Revolta crescente em Angola após repressão policial no cortejo fúnebre de opositor
Os sinais de repressão sucedem-se em manifestações contidas, mas frequentes. A morte de um opositor, pela guarda presidencial, não refreou os ânimos nem provocou o medo. Pelo contrário.
No cortejo fúnebre de Manuel de Carvalho, esta quarta-feira, um forte aparato de polícia armada, assistida por tanques na rua e um helicóptero no ar, e que recorreu a gás lacrimogéneo, interrompeu a marcha organizada em homenagem à vítima.
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No cortejo fúnebre de Manuel de Carvalho, esta quarta-feira, um forte aparato de polícia armada, assistida por tanques na rua e um helicóptero no ar, e que recorreu a gás lacrimogéneo, interrompeu a marcha organizada em homenagem à vítima.
“Era uma multidão”, disse ao PÚBLICO Abel Chivukuvuku, líder da Convergência Ampla de Salvação de Angola (CASA-CE), segundo maior partido da oposição a que pertencia Manuel de Carvalho. “Mas essa multidão foi obrigada a dividir-se em pequenos grupos para chegar ao cemitério, alguns a pé, outros de autocarro.” Mas não desistiram, diz.
“O regime não está a perceber. As pessoas estão a perder o medo”, acrescenta. “Quanto maior é a repressão, mais as pessoas saem à rua. O regime ou cai ou muda.”
Lúcia da Silveira, activista premiada de direitos humanos e directora da Associação Justiça, Paz e Democracia (AJPD), criada em Angola em 2000 em defesa dos direitos cívicos e políticos, também acredita que “as pessoas vão continuar a manifestar-se” mesmo perante sinais de crescente repressão. “As pessoas estão preparadas”, diz, mesmo que isso signifique repressão, tortura, detenções. E morte? “Sim. Pior do que isto, já não ficamos”, insiste. “No dia da manifestação [sábado], houve muita repressão”, nota, e isso não dissuadiu activistas e vários sectores da sociedade civil de se juntarem aos políticos de todos os partidos da oposição (parlamentar e extraparlamentar) na homenagem a Manuel Hilberto “Ganga”.
Lúcia Silveira distingue “as pessoas conscientes, que fazem uma análise completa da situação e não concordam com o que se passa”, e aquelas que são favorecidas por ligações ao Governo ou ao MPLA. A activista foca-se no primeiro grupo para dizer que “as pessoas estão prontas para o processo que virá”. No encontro entre uns e outros, “temos de chegar a um resultado e nós esperamos que o resultado seja o respeito pelos direitos humanos e a possibilidade de as pessoas se manifestarem”, como consagra a Constituição.
“As pessoas sabem que chegou o momento do ‘agora ou nunca’”, acrescenta, da mesma forma que a oposição está consciente de que “arrisca ter novos mártires”, como afirmou Chivukuvuku, na terça-feira, ou que não existe alternativa para os opositores “a não ser ir para as ruas”, como disse no mesmo dia Isaías Samakuva, líder da UNITA.
As manifestações de activistas assumiram uma dimensão política, com o protesto convocado no sábado passado por este partido, o principal da oposição, que criticou o “uso excessivo da força” pela polícia. A mesma polícia que voltou a irromper, nesta quarta-feira, no cortejo fúnebre de Manuel Hilberto “Ganga” e o forçou a dispersar.
Alguns activistas marchavam empunhando faixas com palavras de ordem contra o Presidente, levando os políticos a pedir contenção, para evitar referências ao MPLA, partido no poder, ou ao Presidente da República, descreve a Lusa.
"Morto à queima-roupa"
“Fomos surpreendidos por elementos da Polícia de Intervenção Rápida fortemente armados e que chegaram a lançar gás lacrimogéneo sobre as pessoas que participavam na marcha”, contou ao PÚBLICO Manuel Fernandes, vice-presidente da CASA-CE. “É uma vergonha que nem um defunto possa ser enterrado com paz e tranquilidade.”
Manuel Hilberto “Ganga”, de 32 anos, era engenheiro de Construção Civil, mas trabalhava como professor do 2.º ciclo. Deixa um filho de dois anos e uma noiva. Na estrutura do partido de Chivukuvuku, era director nacional para a mobilização.
Na noite de sexta-feira para sábado, Manuel Hilberto de Carvalho, conhecido por “Ganga”, colava cartazes anti-Governo, com mais sete activistas, quando foram abordados por elementos da guarda presidencial e levados em duas viaturas. Durante o caminho, os guardas proferiram “palavras agressivas e ameaças de morte”, relata Manuel Fernandes com base nos testemunhos de um dos detidos entretanto libertado. À chegada junto ao perímetro do Palácio Presidencial, Manuel Hilberto desceu “para tentar pôr-se em fuga” e foi imediatamente abatido.
“Dois elementos da guarda presidencial dispararam à queima-roupa”, acrescenta Manuel Fernandes. E o opositor “teve morte imediata no local”. Os restantes activistas ficaram detidos e foram depois entregues à polícia que, no dia seguinte, confirmou a morte de Manuel Hilberto por elementos da guarda do Presidente Eduardo dos Santos.
A Amnistia Internacional condenou esta morte e a Omunga, associação da sociedade civil angolana, exigiu “um pronunciamento do Presidente da República sobre o assassínio de Manuel de Carvalho”. A Human Rights Watch pede uma investigação, como antes pediu explicações sobre a detenção de activistas do Movimento Revolucionário – Manuel Nito Alves, Adolfo Campos ou Emiliano Catumbela – por difamarem o Presidente ou organizarem manifestações pacíficas contra o Governo.
Nessas acções, eram muitas vezes lembrados outros dois activistas desaparecidos em 2012, António Alves Kamulingue, de 30 anos, e Isaías Cassule, de 34. Foi a revelação (não desmentida) do seu rapto, tortura e assassínio por elementos das forças de segurança (com base num documento interno do Ministério do Interior divulgado por um site independente de notícias) que motivou as iniciativas políticas do fim-de-semana: o protesto com cartazes da CASA-CE e a manifestação convocada pela UNITA.
Ambos reprimidos e ambos sinal, para Chivukuvu e Lúcia Silveira, de que “a situação está muito pior hoje do que estava há poucos anos”. “O endurecimento do regime deve-se à impopularidade do regime”, conclui Chivukuvuku. “E isso é um sinal da sua fraqueza.”