O livro do ex-primeiro ministro
Este livro não deve ser avaliado, positiva ou negativamente, em função da personalidade e da carreira públicas do seu autor.
Este livro sobre a questão da prática de tortura em democracia corresponde à dissertação de mestrado apresentada pelo autor ao programa de Teoria Política da prestigiada escola de Sciences Politiques de Paris. A passagem de José Sócrates, primeiro-ministro de Portugal entre 2005 e 2011, por tal instituição universitária não terá passado despercebida. Não foi a primeira nem a última vez que a academia francesa — a exemplo do que praticam com frequência as universidades inglesas e norte-americanas — acolheu políticos nas suas travessias do deserto ou na reforma. Mais raro é o facto de governantes portugueses em idêntica situação procurarem adquirir conhecimentos ou aprofundar leituras e optarem pelo estudo da teoria política enquanto ganham distância em relação à arena onde se embrenharam durante anos a fio e à qual muitas vezes pretendem regressar. Nem que seja por ter tomado esta opção — exemplar, sobretudo para uma classe política pouco preocupada com questões teóricas e intelectuais — o livro de José Sócrates merece ser lido por críticos e académicos interessados nessas mesmas questões.
A escolha do tema revela preocupações intelectuais que também merecem ser sublinhadas. Tendo sido um tema da moda quando o autor o elegeu como leitmotiv desta sua incursão académica, a questão da tortura mantém grande relevância e dimensão internacional, cuja importância é determinada não só pela sua actualidade, mas também pelo facto de interpelar a política da maior democracia do mundo. É o que fica patente, a um outro nível que não o deste trabalho escolar, no ensaio de David Cole, “The End of the War on Terror?”, na New York Review of Books (7-11-2013), que recenseia, além do extenso Report of the Constitution Project’s Task Force on Detainee Treatment, o importante livro de Joseph Margulies sobre as mudanças ocorridas na identidade nacional norte-americana após os ataques do 11 de Setembro.
Num contexto de “guerra ao terror”, os Estados Unidos tomaram medidas excepcionais, incluindo nelas a prática da tortura, tendo em vista alcançar a vitória sobre um inimigo ameaçador e frequentemente oculto. Democracia, estado de excepção e tortura surgem, assim, como três termos de uma equação que o livro de José Sócrates desenvolve. Ora, o autor pretendeu com o seu trabalho de mestrado dar um contributo para o debate em curso sobre se é ou não legítimo que uma democracia, em situação de guerra e para garantir a segurança dos cidadãos, pratique a tortura. E não escondeu a sua posição — de resto, expectável e previsível — de “absoluta proibição da tortura”.
A estrutura do livro é clara. Abre com uma vignette extraída do filme de Kathryn Bigelow, Zero Dark Thirty, que conta a história da localização e morte de Bin Laden no Paquistão. Coloca, à cabeça, a referida questão da articulação entre tortura e democracia. E, à boa maneira francesa, desenvolve-a em três partes relativas à história, à moral e à teoria política e jurídica da democracia. Enquanto état de la question requerido num trabalho de mestrado, sobretudo depois da adopção das menos exigentes directrizes de Bolonha, este livro cumpre perfeitamente os seus objectivos. É que, importa não esquecer, por mais favorável que tenha sido o acolhimento dispensado pelo referido programa de Sciences Po ao ex-primeiro ministro de Portugal, não se pode exigir mais a uma mémoire deste tipo que, segundo o próprio, mereceu uma elevada classificação final.
É também no estrito plano da crítica académica e sem qualquer tipo de propósito de retirar valor ao livro, enquanto acto político e pessoal de aquisição de novos conhecimentos, que se inserem as considerações seguintes, que são de dois tipos diferentes, mas unidas no mesmo propósito de apontar falhas bibliográficas. É normal que assim seja, precisamente porque este livro deve ser lido não como o produto de uma reflexão profunda ou original — o que não seria exigível numa dissertação de mestrado — mas sobretudo como um levantamento e uma síntese de bibliografia preexistente, ou seja, como a feitura do “estado da arte” da questão, elaborada a partir dos livros disponíveis acerca do tema, sob orientação tutorial de professores de indiscutível competência.
Em primeiro lugar, há que reconhecer uma falha no facto de Carl Schmitt nunca ser citado directamente. Falha tanto mais grave quanto existem boas traduções em inglês e francês das suas obras, que dispensariam a consulta, num trabalho deste tipo, dos originais em alemão. As importantes considerações de Schmitt sobre o estado de excepção — um dos conceitos decisivos do livro — não se reduzem ao que delas apresenta o filósofo de esquerda Giorgio Agamben, citado várias vezes no livro. Aliás, numa entrevista ao Expresso, entre abundantes citações de vários autores, José Sócrates insistiu no nome de Agamben, por se tratar de um autor hoje muito em voga. Uma maior familiaridade com os autores clássicos permitiria, ainda, ir mais longe na genealogia do seu tema. A consulta da obra de Alexis de Tocqueville, por exemplo, traria nova luz sobre os riscos da democracia ser contrária à liberdade e poder conduzir ao totalitarismo. E a leitura de Max Weber, ao revelar a centralidade das erupções carismáticas, mesmo no quadro de regimes parlamentares, permitiria alargar o pensamento sobre os estados de excepção.
É certo que, no livro em apreço, o horizonte de consulta directa das grandes obras de teoria política consideradas clássicas fica demonstrado nas referências a Kant, Hannah Arendt, Rawls e Dworkin. Quanto a Kant, estranha-se apenas que o autor tenha afirmado que lera mais de dez vezes a A Metafísica dos Costumes e esta obra não surja sequer citada na bibliografia final (não confundir com A Fundamentação da Metafísica dos Costumes, também de Kant, como o autor fez notar numa inflamada, extensa e desproporcionada resposta a uma crónica do Comendador Marques Correia/Henrique Monteiro, publicada no Expresso). Mas o facto de Schmitt ou Clausewitz não serem objecto de estudo directo constitui-se numa limitação. E, no entanto, será sempre possível argumentar que num trabalho de mestrado, igual a tantos outros e elaborado de acordo com os critérios pós-Bolonha, a fasquia não poderá ser colocada tão alto.
Em segundo lugar, se o trabalho académico em apreço se baseia numa razoável bibliografia em língua inglesa, sobretudo à luz dos padrões ancestrais da academia francesa, seria de ter em conta outros livros. Para a relação entre democracia e estado de excepção, teria sido aconselhável a leitura do excelente livro de Andreas Kalyvas, Democracy and the Politics of the Extraordinary: Max Weber, Carl Schmitt, and Hannah Arendt (Cambridge UP, 2008). Para as relações entre tortura e democracia norte-americana, se constam as obras mais recentes de Michael L. Gross e Darius Rejali, estão ausentes livros fundamentais de autores como Daniel Ross, Violent Democracy (Cambridge UP, 2004), e Emannuel Gross, The Struggle of Democracy Against Terrorism: Lessons From the United States, the United Kingdom, and Israel (University of Virginia Press, 2006), que tem no final uma importante reflexão sobre a política da tortura.
Na mesma direcção, nem que seja a benefício de inventário para investigações futuras, impõe-se a consulta de três obras colectivas: Karen J. Greenberg (ed.), The Torture Debate in America (Cambridge UP, 2006); Joy James, ed., Warfare in the American Homeland: Policing and Prison in a Penal Democracy (Duke UP, 2007), com um importante capítulo da autoria de William F. Pinar sobre as culturas da tortura; e H. Jefferson e James Boyd White, eds., Law and Democracy in the Empire of Force (University of Michigan Press, 2009). Duas últimas sugestões, de menor alcance, o trabalho de Seumas Miller, que é referido como artigo de enciclopédia, deveria dar lugar à consulta do seu livro de maior fôlego, Terrorism and Counter-Terrorism: Ethics and Liberal Democracy (Blackwell, 2009). O mesmo se diga do capítulo de Mark Osiel no manual de Levinson sobre a tortura que, porventura, justificaria a consulta do seu livro de fôlego The End of Reciprocity: Terror, Torture, and the Law of War (Cambridge UP, 2009), que tem a vantagem de também recorrer a Rawls e a Kant antes de discutir a relação entre honra marcial e democracia moderna.
Todas estas sugestões de leitura, feitas acerca de uma bibliografia que, em si mesma, se afigura já razoavelmente vasta, serão porventura supérfluas ou exageradas no âmbito de um trabalho de mestrado. No entanto, afigurar-se-ão oportunas, se o autor resolver levar mais fundo o seu percurso universitário, como aliás já fez questão de o anunciar publicamente. Também se pode dizer, com o mesmo intuito de melhorar o valor académico deste seu primeiro trabalho, que aquela espécie de dissertação cronológica inicial sobre tortura inquisitorial e o processo dos Távoras no tempo de Pombal pouco ou nada acrescenta ao debate do tema em apreço. De maior interesse teria sido explorar, em alternativa, o debate em torno da prática do segredo e da democracia no tempo do Macartismo e da Guerra Fria, começando pelo clássico de Edward Shils, The Torment of Secrecy (Free Press, 1956).
Obras como esta adquirem significados próprios no momento da sua recepção, podendo mesmo suscitar alaridos mediáticos devido à personalidade pública dos seus autores. Sobretudo quando merecem a atenção de figuras políticas de grande dimensão, como Lula da Silva, que assina o prefácio, ou Mário Soares, que se referiu recentemente a José Sócrates, depois da experiência de estudo em Paris, como um “outro homem com uma outra cultura que não tinha antes” (PÚBLICO, 14-11-2013). No entanto, o exercício de crítica que aqui se pretendeu desenvolver prende-se sobretudo com um trabalho de reconstituição das intenções e condições de possibilidade do autor. A este respeito, não haver rasgos interpretativos neste livro, nem sequer argumentos originais num trabalho que no essencial oferece um estado da questão da bibliografia sobre um tema de grande interesse, não invalida as boas intenções de aprendizagem e de formação contínua do seu autor na área da teoria política.
Em suma, estamos em presença de um trabalho de mestrado, nem mais nem menos do que isso. Um trabalho competente para os fins circunscritos a que se destinava, e que o aluno logrou alcançar com êxito. Este livro não deve ser avaliado, positiva ou negativamente, em função da personalidade e da carreira públicas do seu autor. Pelo contrário, a apreciação deve cingir-se ao estrito propósito universitário que esteve na génese deste livro. Entrar, aqui, noutras considerações, que extravasam do conteúdo do livro, seria alinhar com o circo mediático criado para promoção do autor. Para isso já basta esta recensão. Não fora o autor o ex-primeiro ministro de Portugal, este trabalho de mestrado — tal como sucede com centenas de outros do mesmo género ou, mesmo, com excelentes teses de doutoramento — dificilmente teria direito a uma recensão no Ípsilon.
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Este livro sobre a questão da prática de tortura em democracia corresponde à dissertação de mestrado apresentada pelo autor ao programa de Teoria Política da prestigiada escola de Sciences Politiques de Paris. A passagem de José Sócrates, primeiro-ministro de Portugal entre 2005 e 2011, por tal instituição universitária não terá passado despercebida. Não foi a primeira nem a última vez que a academia francesa — a exemplo do que praticam com frequência as universidades inglesas e norte-americanas — acolheu políticos nas suas travessias do deserto ou na reforma. Mais raro é o facto de governantes portugueses em idêntica situação procurarem adquirir conhecimentos ou aprofundar leituras e optarem pelo estudo da teoria política enquanto ganham distância em relação à arena onde se embrenharam durante anos a fio e à qual muitas vezes pretendem regressar. Nem que seja por ter tomado esta opção — exemplar, sobretudo para uma classe política pouco preocupada com questões teóricas e intelectuais — o livro de José Sócrates merece ser lido por críticos e académicos interessados nessas mesmas questões.
A escolha do tema revela preocupações intelectuais que também merecem ser sublinhadas. Tendo sido um tema da moda quando o autor o elegeu como leitmotiv desta sua incursão académica, a questão da tortura mantém grande relevância e dimensão internacional, cuja importância é determinada não só pela sua actualidade, mas também pelo facto de interpelar a política da maior democracia do mundo. É o que fica patente, a um outro nível que não o deste trabalho escolar, no ensaio de David Cole, “The End of the War on Terror?”, na New York Review of Books (7-11-2013), que recenseia, além do extenso Report of the Constitution Project’s Task Force on Detainee Treatment, o importante livro de Joseph Margulies sobre as mudanças ocorridas na identidade nacional norte-americana após os ataques do 11 de Setembro.
Num contexto de “guerra ao terror”, os Estados Unidos tomaram medidas excepcionais, incluindo nelas a prática da tortura, tendo em vista alcançar a vitória sobre um inimigo ameaçador e frequentemente oculto. Democracia, estado de excepção e tortura surgem, assim, como três termos de uma equação que o livro de José Sócrates desenvolve. Ora, o autor pretendeu com o seu trabalho de mestrado dar um contributo para o debate em curso sobre se é ou não legítimo que uma democracia, em situação de guerra e para garantir a segurança dos cidadãos, pratique a tortura. E não escondeu a sua posição — de resto, expectável e previsível — de “absoluta proibição da tortura”.
A estrutura do livro é clara. Abre com uma vignette extraída do filme de Kathryn Bigelow, Zero Dark Thirty, que conta a história da localização e morte de Bin Laden no Paquistão. Coloca, à cabeça, a referida questão da articulação entre tortura e democracia. E, à boa maneira francesa, desenvolve-a em três partes relativas à história, à moral e à teoria política e jurídica da democracia. Enquanto état de la question requerido num trabalho de mestrado, sobretudo depois da adopção das menos exigentes directrizes de Bolonha, este livro cumpre perfeitamente os seus objectivos. É que, importa não esquecer, por mais favorável que tenha sido o acolhimento dispensado pelo referido programa de Sciences Po ao ex-primeiro ministro de Portugal, não se pode exigir mais a uma mémoire deste tipo que, segundo o próprio, mereceu uma elevada classificação final.
É também no estrito plano da crítica académica e sem qualquer tipo de propósito de retirar valor ao livro, enquanto acto político e pessoal de aquisição de novos conhecimentos, que se inserem as considerações seguintes, que são de dois tipos diferentes, mas unidas no mesmo propósito de apontar falhas bibliográficas. É normal que assim seja, precisamente porque este livro deve ser lido não como o produto de uma reflexão profunda ou original — o que não seria exigível numa dissertação de mestrado — mas sobretudo como um levantamento e uma síntese de bibliografia preexistente, ou seja, como a feitura do “estado da arte” da questão, elaborada a partir dos livros disponíveis acerca do tema, sob orientação tutorial de professores de indiscutível competência.
Em primeiro lugar, há que reconhecer uma falha no facto de Carl Schmitt nunca ser citado directamente. Falha tanto mais grave quanto existem boas traduções em inglês e francês das suas obras, que dispensariam a consulta, num trabalho deste tipo, dos originais em alemão. As importantes considerações de Schmitt sobre o estado de excepção — um dos conceitos decisivos do livro — não se reduzem ao que delas apresenta o filósofo de esquerda Giorgio Agamben, citado várias vezes no livro. Aliás, numa entrevista ao Expresso, entre abundantes citações de vários autores, José Sócrates insistiu no nome de Agamben, por se tratar de um autor hoje muito em voga. Uma maior familiaridade com os autores clássicos permitiria, ainda, ir mais longe na genealogia do seu tema. A consulta da obra de Alexis de Tocqueville, por exemplo, traria nova luz sobre os riscos da democracia ser contrária à liberdade e poder conduzir ao totalitarismo. E a leitura de Max Weber, ao revelar a centralidade das erupções carismáticas, mesmo no quadro de regimes parlamentares, permitiria alargar o pensamento sobre os estados de excepção.
É certo que, no livro em apreço, o horizonte de consulta directa das grandes obras de teoria política consideradas clássicas fica demonstrado nas referências a Kant, Hannah Arendt, Rawls e Dworkin. Quanto a Kant, estranha-se apenas que o autor tenha afirmado que lera mais de dez vezes a A Metafísica dos Costumes e esta obra não surja sequer citada na bibliografia final (não confundir com A Fundamentação da Metafísica dos Costumes, também de Kant, como o autor fez notar numa inflamada, extensa e desproporcionada resposta a uma crónica do Comendador Marques Correia/Henrique Monteiro, publicada no Expresso). Mas o facto de Schmitt ou Clausewitz não serem objecto de estudo directo constitui-se numa limitação. E, no entanto, será sempre possível argumentar que num trabalho de mestrado, igual a tantos outros e elaborado de acordo com os critérios pós-Bolonha, a fasquia não poderá ser colocada tão alto.
Em segundo lugar, se o trabalho académico em apreço se baseia numa razoável bibliografia em língua inglesa, sobretudo à luz dos padrões ancestrais da academia francesa, seria de ter em conta outros livros. Para a relação entre democracia e estado de excepção, teria sido aconselhável a leitura do excelente livro de Andreas Kalyvas, Democracy and the Politics of the Extraordinary: Max Weber, Carl Schmitt, and Hannah Arendt (Cambridge UP, 2008). Para as relações entre tortura e democracia norte-americana, se constam as obras mais recentes de Michael L. Gross e Darius Rejali, estão ausentes livros fundamentais de autores como Daniel Ross, Violent Democracy (Cambridge UP, 2004), e Emannuel Gross, The Struggle of Democracy Against Terrorism: Lessons From the United States, the United Kingdom, and Israel (University of Virginia Press, 2006), que tem no final uma importante reflexão sobre a política da tortura.
Na mesma direcção, nem que seja a benefício de inventário para investigações futuras, impõe-se a consulta de três obras colectivas: Karen J. Greenberg (ed.), The Torture Debate in America (Cambridge UP, 2006); Joy James, ed., Warfare in the American Homeland: Policing and Prison in a Penal Democracy (Duke UP, 2007), com um importante capítulo da autoria de William F. Pinar sobre as culturas da tortura; e H. Jefferson e James Boyd White, eds., Law and Democracy in the Empire of Force (University of Michigan Press, 2009). Duas últimas sugestões, de menor alcance, o trabalho de Seumas Miller, que é referido como artigo de enciclopédia, deveria dar lugar à consulta do seu livro de maior fôlego, Terrorism and Counter-Terrorism: Ethics and Liberal Democracy (Blackwell, 2009). O mesmo se diga do capítulo de Mark Osiel no manual de Levinson sobre a tortura que, porventura, justificaria a consulta do seu livro de fôlego The End of Reciprocity: Terror, Torture, and the Law of War (Cambridge UP, 2009), que tem a vantagem de também recorrer a Rawls e a Kant antes de discutir a relação entre honra marcial e democracia moderna.
Todas estas sugestões de leitura, feitas acerca de uma bibliografia que, em si mesma, se afigura já razoavelmente vasta, serão porventura supérfluas ou exageradas no âmbito de um trabalho de mestrado. No entanto, afigurar-se-ão oportunas, se o autor resolver levar mais fundo o seu percurso universitário, como aliás já fez questão de o anunciar publicamente. Também se pode dizer, com o mesmo intuito de melhorar o valor académico deste seu primeiro trabalho, que aquela espécie de dissertação cronológica inicial sobre tortura inquisitorial e o processo dos Távoras no tempo de Pombal pouco ou nada acrescenta ao debate do tema em apreço. De maior interesse teria sido explorar, em alternativa, o debate em torno da prática do segredo e da democracia no tempo do Macartismo e da Guerra Fria, começando pelo clássico de Edward Shils, The Torment of Secrecy (Free Press, 1956).
Obras como esta adquirem significados próprios no momento da sua recepção, podendo mesmo suscitar alaridos mediáticos devido à personalidade pública dos seus autores. Sobretudo quando merecem a atenção de figuras políticas de grande dimensão, como Lula da Silva, que assina o prefácio, ou Mário Soares, que se referiu recentemente a José Sócrates, depois da experiência de estudo em Paris, como um “outro homem com uma outra cultura que não tinha antes” (PÚBLICO, 14-11-2013). No entanto, o exercício de crítica que aqui se pretendeu desenvolver prende-se sobretudo com um trabalho de reconstituição das intenções e condições de possibilidade do autor. A este respeito, não haver rasgos interpretativos neste livro, nem sequer argumentos originais num trabalho que no essencial oferece um estado da questão da bibliografia sobre um tema de grande interesse, não invalida as boas intenções de aprendizagem e de formação contínua do seu autor na área da teoria política.
Em suma, estamos em presença de um trabalho de mestrado, nem mais nem menos do que isso. Um trabalho competente para os fins circunscritos a que se destinava, e que o aluno logrou alcançar com êxito. Este livro não deve ser avaliado, positiva ou negativamente, em função da personalidade e da carreira públicas do seu autor. Pelo contrário, a apreciação deve cingir-se ao estrito propósito universitário que esteve na génese deste livro. Entrar, aqui, noutras considerações, que extravasam do conteúdo do livro, seria alinhar com o circo mediático criado para promoção do autor. Para isso já basta esta recensão. Não fora o autor o ex-primeiro ministro de Portugal, este trabalho de mestrado — tal como sucede com centenas de outros do mesmo género ou, mesmo, com excelentes teses de doutoramento — dificilmente teria direito a uma recensão no Ípsilon.