Dez anos a falar sobre a memória e o teatro como gesto de evocação
By Heart, de Tiago Rodrigues/Mundo Perfeito, 23 Novembro, 21h30, Teatro Maria Matos, lotação esgotada, 3,5 estrelas. Paraíso 1, espectáculo de Mala Voadora/Association Arsène, encenação de Jorge Andrade, 26 Novembro, 21h30, meia sala, Teatro Maria Matos. Até dia 30, 3 estrelas.
Percebemos que foram desenvolvendo um trabalho interrogativo sobre a possibilidade de construção de um teatro onde a palavra, mais do que evocada, é convocada como construtor potencial de imagens. Imagens que, precisamente, desenham universos e, por isso, activam uma relação de verosimilhança e proximidade que é, hoje, comummente definida como pós-dramática.
Não terá sido certamente intencional mas as peças aproximam-se mais do que possivelmente imaginavam. Paraíso 1 é um ensaio sobre a possibilidade de descrição de um espaço utópico, aqui genericamente intitulado “paraíso”, espaço em branco, como a tela branca que vai surgindo inusitadamente durante o espectáculo. “A representação de uma paisagem obedece a regras específicas”, diz-se a dado momento, defendendo que a imagem perfeita, logo, a sua descrição, não passa de uma idealização, de uma imagem, portanto de uma convocação da memória.
By Heart sugere que o livro, ou a forma escrita e o que a sua organização sequencial promove, é o modelo mais aproximado de um mundo reconhecível. A escrita constitui-se assim como mecanismo operativo que fixa a palavra mas não lhe corresponde, apenas se aproxima da sua liberdade. Mas se em By Heart a ideia de mundo nos parece escapar pelo modo como a realidade vai invadindo e moldando a narrativa, fruto de um exercício de deificação da palavra como reduto último da liberdade, porque da memória e do pensamento, em Paraíso 1 a inversão do ponto de origem permite especular sobre em que se constitui essa mesma liberdade. Aqui, é o espaço e não o texto, ou seja, o lugar e não o modo, que surge como motor de uma acção ao propor que a sua enunciação seja, em si mesma, uma acção.
Nesse sentido, a estrutura auto-referencial que vai sendo construída, alicerçada que está na memória, sublinha que é o acto de enunciação, e não o de descrição, que define o tempo da própria acção. Ou seja, a sua vida. É um princípio semelhante ao que estrutura By Heart a partir de uma citação do filósofo George Steiner: “Assim que 10 pessoas sabem um poema de cor, não há nada que a KGB, a CIA ou a Gestapo possam fazer. Esse poema vai sobreviver”. O exemplo escolhido é o soneto 30, de William Shakespeare: “Quando em meu mudo e doce pensamento,/ chamo à lembrança as coisas que passaram.” O que se propõe é, afinal, que o que quer que resulte da descrição seja, em si mesmo, uma acção.
A presença dos espectadores no palco de By Heart, convidados a memorizar o poema, sugere que a ausência de uma identidade própria constitui a base de uma nova organização social, onde, tal como dizem as personagens sem biografia em Paraíso 1, nos vemos no reflexo do lago “como se estivéssemos no centro do que acabámos de descrever”.
Os espectáculos são, naturalmente, mais do que este mecanismo dialéctico entre texto e imagem. Mas não deixam de sofrer os dois de um mesmo dilema: a dificuldade de tomarem uma posição relativamente ao material escolhido e, inclusivamente, escolherem entre a força da palavra e a fraqueza da imagem. Em By Heart a cozedura de citações com as vidas de vários escritores, e a do próprio autor Tiago Rodrigues, na sua relação com eles, propõe uma normatividade narrativa que só peca por ser menos ambiciosa, como acontecera em Três Dedos Abaixo do Joelho. Em Paraíso 1 a profusão de efeitos sonoros e visuais parece contradizer um diálogo sobre o que de artificial existe no acto de evocação, como já haviam feito em Desempacotando a Minha Biblioteca.
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Percebemos que foram desenvolvendo um trabalho interrogativo sobre a possibilidade de construção de um teatro onde a palavra, mais do que evocada, é convocada como construtor potencial de imagens. Imagens que, precisamente, desenham universos e, por isso, activam uma relação de verosimilhança e proximidade que é, hoje, comummente definida como pós-dramática.
Não terá sido certamente intencional mas as peças aproximam-se mais do que possivelmente imaginavam. Paraíso 1 é um ensaio sobre a possibilidade de descrição de um espaço utópico, aqui genericamente intitulado “paraíso”, espaço em branco, como a tela branca que vai surgindo inusitadamente durante o espectáculo. “A representação de uma paisagem obedece a regras específicas”, diz-se a dado momento, defendendo que a imagem perfeita, logo, a sua descrição, não passa de uma idealização, de uma imagem, portanto de uma convocação da memória.
By Heart sugere que o livro, ou a forma escrita e o que a sua organização sequencial promove, é o modelo mais aproximado de um mundo reconhecível. A escrita constitui-se assim como mecanismo operativo que fixa a palavra mas não lhe corresponde, apenas se aproxima da sua liberdade. Mas se em By Heart a ideia de mundo nos parece escapar pelo modo como a realidade vai invadindo e moldando a narrativa, fruto de um exercício de deificação da palavra como reduto último da liberdade, porque da memória e do pensamento, em Paraíso 1 a inversão do ponto de origem permite especular sobre em que se constitui essa mesma liberdade. Aqui, é o espaço e não o texto, ou seja, o lugar e não o modo, que surge como motor de uma acção ao propor que a sua enunciação seja, em si mesma, uma acção.
Nesse sentido, a estrutura auto-referencial que vai sendo construída, alicerçada que está na memória, sublinha que é o acto de enunciação, e não o de descrição, que define o tempo da própria acção. Ou seja, a sua vida. É um princípio semelhante ao que estrutura By Heart a partir de uma citação do filósofo George Steiner: “Assim que 10 pessoas sabem um poema de cor, não há nada que a KGB, a CIA ou a Gestapo possam fazer. Esse poema vai sobreviver”. O exemplo escolhido é o soneto 30, de William Shakespeare: “Quando em meu mudo e doce pensamento,/ chamo à lembrança as coisas que passaram.” O que se propõe é, afinal, que o que quer que resulte da descrição seja, em si mesmo, uma acção.
A presença dos espectadores no palco de By Heart, convidados a memorizar o poema, sugere que a ausência de uma identidade própria constitui a base de uma nova organização social, onde, tal como dizem as personagens sem biografia em Paraíso 1, nos vemos no reflexo do lago “como se estivéssemos no centro do que acabámos de descrever”.
Os espectáculos são, naturalmente, mais do que este mecanismo dialéctico entre texto e imagem. Mas não deixam de sofrer os dois de um mesmo dilema: a dificuldade de tomarem uma posição relativamente ao material escolhido e, inclusivamente, escolherem entre a força da palavra e a fraqueza da imagem. Em By Heart a cozedura de citações com as vidas de vários escritores, e a do próprio autor Tiago Rodrigues, na sua relação com eles, propõe uma normatividade narrativa que só peca por ser menos ambiciosa, como acontecera em Três Dedos Abaixo do Joelho. Em Paraíso 1 a profusão de efeitos sonoros e visuais parece contradizer um diálogo sobre o que de artificial existe no acto de evocação, como já haviam feito em Desempacotando a Minha Biblioteca.