O filme que devia ser visto por todos
A História do Cinema tal como contada pelo crítico e divulgador Mark Cousins é o exacto oposto de um manual rarefeito e sisudo sobre a história da 7ª arte: é uma obra que celebra o que o cinema é e como lá chegou, que o faz a pensar no espectador que pouco ou nada conhece da sua história, e o faz desrespeitando alegremente as gavetas de cânones e nacionalidades. Para Cousins, cinema é cinema; não é o tamanho do écrã onde o vemos ou a qualidade da imagem (alguns dos excertos que ele inclui estão aliás bastante deteriorados) que o define, mas sim o jogo de ideias e imagens que propõe. E mesmo que seja no escurinho da sala que melhor o vivemos, não é por o vermos no sofá lá de casa que o rosto da Falconetti na Joana d'Arc de Dreyer nos deixa de comover.
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A História do Cinema tal como contada pelo crítico e divulgador Mark Cousins é o exacto oposto de um manual rarefeito e sisudo sobre a história da 7ª arte: é uma obra que celebra o que o cinema é e como lá chegou, que o faz a pensar no espectador que pouco ou nada conhece da sua história, e o faz desrespeitando alegremente as gavetas de cânones e nacionalidades. Para Cousins, cinema é cinema; não é o tamanho do écrã onde o vemos ou a qualidade da imagem (alguns dos excertos que ele inclui estão aliás bastante deteriorados) que o define, mas sim o jogo de ideias e imagens que propõe. E mesmo que seja no escurinho da sala que melhor o vivemos, não é por o vermos no sofá lá de casa que o rosto da Falconetti na Joana d'Arc de Dreyer nos deixa de comover.
No mundo real, contudo, aquele em que é difícil escapar às codificações e às gavetas impostas pela economia e negócio mercantil em que o cinema (também) se tornou ao longo dos anos, um objecto “fora de série” como este torna-se num bico de obra. A dimensão simultaneamente sedutora e informativa de A História do Cinema é uma “introdução” às suas glórias, “porta de entrada” para os recém-iniciados. O entusiasmo contagiante e a pedagogia sem esforço da viagem exige pensar fora da caixa; as suas 15 horas de duração desafiam as convenções da exibição comercial, dão-lhe uma dimensão de evento único e irrepetível - como o foram em tempos os grandes ciclos da Cinemateca ou da RTP-2, congregando à sua volta toda uma população de cinéfilos “em construção” que não tinham acesso regular às grandes obras.
Mas os cinéfilos em construção de hoje já não se encontram limitados aos ciclos ou às sessões especiais, que em qualquer caso já deixaram de ser irrepetíveis. Os festivais, o DVD, o video-on-demand ou o streaming fizeram explodir as limitações da exibição comercial; um investigador determinado pelos recantos da internet não terá problemas em encontrar este DVD ou aquela gravação da TV de um objecto raro algures num qualquer canto do mundo.
Daí que a ideia da distribuidora Midas Filmes de acompanhar a edição em DVD do documentário de Mark Cousins com uma exibição comercial em sala (oito sessões de duas horas ao longo de uma semana, terminando com um debate inspirado pelo filme) traia um idealismo quase quixotesco, até um tudo nada vão, de “serviço público”. Esse idealismo é algo a que a distribuidora nos habituou, através do lançamento em DVD das História(s) do Cinema de Godard, ou de obras históricas de Glauber Rocha, Jean Rouch, Jacques Demy, Claude Lanzmann, Victor Erice ou Béla Tarr.
Mas fará sentido, num país que – como muito se falou esta semana – não consome cultura? Em que três quartos da população não vai ao cinema? Em que as elites culturais se refugiam no seu próprio casulo? Em que as políticas governamentais reduzem tudo puramente a questões de financiamento e retorno no investimento? Em que os cidadãos protestam contra a demolição do Odeon, o fecho do King ou a inactividade do Batalha apesar de não os frequentarem enquanto estiveram abertos? Num país como este, exibir A História do Cinema em oito sessões numa sala de cem espectadores em Lisboa pode ser a única maneira de o mostrar em sala, mas fará sequer sentido de um ponto de vista que não seja o do princípio? E até gostávamos de pensar que sim, mas...
Mesmo nos velhos tempos em que havia um outro consumo de cultura, A História do Cinema dificilmente teria chegado ao circuito comercial. Ter-se-ia ficado por exibições especiais (na Gulbenkian ou na Cinemateca) ou, sobretudo, por uma passagem televisiva que, isso sim, seria verdadeiro “serviço público”. Sem vergonha nenhuma, porque tem sido no pequeno écrã que o documentário de Mark Cousins mais tem vivido por todo esse mundo. E a vontade que ele cria de ir à procura daquilo que não conhecíamos ou que nunca vimos, o abrir os olhos para tudo o que existe para lá das estreias semanalmente escoadas pelas salas, é a própria definição do serviço público que a televisão deveria ser (e que, em Portugal, não é de todo, mas isso é outra conversa).
A História do Cinema mereceria ser visto por toda a gente, em todo o país, e seria provavelmente mais eficaz do que um qualquer Plano Nacional Educativo de Cinema. Mostrá-lo em sala é reduzi-lo ao mesmo “gueto” cinéfilo do qual Mark Cousins quis que ele escapasse; lançá-lo em DVD é o pequeno passo, mas o passo-chave, para torná-lo visível a todos.