A lei das 40 horas na função pública ou de como o activismo judicial pode abrir uma caixa de Pandora
Qualquer jurista imediatamente aí reconhecerá o sentido normativo claro e inequívoco de não se permitir qualquer derrogação a essa imposição, tanto por lei como por anterior ou posterior acordo negociado com os trabalhadores.
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Qualquer jurista imediatamente aí reconhecerá o sentido normativo claro e inequívoco de não se permitir qualquer derrogação a essa imposição, tanto por lei como por anterior ou posterior acordo negociado com os trabalhadores.
Acontece que, com esse sentido, a norma era obviamente inconstitucional, seja por violação da igualdade (na comparação com o regime de horário bem mais favorável do sector privado), seja por violação do direito à retribuição, do direito ao repouso e, na opinião de alguns juízes do Tribunal Constitucional, também por violação do direito à contratação colectiva. Como no melhor pano cai a nódoa e como a tentação do activismo seduz mesmo os tribunais mais contidos, o Tribunal Constitucional resolveu então substituir-se ao legislador e, para salvar a lei de nova e irremediável sentença de inconstitucionalidade, inventou uma interpretação jurídica segundo a qual acordos de regulamentação colectiva poderiam posteriormente, contra o expressamente disposto e querido pelo legislador, estabelecer horários mais reduzidos. Parafraseando, com a devida vénia, um comentário recente de um prestigiado jurista português, dir-se-ia que em cem juízes constitucionais não mais de seis teriam acesso a uma tal imaginação e criatividade interpretativa; sucede que, por coincidência, ocorreu estarem esses seis juízes no Tribunal Constitucional e terem contribuído para a formação da maioria necessária para aprovar o acórdão.
As consequências deste inesperado activismo em que os juízes não se limitam a controlar a eventual inconstitucionalidade das decisões do legislador, mas se arrogam o poder de o corrigir e de fazer eles próprios a lei, não são, todavia, controláveis pelo Tribunal Constitucional. Ao abrigo desta interpretação criativa, associações sindicais e entidades empregadoras públicas podem agora negociar horários de trabalho mais favoráveis. Não é difícil prever que nas regiões autónomas, nas autarquias, nos sectores em que os trabalhadores têm mais capacidade reivindicativa e peso negocial, o horário das 35 horas voltará a vigorar, todavia a custo da luta laboral, da conflitualidade e da inevitável desigualdade, não apenas entre trabalhadores da função pública e do sector privado, mas também, e sem qualquer justificação material, dentro da própria função pública.
A lei que a Assembleia da República tinha aprovado era inconstitucional, nada tinha a ver com preocupações de equidade, mas tinha uma racionalidade própria, se bem que orientada exclusivamente, é certo, pela inconfessada intenção de reduzir a despesa com o pagamento das horas extraordinárias (o que, de resto, constitui a mais eloquente confissão de que não há trabalhadores a mais na função pública, pois, de outro modo, o trabalho extraordinário não seria necessário ou não teria peso significativo no montante da despesa). O Tribunal Constitucional salvou o Governo de nova declaração de inconstitucionalidade, mas com o custo inerente de dissipar qualquer laivo de racionalidade na alteração legislativa em causa.
Paradoxalmente, no mesmo dia em que o Tribunal Constitucional decidiu assim, aprovou um outro acórdão, relatado curiosamente pelo mesmo juiz, em que se considerou inconstitucional o decreto legislativo regional (dos Açores) que fixava o horário dos trabalhadores da Administração Pública Regional em 35 horas. Pois afinal, aquilo que o Tribunal Constitucional não admitiu que a Assembleia Legislativa Regional fizesse através de lei permite, no mesmo dia, que o governo regional venha a fazer sem qualquer dificuldade através de acordo negocial…