A incrível história de Lonnie Holley

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Lonnie Holley estreou-se nos discos aos 62 anos. Mas, na sua cabeça repleta de histórias em conflito, tem sido músico a vida toda. Canta desde que se lembra, viveu sempre rodeado de sons — do zumbido ininterrupto do parque de diversões estadual à whiskey house onde cresceu e havia sempre uma jukebox a cuspir músicas avulsas ou ao drive-in onde começou a trabalhar com cinco anos. Os discos simplesmente demoraram a apanhar-lhe o passo e descobrir-lhe o paradeiro. Tarefa complicada, uma vez que a história de vida de Lonnie Holley é coisa para desafiar a elasticidade da realidade e colocar em sentido a ficção.

A sua carreira artística terá começado em 1979. Quase com 30 anos, e após uma das irmãs ter perdido dois filhos num incêndio, entregou-se a um obsessivo luto pelas crianças que se estendeu por um mês. Quando terminou, tinha amontoado mais de 100 peças esculpidas nos bocados de grés que abundavam junto à casa de outra irmã. Não sabia o que chamar a tudo aquilo, nem sequer que destino dar àquele refluxo de dor. Depois de um longo período de hesitação, carregou algumas peças numa carrinha e dirigiu-se até ao Museu de Birmingham, Alabama, cidade onde nasceu em 1950. “Não fazia a mínima ideia do que levava e nem sabia o que era arte”, confessa numa chamada telefónica em que os momentos de discurso lúcido parecem permanentemente ameaçados por divagações a que é difícil achar o encadeamento.

A arte, qualquer conceito de arte, nunca lhe tinha sido explicada. Lonnie Holley, um entre mais de uma vintena de irmãos, foi “emprestado” a uma senhora a que a mãe recorria para ajudar no aleitamento fisicamente intolerável de tantos filhos, acabando aquela por fugir com a criança de ano e meio, atravessando o país em feiras e parques até vender Lonnie aos proprietários de uma whiskey house. Foi sob a guarda desse casal que Lonnie começou a trabalhar aos cinco anos, recolhendo o lixo num cinema drive-in. O gesto, de certa forma, seria transportado para a sua criação — na altura, os restos de comida matavam-lhe a fome, agora os restos das vidas dos outros abastecem-lhe as obras.

A infância errática, no entanto, levá-lo-ia a conhecer vários reformatórios, a tentar fugir de quase todos, e a passar pela Alabama School for Negro Children. “Nos anos 60, por causa do movimento dos direitos civis”, lembra, “tiraram-me das ruas e meteram-me lá. Havia um recolher obrigatório e se não o respeitássemos podíamos ser presos. Como o período de espera pelo tribunal era muito longo — podia demorar semanas ou meses — e os tribunais estavam cheios enviavam-nos para a School for Negro Children”. Foi desse repositório escolar que finalmente conseguiu escapar-se para procurar a mãe. Reencontrou-a 13 anos depois, já adulto e sem se ter dado conta de ter passado por infância e adolescência.

Por isso, sem acesso a uma educação convencional, diante do director do Museu de Birmingham teve a sua primeira lição de arte. “Foi quando comecei a aprender alguma coisa, o que era o abstraccionismo, o imaginário pessoal e os materiais que juntava e podiam considerar-se arte”. Mas foram sobretudo as perguntas — “Que ideias e pensamentos estão aqui?”, “Porque cortou a peça assim?”, “Porque lhe deu esta forma, fez buracos nesta e alisou a outra parte?” — a fazê-lo perceber que as suas opções ditavam um caminho. O caminho, ainda que involuntariamente, aproximava-o da linguagem de alguma arte popular afro-americana, pelo que, passados alguns meses, Holley surgia numa exposição colectiva no Smithsonian Institute.

A repetição humana

Os dois discos de Lonnie Holley, Just Before Music e Keeping a Record of It, funcionam precisamente como uma revisitação constante de toda a sua vida. Condensam pensamentos soltos da sua peculiar observação do mundo, mas picam sistematicamente o ponto no seu passado agitado. “Em Mama’s little baby estou a falar de nós, negros americanos, não termos tido acesso a muita informação que era produzida e difundida. Estávamos a trabalhar nos campos de algodão, éramos maioritariamente escravos, e quando saíamos dessa condição era para sermos agricultores.” 

Os motes musicais, admite Holley, recriam o mesmo processo de reciclagem das artes plásticas — mas, neste caso, recuperam as temáticas predominantes das peças que foram já exibidas em locais como as Nações Unidas, os Jogos Olímpicos de Atlanta ou a Casa Branca. “A música é uma oportunidade para as pessoas ouvirem o que digo”, explica. “Como muita gente não frequenta museus, pode pegar numa música e ter contacto com aquilo que faço. E é muito importante para a sociedade que as pessoas comecem a prestar atenção.” Atenção não tanto ao improvável encontro musical de Sun Ra e Laurie Anderson a que muitas vezes soa, mas sobretudo àquilo que veicula.

Holley desembolsa dois temas para ilustrar as suas inspirações: I came to the garden alone vai atrás, ao tempo em que apanhava lixo no drive-in, mas aponta os holofotes para a repetição humana de “enterrar o lixo e achar que está tudo bem – não pode ser!”. “A natureza dá-nos tudo aquilo de que precisamos e estamos a infestar os terrenos”, brada. Em If I could save my way to freedom acorda o tema da escravatura, mas recentrando a questão na contemporaneidade: “Somos escravos do kilowatt, do poder energético. Qualquer pessoa que viva confortavelmente tem de ter aparelhos eléctricos em casa. E não devíamos aceitar isto como lei”.

Just Before Music, o novo álbum lançado pela Dust-to-Digital (notável editora da mais avisada garimpagem musical, que tem em Holley o único artista vivo do catálogo) deixa a nu o fascínio gerado pela figura de um outsider que poderia ter acabado a dormir num banco de jardim e, em vez disso, tem lugar em grandes exposições como representante da arte marginal. Para preencher os espaços vazios entre as suas canções — um misto de melodias ensaiadas a acompanhar a sua criação artesanal, da mesma maneira que os cantos de trabalho embalavam os corpos nos campos de algodão, e de improvisações captadas em estúdio — foram arregimentados Cole Alexander (dos Black Lips) e Bradford Cox (dos Deerhunter).

Só que esse estrelato indie é-lhe indiferente. O seu “céu na terra”, diz, “é ser livre, caminhar todo o dia e cantar músicas gloriosas”. Não vale a pena complicar o que sempre foi um reduto de simplicidade.

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Lonnie Holley estreou-se nos discos aos 62 anos. Mas, na sua cabeça repleta de histórias em conflito, tem sido músico a vida toda. Canta desde que se lembra, viveu sempre rodeado de sons — do zumbido ininterrupto do parque de diversões estadual à whiskey house onde cresceu e havia sempre uma jukebox a cuspir músicas avulsas ou ao drive-in onde começou a trabalhar com cinco anos. Os discos simplesmente demoraram a apanhar-lhe o passo e descobrir-lhe o paradeiro. Tarefa complicada, uma vez que a história de vida de Lonnie Holley é coisa para desafiar a elasticidade da realidade e colocar em sentido a ficção.

A sua carreira artística terá começado em 1979. Quase com 30 anos, e após uma das irmãs ter perdido dois filhos num incêndio, entregou-se a um obsessivo luto pelas crianças que se estendeu por um mês. Quando terminou, tinha amontoado mais de 100 peças esculpidas nos bocados de grés que abundavam junto à casa de outra irmã. Não sabia o que chamar a tudo aquilo, nem sequer que destino dar àquele refluxo de dor. Depois de um longo período de hesitação, carregou algumas peças numa carrinha e dirigiu-se até ao Museu de Birmingham, Alabama, cidade onde nasceu em 1950. “Não fazia a mínima ideia do que levava e nem sabia o que era arte”, confessa numa chamada telefónica em que os momentos de discurso lúcido parecem permanentemente ameaçados por divagações a que é difícil achar o encadeamento.

A arte, qualquer conceito de arte, nunca lhe tinha sido explicada. Lonnie Holley, um entre mais de uma vintena de irmãos, foi “emprestado” a uma senhora a que a mãe recorria para ajudar no aleitamento fisicamente intolerável de tantos filhos, acabando aquela por fugir com a criança de ano e meio, atravessando o país em feiras e parques até vender Lonnie aos proprietários de uma whiskey house. Foi sob a guarda desse casal que Lonnie começou a trabalhar aos cinco anos, recolhendo o lixo num cinema drive-in. O gesto, de certa forma, seria transportado para a sua criação — na altura, os restos de comida matavam-lhe a fome, agora os restos das vidas dos outros abastecem-lhe as obras.

A infância errática, no entanto, levá-lo-ia a conhecer vários reformatórios, a tentar fugir de quase todos, e a passar pela Alabama School for Negro Children. “Nos anos 60, por causa do movimento dos direitos civis”, lembra, “tiraram-me das ruas e meteram-me lá. Havia um recolher obrigatório e se não o respeitássemos podíamos ser presos. Como o período de espera pelo tribunal era muito longo — podia demorar semanas ou meses — e os tribunais estavam cheios enviavam-nos para a School for Negro Children”. Foi desse repositório escolar que finalmente conseguiu escapar-se para procurar a mãe. Reencontrou-a 13 anos depois, já adulto e sem se ter dado conta de ter passado por infância e adolescência.

Por isso, sem acesso a uma educação convencional, diante do director do Museu de Birmingham teve a sua primeira lição de arte. “Foi quando comecei a aprender alguma coisa, o que era o abstraccionismo, o imaginário pessoal e os materiais que juntava e podiam considerar-se arte”. Mas foram sobretudo as perguntas — “Que ideias e pensamentos estão aqui?”, “Porque cortou a peça assim?”, “Porque lhe deu esta forma, fez buracos nesta e alisou a outra parte?” — a fazê-lo perceber que as suas opções ditavam um caminho. O caminho, ainda que involuntariamente, aproximava-o da linguagem de alguma arte popular afro-americana, pelo que, passados alguns meses, Holley surgia numa exposição colectiva no Smithsonian Institute.

A repetição humana

Os dois discos de Lonnie Holley, Just Before Music e Keeping a Record of It, funcionam precisamente como uma revisitação constante de toda a sua vida. Condensam pensamentos soltos da sua peculiar observação do mundo, mas picam sistematicamente o ponto no seu passado agitado. “Em Mama’s little baby estou a falar de nós, negros americanos, não termos tido acesso a muita informação que era produzida e difundida. Estávamos a trabalhar nos campos de algodão, éramos maioritariamente escravos, e quando saíamos dessa condição era para sermos agricultores.” 

Os motes musicais, admite Holley, recriam o mesmo processo de reciclagem das artes plásticas — mas, neste caso, recuperam as temáticas predominantes das peças que foram já exibidas em locais como as Nações Unidas, os Jogos Olímpicos de Atlanta ou a Casa Branca. “A música é uma oportunidade para as pessoas ouvirem o que digo”, explica. “Como muita gente não frequenta museus, pode pegar numa música e ter contacto com aquilo que faço. E é muito importante para a sociedade que as pessoas comecem a prestar atenção.” Atenção não tanto ao improvável encontro musical de Sun Ra e Laurie Anderson a que muitas vezes soa, mas sobretudo àquilo que veicula.

Holley desembolsa dois temas para ilustrar as suas inspirações: I came to the garden alone vai atrás, ao tempo em que apanhava lixo no drive-in, mas aponta os holofotes para a repetição humana de “enterrar o lixo e achar que está tudo bem – não pode ser!”. “A natureza dá-nos tudo aquilo de que precisamos e estamos a infestar os terrenos”, brada. Em If I could save my way to freedom acorda o tema da escravatura, mas recentrando a questão na contemporaneidade: “Somos escravos do kilowatt, do poder energético. Qualquer pessoa que viva confortavelmente tem de ter aparelhos eléctricos em casa. E não devíamos aceitar isto como lei”.

Just Before Music, o novo álbum lançado pela Dust-to-Digital (notável editora da mais avisada garimpagem musical, que tem em Holley o único artista vivo do catálogo) deixa a nu o fascínio gerado pela figura de um outsider que poderia ter acabado a dormir num banco de jardim e, em vez disso, tem lugar em grandes exposições como representante da arte marginal. Para preencher os espaços vazios entre as suas canções — um misto de melodias ensaiadas a acompanhar a sua criação artesanal, da mesma maneira que os cantos de trabalho embalavam os corpos nos campos de algodão, e de improvisações captadas em estúdio — foram arregimentados Cole Alexander (dos Black Lips) e Bradford Cox (dos Deerhunter).

Só que esse estrelato indie é-lhe indiferente. O seu “céu na terra”, diz, “é ser livre, caminhar todo o dia e cantar músicas gloriosas”. Não vale a pena complicar o que sempre foi um reduto de simplicidade.