Seropositivos podem dar órgãos a seropositivos nos Estados Unidos
Uma nova lei vai possibilitar a doação de órgãos infectados com VIH nos EUA, que já é uma realidade na África do Sul. Mas o receio é que daqui surja uma superinfecção ou supervírus da sida.
Actualmente, o VIH/sida passou de doença terminal a crónica para quem tiver acesso a terapias anti-retrovirais. Mas apesar de viverem mais tempo, muitos seropositivos sofrem de falências renais e hepáticas, levando à diminuição da qualidade de vida ou à morte.
A doação de órgãos por seropositivos para portadores de VIH, e mesmo a investigação usando esses órgãos, era proibida nos EUA, pela Lei Nacional de Transplantes de Órgãos de 1984. E só recentemente foi aceite naquele país que os doentes infectados com o vírus pudessem receber transplantes.
Também em Portugal a possibilidade de um seropositivo receber órgãos é relativamente recente. “Há dez anos, os portadores de VIH não eram elegíveis para transplantes”, revela Fernando Macário, presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação. “[Agora o receptor] pode ser transplantado, se for portador do vírus, mas se já tiver sida não.”
Fonte alternativa de órgãos
Agora nos EUA, a Lei HOPE (HIV Organ Policy Equity Act) foi assinada pelo Presidente Barack Obama (a 22 de Novembro), depois de aprovada no Congresso. Esta lei, que revoga a de 1984, traz uma alternativa a todos os doentes – mais de 100.000 – que estão hoje em lista de espera para transplante, em particular os infectados pelo VIH, cuja mortalidade enquanto aguardam pelo transplante é superior à dos não portadores, como refere o site da HIV Medicine Association (da HIVMA), que apoia esta iniciativa.
Em Portugal, as listas são menores: cerca de 2000 doentes aguardam um transplante de rim, segundo Fernando Macário. “Para o fígado e coração não há listas de espera, têm de ser transplantados ou morrem.”
Com a nova lei, nos EUA haverá mais uma fonte de órgãos: os dadores que têm VIH. Mas isto só se tornará um procedimento comum depois de se investigarem os riscos e se definirem as normas para estes transplantes, um trabalho a fazer pelos cientistas do Departamento de Saúde dos EUA.
Desta forma, os doentes infectados poderão conseguir transplantes mais depressa, diminuindo as listas que partilham com os doentes VIH-negativos. “O alargamento dos dadores é bom para seropositivos e seronegativos. Se a prática [médica] for boa, trará ganhos para a saúde e económicos, em particular para o sistema nacional de saúde”, comenta Paula Policarpo, da direcção da Abraço, defendendo que o assunto deveria ser discutido em Portugal.
Para quem espera por um rim, a diálise é a alternativa, embora a qualidade e o tempo de vida sejam menores do que quando recebem um transplante. Porém, na África do Sul, onde um em cada cinco adultos tem o vírus da sida (5,5 milhões de pessoas em 2012), assim como noutros países pobres, o acesso à diálise é muito limitado – o que obrigou à procura de novas soluções; por isso os transplantes entre seropositivos sul-africanos são uma realidade desde 2008 (antes não podiam ser dadores de órgãos, nem sequer receber um órgão saudável).
Além do mais, a lei agora revogada nos EUA era considerada discriminatória, pois excluía os órgãos infectados com o VIH, mas nada dizia, por exemplo, sobre o uso de órgãos com o vírus da hepatite C.
“O VIH não pode ser visto como uma doença diferente das outras, os princípios a aplicar devem ser iguais aos das outras doenças virais”, considera Arnaldo Figueiredo, médico-cirurgião do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Acrescenta que em Portugal os transplantes entre infectados com hepatite C são possíveis, aliás, tal como nos EUA.
Os receios
Um infectado com VIH tem de enfrentar alguns riscos. Num transplante de um órgão saudável, os imunossupressores dados a uma pessoa já imunodeprimida pelo VIH, para reduzir o risco de rejeição, podem potenciar doenças que se aproveitem de um sistema imunitário enfraquecido. Mas correr este risco pode ser a única alternativa.
Existe ainda o risco de acelerar a doença ao ser-se infectado com uma nova estirpe do vírus vinda do dador do órgão, que pode ser resistente aos anti-retrovirais ou originar uma superinfecção, resultante da combinação de infecções com diferentes estirpes do vírus.
Porém, Dorry Segev, da Faculdade de Medicina Johns Hopkins (EUA) e colegas desvalorizaram este risco, num artigo na American Journal of Transplantation, de 2011: “Há indícios de que doentes com infecções por VIH bem controladas pelas terapias anti-retrovirais têm um menor risco de desenvolver uma superinfecção.” Para esta equipa, o risco de criar um vírus mais resistente (um supervírus) é baixo, se a carga viral presente no dador também for muita baixa, devido aos tratamentos.
Já o virologista Ricardo Camacho é mais prudente. “A superinfecção faz sempre acelerar o processo de infecção”, diz este cientista do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, em Lisboa, e da Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica. “Mas [nos transplantes] não há provas de que a superinfecção possa acontecer. Nunca foi completamente estudada, porque os casos são poucos.”
Para já, há os resultados dos transplantes (de rins) entre seropositivos na África do Sul, iniciados pela equipa de Elmi Muller, do Hospital Groote Schuur, em 2008. Entre os 26 transplantes realizados, 24 tiveram sucesso, noticia a revista Nature. Ainda que estes resultados reforcem que os benefícios ultrapassam os riscos, Muller diz são necessários mais estudos para tornar estes transplantes mais seguros.
Para Ricardo Camacho, é natural que estes transplantes se façam onde há um único subtipo de VIH predominante na população. Na África do Sul, quase todos os infectados têm o subtipo C e nos EUA predomina o subtipo B. Como existem vários subtipos em Portugal, um transplante nestas condições não seria tão simples, explica.
A escassa investigação nesta área parece justificar a posição a nível europeu. “A Comissão Europeia é a favor da não utilização de órgãos de portadores de doenças transmissíveis, porque isso pode ter efeitos catastróficos no receptor”, refere Ana França, do Instituto Português do Sangue e da Transplantação, que coordena um grupo de trabalho para preparar a lei nacional da transplantação. “Nunca poderemos ter uma atitude diferente das recomendações da Comissão Europeia. Não quer dizer que, com a evolução do conhecimento, estes dadores não possam ser utilizados em situações especiais.”
Fernando Macário, que integra aquele grupo de trabalho, tem uma opinião diferente das orientações europeias e considera limitadora a actual legislação portuguesa. “É extremamente restritiva. É preferível um doente ter um órgão destes do que não ter nenhum.”
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Actualmente, o VIH/sida passou de doença terminal a crónica para quem tiver acesso a terapias anti-retrovirais. Mas apesar de viverem mais tempo, muitos seropositivos sofrem de falências renais e hepáticas, levando à diminuição da qualidade de vida ou à morte.
A doação de órgãos por seropositivos para portadores de VIH, e mesmo a investigação usando esses órgãos, era proibida nos EUA, pela Lei Nacional de Transplantes de Órgãos de 1984. E só recentemente foi aceite naquele país que os doentes infectados com o vírus pudessem receber transplantes.
Também em Portugal a possibilidade de um seropositivo receber órgãos é relativamente recente. “Há dez anos, os portadores de VIH não eram elegíveis para transplantes”, revela Fernando Macário, presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação. “[Agora o receptor] pode ser transplantado, se for portador do vírus, mas se já tiver sida não.”
Fonte alternativa de órgãos
Agora nos EUA, a Lei HOPE (HIV Organ Policy Equity Act) foi assinada pelo Presidente Barack Obama (a 22 de Novembro), depois de aprovada no Congresso. Esta lei, que revoga a de 1984, traz uma alternativa a todos os doentes – mais de 100.000 – que estão hoje em lista de espera para transplante, em particular os infectados pelo VIH, cuja mortalidade enquanto aguardam pelo transplante é superior à dos não portadores, como refere o site da HIV Medicine Association (da HIVMA), que apoia esta iniciativa.
Em Portugal, as listas são menores: cerca de 2000 doentes aguardam um transplante de rim, segundo Fernando Macário. “Para o fígado e coração não há listas de espera, têm de ser transplantados ou morrem.”
Com a nova lei, nos EUA haverá mais uma fonte de órgãos: os dadores que têm VIH. Mas isto só se tornará um procedimento comum depois de se investigarem os riscos e se definirem as normas para estes transplantes, um trabalho a fazer pelos cientistas do Departamento de Saúde dos EUA.
Desta forma, os doentes infectados poderão conseguir transplantes mais depressa, diminuindo as listas que partilham com os doentes VIH-negativos. “O alargamento dos dadores é bom para seropositivos e seronegativos. Se a prática [médica] for boa, trará ganhos para a saúde e económicos, em particular para o sistema nacional de saúde”, comenta Paula Policarpo, da direcção da Abraço, defendendo que o assunto deveria ser discutido em Portugal.
Para quem espera por um rim, a diálise é a alternativa, embora a qualidade e o tempo de vida sejam menores do que quando recebem um transplante. Porém, na África do Sul, onde um em cada cinco adultos tem o vírus da sida (5,5 milhões de pessoas em 2012), assim como noutros países pobres, o acesso à diálise é muito limitado – o que obrigou à procura de novas soluções; por isso os transplantes entre seropositivos sul-africanos são uma realidade desde 2008 (antes não podiam ser dadores de órgãos, nem sequer receber um órgão saudável).
Além do mais, a lei agora revogada nos EUA era considerada discriminatória, pois excluía os órgãos infectados com o VIH, mas nada dizia, por exemplo, sobre o uso de órgãos com o vírus da hepatite C.
“O VIH não pode ser visto como uma doença diferente das outras, os princípios a aplicar devem ser iguais aos das outras doenças virais”, considera Arnaldo Figueiredo, médico-cirurgião do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Acrescenta que em Portugal os transplantes entre infectados com hepatite C são possíveis, aliás, tal como nos EUA.
Os receios
Um infectado com VIH tem de enfrentar alguns riscos. Num transplante de um órgão saudável, os imunossupressores dados a uma pessoa já imunodeprimida pelo VIH, para reduzir o risco de rejeição, podem potenciar doenças que se aproveitem de um sistema imunitário enfraquecido. Mas correr este risco pode ser a única alternativa.
Existe ainda o risco de acelerar a doença ao ser-se infectado com uma nova estirpe do vírus vinda do dador do órgão, que pode ser resistente aos anti-retrovirais ou originar uma superinfecção, resultante da combinação de infecções com diferentes estirpes do vírus.
Porém, Dorry Segev, da Faculdade de Medicina Johns Hopkins (EUA) e colegas desvalorizaram este risco, num artigo na American Journal of Transplantation, de 2011: “Há indícios de que doentes com infecções por VIH bem controladas pelas terapias anti-retrovirais têm um menor risco de desenvolver uma superinfecção.” Para esta equipa, o risco de criar um vírus mais resistente (um supervírus) é baixo, se a carga viral presente no dador também for muita baixa, devido aos tratamentos.
Já o virologista Ricardo Camacho é mais prudente. “A superinfecção faz sempre acelerar o processo de infecção”, diz este cientista do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, em Lisboa, e da Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica. “Mas [nos transplantes] não há provas de que a superinfecção possa acontecer. Nunca foi completamente estudada, porque os casos são poucos.”
Para já, há os resultados dos transplantes (de rins) entre seropositivos na África do Sul, iniciados pela equipa de Elmi Muller, do Hospital Groote Schuur, em 2008. Entre os 26 transplantes realizados, 24 tiveram sucesso, noticia a revista Nature. Ainda que estes resultados reforcem que os benefícios ultrapassam os riscos, Muller diz são necessários mais estudos para tornar estes transplantes mais seguros.
Para Ricardo Camacho, é natural que estes transplantes se façam onde há um único subtipo de VIH predominante na população. Na África do Sul, quase todos os infectados têm o subtipo C e nos EUA predomina o subtipo B. Como existem vários subtipos em Portugal, um transplante nestas condições não seria tão simples, explica.
A escassa investigação nesta área parece justificar a posição a nível europeu. “A Comissão Europeia é a favor da não utilização de órgãos de portadores de doenças transmissíveis, porque isso pode ter efeitos catastróficos no receptor”, refere Ana França, do Instituto Português do Sangue e da Transplantação, que coordena um grupo de trabalho para preparar a lei nacional da transplantação. “Nunca poderemos ter uma atitude diferente das recomendações da Comissão Europeia. Não quer dizer que, com a evolução do conhecimento, estes dadores não possam ser utilizados em situações especiais.”
Fernando Macário, que integra aquele grupo de trabalho, tem uma opinião diferente das orientações europeias e considera limitadora a actual legislação portuguesa. “É extremamente restritiva. É preferível um doente ter um órgão destes do que não ter nenhum.”