“Hã?”: uma palavrinha curta, simples e quase igual em todas as línguas
Línguas de todo o mundo possuem uma palavra muito parecida com a portuguesa “hã?”, que usamos para assinalar rapidamente, no fogo da conversa, que não percebemos o que acabou de ser dito.
Mark Dingemanse e colegas, do Instituto Max Planck de Nijmegen (Holanda), estudaram as variantes da palavra que pronunciamos “hã?” em dezenas de línguas de todo o mundo. E concluem que se trata de uma palavra universal.
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Mark Dingemanse e colegas, do Instituto Max Planck de Nijmegen (Holanda), estudaram as variantes da palavra que pronunciamos “hã?” em dezenas de línguas de todo o mundo. E concluem que se trata de uma palavra universal.
Ora, isso é excepcional, porque o que normalmente acontece é que as palavras mais comuns são totalmente diferentes de uma língua para outra. É só pensar que a palavra “cão” se diz “perro” em espanhol, “chien” em francês e “dog” em inglês. O animal que representa é o mesmo, mas o som utilizado para o designar parece ser, no fundo, totalmente aleatório.
Também existem outras palavras, desta vez aleatoriamente diferentes de língua para língua, que servem o mesmo propósito que “hã?”. Por exemplo, “como?”, “diga?, “sorry?”, “pardon?” assinalam igualmente depressa que surgiu um hiato na comunicação oral. Mas “hã?” tem um estatuto tão modesto que por vezes nem é assinalada nos dicionários… Será que é mesmo uma palavra?
Os cientistas analisaram 195 gravações em dez línguas, feitas por eles no terreno um pouco por todo o mundo, de conversas em que uma palavra do género de “hã?” era susceptível de surgir devido a uma falha de compreensão: siwu (falada no Gana), italiano, mandarim, espanhol, cha’palla (falada no Equador), islandês, lao (falada no Laos, Tailândia e Camboja), holandês e murrinh-patha (uma língua aborígene da Austrália). E para terem a certeza de que as semelhanças detectadas não dependiam dessa selecção de línguas, também localizaram exemplos da interjeição em causa em mais 21 idiomas, entre os quais o zapoteca, húngaro, inglês, francês, japonês, coreano, alemão, norueguês, quicongo (uma língua africana) ou russo. Curiosamente, o português, com o seu expressivo “hã?” não faz parte desta lista.
Seja como for, não importa quão diversas eram as línguas: em todas elas os cientistas encontraram sistematicamente o que procuravam: algo em forma de pergunta, parecido com “hã?”. Já agora, a sua transcrição dá qualquer coisa como “ã?” em siwu, “?a!” em cha’palla, “a?” em mandarim, “he?” em holandês – para citar apenas estes exemplos.
“Hã?” e as suas congéneres são tão excepcionais na sua uniformidade que os cientistas quiseram mostrar que são palavras “a sério” – e não apenas “ruídos” inatos, tais como os espirros ou o choro. Uma cuidada análise fonética revelou então, explica um comunicado do Instituto Max Planck, que elas são de facto palavras porque precisam de ser aprendidas em cada língua. A prova disso, argumentam os autores, é que os nossos “primos” mais próximos, os chimpanzés, não emitem nenhum som desse género, os bebés também não usam essas interjeições e que as crianças só começam a usar bem o “hã?” ou afins mais ou menos a partir dos cinco anos, quando já dominam as principais estruturas gramaticais da sua língua. Para os autores, só faz sentido ter uma palavra destas, tão especializada na clarificação da compreensão, quando já existe um sistema de comunicação como a linguagem.
Mas por que será esta palavra tão universal, tão semelhante em todo o lado? Porque, tal como os organismos vivos, a sua formação foi sujeita a uma espécie de pressão evolutiva, especulam os cientistas. Segundo eles, trata-se de uma forma linguística de “evolução convergente” – um fenómeno mais conhecido dos biólogos da evolução e em que duas espécies distintas, submetidas a condições ambientais semelhantes, desenvolvem traços semelhantes. Ora, é um facto, argumentam, que os constrangimentos da comunicação humana são os mesmos da Europa à Ásia, da Austrália às Américas, do Árctico aos mares do Sul. Seja onde for no mundo, a pressão sobre os seres humanos no sentido de não perderem o fio das conversas, mesmo das mais rápidas – pois isso pode ter consequências nefastas –, é igualmente intensa.
É a primeira vez, salientam os cientistas, que é assim observado um claro efeito de “ecologia conversacional” sobre a forma específica de uma expressão linguística. E logo com uma palavra aparentemente tão modesta como “hã?”, acrescentamos nós.