal, onde prezam tanto a tradição, não o fizeram”. Sendo incerto o grau português de apreço pela tradição, é certo que essa abertura de vários espaços da cidade ao público, criando diferentes experiências de concerto, é um dos maiores atractivos do Vodafone Mexefest.

Festival em movimento

Foi aos palcos mais canónicos que, obviamente, se registaram as maiores romarias – São Jorge esgotado para Erlend Öye; Coliseu repleto de gente para ver os Daughter; São Jorge novamente esgotado para receber Legendary Tigerman. Mas, desde o arranque em dose tripla do segundo dia de festival, às 20h (Pedro Esteves no São Jorge; as A.M.O.R. no Hotel Florida; os jovens cantautores brasileiros Cícero, Mono e Wado no BES Arte e Finança), até ao final, quando todos os caminhos iam dar ao Coliseu onde a equipa da Discotexas prolongava a festa horas dentro da madrugada, vimos, por exemplo, um MC acompanhado de banda oleadíssima em soul e funk clássico (intemporal, portanto) ocupar um salão nobre no Palácio da Independência: era Sensi a liderar uma banda de 11 elementos para apresentar com toda a elegância e convicção na rima o muito recomendável Pequenos Crimes Entre Amigos.

Pouco depois, a mourisca Casa do Alentejo tinha uma centena a ouvir a voz surpreendente de Raphaelle Standell-Presto erguer-se sob o forte onirismo pop de que é feita a música dos seus Braids. E enquanto isso, Silva, o música brasileiro de Vitória que se estreou com Claridão, criador de canções que se querem muito leves e muito trauteáveis, levava muitos e muitos a subir até ao palco com vista para o Castelo de São Jorge instalado na Estação do Rossio. Silva não teria esses muitos consigo até ao final. Porque o concerto foi minado por problemas técnicos, tendo de ser mesmo interrompido durante alguns minutos, o que levou parte do público a procurar outros palcos, e porque, na verdade, ninguém no Vodafone Mexefest tem todos consigo o tempo todo. É um festival em movimento.

De olhos postos na programação, vai-se saltando de sala em sala, desenhando um circuito para logo depois o refazer, e parando mais demoradamente quando o que acontece em palco assim nos obriga. No processo faz-se por eliminar a frustração de ser impossível ver tudo. Exemplo: acompanha-se o concerto de Erlend Öye, folk delicada, um pé na bossa, outro no cancioneiro de Simon & Garfunkel, que é boa brisa construída em delicadas linhas de flauta, guitarras acústicas e voz de eterno adolescente em paz com as coisas do amor e da vida (La prima estate cantada em italiano para recordar o actual país de residência do cantor; loving you is like waiting for the rain to come oferecendo um pouco da melancolia dos verões eternos; uma plateia que, a pedido do Erlend Öye, e como recusar o pedido de um tipo tão genuinamente simpático, a marcar o compasso com o estalar de dedos e sorriso no rosto). Acompanha-se o concerto de Öye, dizíamos, termina o concerto e não nos salva o passo apressado avenida abaixo. Entramos na Casa do Alentejo, os Braids estão já na recta final do concerto e os Peixe:Avião, umas centenas de metros acima no pavilhão do Ateneu Comercial de Lisboa, não tardarão a despedir-se igualmente - escolhas, tantas escolhas.

Gisela João, a que nasceu fadista

O que fica então da correria no segundo dia de Mexefest? A imagem de Gisela João na magnífica sala da Sociedade de Geografia de Lisboa, expressividade transbordante nos gestos e voz de uma justiça para com os versos e as emoções que neles se libertam que a tornam arrebatadora. Lá diz a quadra, e lá a ouvimos no concerto: por muito que se disser / o fado não é canção bairrista / não é fadista quem quer / mas quem nasceu fadista. Gisela João nasceu então fadista. Percebemo-lo na nova versão de Mariquinhas com letra composta por Capicua; percebemo-lo ao acompanhar a dor da Primavera triste oferecida por Aldina Duarte; emocionamo-nos com aquela Maldição que é força viva vencendo a resignação. Vemo-la, Gisela João, a viver cada fado como se fosse o derradeiro e definitivo. Vemo-la: a interpretar na despedida Os vampiros de José Afonso, guitarras criando um zumbido perturbador, a passar pelos versos que são diagnóstico da nossa tragédia e descontentamento (ontem como hoje) e a sua voz, quando os repete pela última vez, a tornar fado o que esta canção imensa guarda no seu âmago. Momento deslumbrante perante uma sala esgotada (mais uma).

Despedia-se Gisela João e, ali ao lado, no Coliseu dos Recreios, assinalava-se oficialmente o nascimento de um culto, o dos britânicos Daughter. O trio londrino (quarteto em concerto) tem vida recente (primeiro EP há um par de anos, álbum de estreia, If You Leave, lançado em 2013), mas o ambiente que se viveu no concerto no Vodafone Mexefest foi de consagração. Tanto que a própria banda, com a tímida vocalista e guitarrista Elena Tonra como centro das atenções, parecia não saber exactamente como reagir aos coros que se erguiam para acompanhar as letras, aos aplausos generosos, às palmas acompanhando os momentos mais ritmados. Música de recolhimento esta, assente na voz frágil e nas letras confessionais de Tonra, e em que as guitarras, ora dedilhadas afogadas em eco, ora atacadas para criar turbilhões sónicos, surgem para acentuar o peso emocional das melodias.

Há nestas canções alguma da desolada melancolia dos xx dos inícios, uma luminosidade nocturna apelando ao silêncio. Mas, onde os xx são austeros, os Daughter são sorriso nervoso de quem confessa uma intimidade só pronunciável em canção. Para quem os viu, não são apenas revelação trazida pelo álbum de estreia: o público manifestou tanto entusiasmo e conhecimento perante canções dos Eps anteriors, como Candles, quanto perante essa Youth que, saltando de Wild Youth EP para If You Leave, surge como representação perfeita da banda: And if you're still bleeding / You're the lucky ones / Cause most of our feelings / They are dead and they are gone. Dificilmente vimos no Mexefest tamanha felicidade na partilha emocional que um concerto pode proporcionar. Dificilmente porque, horas depois da surpresa Daughter (o concerto terminou pelas 22h30), havia um incendiário do rock'n'roll à solta no São Jorge.

Legendary Tigerman, quem mais? O homem banda que nos inferniza com a tresloucada She said de Hasil Hadkins, que convida ao palco esse extraordinário teclista chamado Filipe Costa para encher de groove a mais “groovy” de todas as canções, Green onions, de Booker T & The MGs, e que nos apresenta o seu novo co-conspirador, o baterista Paulo Segadães, porque um one man band não pode ser one man band a vida toda: e quando Furtado se levanta da bateria e põe os sapatos brancos a dançar palco fora, respondendo ao ritmo furioso de Segadães em modo “Gories encontram Jon Spencer e são felizes para sempre”, cresce a ansiedade por descobrir o que este novo formato nos trará no futuro. Isso porém, são preocupações para mais tarde.

Trespassar o blues com alma punk

No São Jorge, meia noite ultrapassada, festival avançando para o fim, interessava o momento. Paulo Furtado a pedir mais calor, a pedir gente do público próximo dele. A público a demorar a chegar e ele a trespassar o blues com alma punk (I'm a motherfuckin' bad lovin' rhythm'n'blues machine) ou a convocar uma das mulheres de Femina, Phoebe Kildeer, para um dueto virtual em I gotta go away (antes tivera dueto em presença com Rita Redshoes).

O público haveria de erguer-se por fim: “Juro que a partir de agora isto não faz sentido sentado. Pensem que a cadeira é o Passos Coelho”, provocou. O público dançou a supracitada She said, dançou com maior fervor o Big black boat com rastilho aceso em kazoo e, depois, Tigerman não se conteve. Com Segadães a assegurar que o ritmo não iria serenar, gritou ainda em palco “XXIst century rock'n'roll!” como manifesto, deixou a guitarra para trás e foi escadaria da plateia acima espalhar a boa nova entre o público. Acabou ajoelhado no chão - imagem icónica, muito rock'n'roll, neste ou em qualquer outro século.

Mesmo na recta final, um óptimo concerto de um velho conhecido. Para juntar à alma de Gisela João, à surpresa Daughter ou à confirmação das Savages, que actuaram sexta-feira, como pontos altos do festival. Isto, qualquer que tenha sido o roteiro escolhido perante as escolhas, terríveis escolhas, inevitáveis escolhas a que nos obriga o Vodafone Mexefest.