A cultura continua a empobrecer. Até quando?
O sector da Cultura, que já enfrentava uma angustiante situação de carência, ficou ainda mais minguado e sem soluções.
É certo que a génese da crise irlandesa foi diferente da nossa, mas também é certo que andou pelas ruas da amargura, que viu milhares dos seus melhores a emigrarem para o Reino Unido, para os Estados Unidos, para a Austrália e para a Nova Zelândia e que assistiu impotente ao encerramento de centenas de estabelecimentos, só em Dublin, alguns dos quais livrarias. Eu estive lá e vi.<_o3a_p>
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É certo que a génese da crise irlandesa foi diferente da nossa, mas também é certo que andou pelas ruas da amargura, que viu milhares dos seus melhores a emigrarem para o Reino Unido, para os Estados Unidos, para a Austrália e para a Nova Zelândia e que assistiu impotente ao encerramento de centenas de estabelecimentos, só em Dublin, alguns dos quais livrarias. Eu estive lá e vi.<_o3a_p>
Mas já que estamos a usar a República da Irlanda como legítimo termo de comparação, é justo que se refira que, enquanto em Portugal o sector da Cultura entrou numa longa agonia por falta de apoio ao trabalho cultural e artístico, com um ministério a ser despromovido a Secretaria de Estado (o que tem uma relevância negativa muito maior do que à primeira vista pode pensar-se, pois retirou à Cultura peso, representatividade e capacidade de afirmação no seio do Conselho de Ministros), a República da Irlanda deu importância estratégica a este sector, promovendo-o ao estatuto de ministério, que nunca antes tivera, e nomeando embaixadores culturais como o conhecido actor Gabriel Byrne que, entre outras coisas, pediu aos jovens criadores e artistas para não abandonarem o seu país, porque a recuperação ia depender deles e do seu talento. E esse apelo, que também partiu de Collin Farrell e de outros irlandeses, foi ouvido e levado em conta por muitos.<_o3a_p>
Talvez por isso, enquanto se preparava o Orçamento de Estado da Irlanda para 2014, houve autores e artistas que apelaram à criação de uma frente unida com o ministro que tutela a cultura e as artes. Por cá alguém se apercebeu de que tivesse acontecido algo semelhante?<_o3a_p>
O que aconteceu foi bem diferente e em larga medida previsível. O secretário de Estado disse na Assembleia da República que o Orçamento para a Cultura era o “possível” e não o “desejável” e que iria sofrer um corte de cerca de 15 milhões de euros, comparativamente com o de 2013. A oposição não tardou a contestar estes números e o PS, em particular, apontou para cortes na ordem dos 26 milhões de euros. O PCP, por seu turno, denunciou o facto de que apenas 6,5 por cento do Orçamento se destina, de facto, à Cultura, indo o resto ser consumido em “gastos de estrutura”. Deste modo, o sector da Cultura, que já enfrentava uma angustiante situação de carência, ficou ainda mais minguado e sem soluções, apesar de o secretário de Estado ter anunciado uma plataforma “Educação e Cultura”. Se esta parceria tiver a mesma orientação que teve uma recente acção do Ministério da Educação em relação aos “livros oficiais”, como acontecia noutros tempos de sombria memória, é de temer o pior.<_o3a_p>
O que não pode deixar de ser notado é esta contradição: responsáveis políticos nacionais e estrangeiros reconhecem que a Cultura tem condições objectivas para criar riqueza, emprego e reforçar a identidade nacional. Porém, depois cortam-lhe grosseiramente o que ainda lhe restava das asas com que tentava elevar-se um pouco acima da linha de água. Afinal no que ficamos? A França reconheceu recentemente que as indústrias culturais, gerando mais de um milhão de postos de trabalho, empregam mais gente que a indústria automóvel que, naquele país, já conheceu melhores dias. Por cá, as chamadas indústrias culturais também empregam muito mais gente do que, levianamente, se pode pensar, mesmo contando com os que já fizeram as malas e partiram. Encontrei alguns a apanharem aviões e outros a trabalharem em estabelecimentos culturais e restaurantes à espera de “guia de marcha” para países como a Austrália. Alguma vez os veremos voltar?<_o3a_p>
Não há retóricas auto-justificativas que nos aliviem desta preocupação e desta mágoa. E não faltam talento, criatividade e energia para se apostar em quem fez da Cultura uma forma de vida e de resistência moral e cívica. Só que não é com estes valores irrisórios ou com parcerias sonantes que a situação melhora e o ciclo se inverte. Este governo ficará na história da democracia, com o 25 de Abril quase a celebrar 40 anos de vida, como o que pior fez à Cultura em Portugal. E danos destes, que são tudo menos colaterais, levam gerações a ser reparados, como todos tristemente sabemos.
Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores<_o3a_p>