Não nos rendemos

Meados da década de 1950: numa ilhota diante de um fiorde, no norte da Noruega, erguia-se um edifício de madeira com três pisos. Na sua solitária decadência, mostrava sinais de uma glória já passada. Desde o final da II Guerra, depois de ter sido usado pelas tropas do ocupante alemão, que era habitado por humildes famílias de pescadores. Havia nele um velho alpendre de vidro, ao qual os anos e as tempestades partiram quase todas as vidraças; por isso, os homens pregaram-lhe tábuas para impedirem a entrada do vento. Quando era olhado de longe, do escuro da noite no mar, e estando as luzes exteriores acesas, “o alpendre de vidro parecia um olho cego”.

O edifício a que se refere o título do romance — o primeiro de uma trilogia — da norueguesa Herbjørg Wassmo (n. 1942) é o centro de um cosmos social de resignação, sofrimento e angústia. Para além de outras famílias pobres, é nesta “casa comum” que vive a de Tora, uma menina de 11 anos filha de uma relação da mãe com um soldado alemão: Ingrid, a mãe, trabalha numa fábrica de conserva de peixe, Henrik, o padrasto (com um braço inútil, foi ferido durante a guerra), é um homem mentalmente fraco que se arrasta entre a casa e as tabernas, passando os dias afogado em álcool e tomado por pensamentos de auto-comiseração.

Com detalhes austeros, por entre impressionantes descrições de paisagens, simplicidade narrativa e força poética, a escritora norueguesa faz, em A Casa Com Alpendre de Vidro Cego, um admirável retrato de um sistema social severo, um conjunto de casas com escola e igreja fechado sobre si próprio diante do mar, uma comunidade sombria que se rege por punitivos valores cristãos.

A religiosidade, sobretudo a do catecismo protestante e luterano, representa um papel essencial na coesão social da aldeia graças às ideias de pecado, de culpa vergonhosa e de punição redentora. “Elisif, que vivia no sotão lá em cima, era religiosa e dissera a Tora que a vergonha fora inventada por Deus. Isso tornava tudo desesperante, porque assim não havia como escapar dela. Deus fizera o mundo para que algumas pessoas tivessem de se sentir envergonhadas, pois isso seria bom para elas, já que eram pecadoras.”

Tora carrega a vergonha de ser “filha do inimigo”. Chamam-lhe a “fedelha alemã” e, por vezes, as outras crianças cantam, quase em jeito de ladainha: “o cabelo dela está a arder, o cabelo dela é todo ruivo, a mãe dela dormiu numa cama alemã!” Ingrid, a mãe, fora humilhada por ter engravidado de um soldado alemão: o cabelo foi-lhe rapado diante de todos quando voltou à aldeia, depois de uma tentativa frustrada, já no final da guerra, de ir para Berlim. Mas a culpa e a angústia de Tora não lhe vêm só do facto de Ingrid ter “pecado” com o “inimigo”. Ela é vítima de abusos sexuais por parte do padrasto; acontecem no escuro, nas noites em que a mãe trabalha na fábrica. “Mãos que surgiam na escuridão. Era esse o perigo. Mãos grandes e duras que tacteavam e apertavam.” Herbjørg Wassmo é contida nos detalhes das investidas, como se ao longo da narrativa fosse estendendo uma opaca cortina de pudor que preserva a sensibilidade do leitor de se confrontar cruamente com factos que pressente, que sabe que lá estão porque vê as sombras; e isso chega.

Tora sente-se maltratada como um gato abandonado que um dia encontrou: “Tornou-se o gato vadio que, por não ter dono, os rapazes na aldeia haviam torturado até à morte. Tinham-no crucificado numa cerca de madeira.” Numa desesperada tentativa de evasão daquela realidade insuportável, a menina entrega-se a longos devaneios, primeiro sobre o pai, depois acerca da avó paterna (que nunca conheceu), ansiando que um dia ela apareça na aldeia, a resgate e a leve para Berlim.

Como contraponto à tristeza e ao sentimento de culpa de Tora e de Ingrid, aos seus medos silenciados, à aparente resignação perante o destino, há a personagem Rakel. Enquanto mãe e filha têm de “abafar e ocultar” o que as perturba, “de o esconder tão bem que elas próprias vão acabar por esquecer”, a solar Rakel, irmã mais velha de Ingrid, não se resigna, não se rende, mesmo quando tudo se desmorona em seu redor. Em A Casa Com Alpendre de Vidro Cego são as mulheres que não se deixam abater perante as adversidades, que resistem – “os homens não eram tão rijos”. O machismo silencioso, protegido por normas religiosas, rege o sistema de relações entre homens e mulheres. Não sendo este propriamente um “romance de género”, Herbjørg Wassmo, enquanto analisa o complicado mecanismo das relações humanas, faz uma espécie de apologia da luta dos movimentos laborais feministas (mostrando, por exemplo, a diferença de tratamento na fábrica de conserva de peixe).

As vicissitudes da vida da pequena Tora acompanharão a memória do leitor por muito tempo. A compaixão sentida pelas personagens criadas por esta escritora norueguesa é a mesma que sentimos por pessoas reais, pois Wassmo consegue extrair esse sentimento da ilusão da sua escrita, e nisto é clara a influência do compatriota Knut Hamsun, sobretudo dos romances Fome e Mistérios.

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Meados da década de 1950: numa ilhota diante de um fiorde, no norte da Noruega, erguia-se um edifício de madeira com três pisos. Na sua solitária decadência, mostrava sinais de uma glória já passada. Desde o final da II Guerra, depois de ter sido usado pelas tropas do ocupante alemão, que era habitado por humildes famílias de pescadores. Havia nele um velho alpendre de vidro, ao qual os anos e as tempestades partiram quase todas as vidraças; por isso, os homens pregaram-lhe tábuas para impedirem a entrada do vento. Quando era olhado de longe, do escuro da noite no mar, e estando as luzes exteriores acesas, “o alpendre de vidro parecia um olho cego”.

O edifício a que se refere o título do romance — o primeiro de uma trilogia — da norueguesa Herbjørg Wassmo (n. 1942) é o centro de um cosmos social de resignação, sofrimento e angústia. Para além de outras famílias pobres, é nesta “casa comum” que vive a de Tora, uma menina de 11 anos filha de uma relação da mãe com um soldado alemão: Ingrid, a mãe, trabalha numa fábrica de conserva de peixe, Henrik, o padrasto (com um braço inútil, foi ferido durante a guerra), é um homem mentalmente fraco que se arrasta entre a casa e as tabernas, passando os dias afogado em álcool e tomado por pensamentos de auto-comiseração.

Com detalhes austeros, por entre impressionantes descrições de paisagens, simplicidade narrativa e força poética, a escritora norueguesa faz, em A Casa Com Alpendre de Vidro Cego, um admirável retrato de um sistema social severo, um conjunto de casas com escola e igreja fechado sobre si próprio diante do mar, uma comunidade sombria que se rege por punitivos valores cristãos.

A religiosidade, sobretudo a do catecismo protestante e luterano, representa um papel essencial na coesão social da aldeia graças às ideias de pecado, de culpa vergonhosa e de punição redentora. “Elisif, que vivia no sotão lá em cima, era religiosa e dissera a Tora que a vergonha fora inventada por Deus. Isso tornava tudo desesperante, porque assim não havia como escapar dela. Deus fizera o mundo para que algumas pessoas tivessem de se sentir envergonhadas, pois isso seria bom para elas, já que eram pecadoras.”

Tora carrega a vergonha de ser “filha do inimigo”. Chamam-lhe a “fedelha alemã” e, por vezes, as outras crianças cantam, quase em jeito de ladainha: “o cabelo dela está a arder, o cabelo dela é todo ruivo, a mãe dela dormiu numa cama alemã!” Ingrid, a mãe, fora humilhada por ter engravidado de um soldado alemão: o cabelo foi-lhe rapado diante de todos quando voltou à aldeia, depois de uma tentativa frustrada, já no final da guerra, de ir para Berlim. Mas a culpa e a angústia de Tora não lhe vêm só do facto de Ingrid ter “pecado” com o “inimigo”. Ela é vítima de abusos sexuais por parte do padrasto; acontecem no escuro, nas noites em que a mãe trabalha na fábrica. “Mãos que surgiam na escuridão. Era esse o perigo. Mãos grandes e duras que tacteavam e apertavam.” Herbjørg Wassmo é contida nos detalhes das investidas, como se ao longo da narrativa fosse estendendo uma opaca cortina de pudor que preserva a sensibilidade do leitor de se confrontar cruamente com factos que pressente, que sabe que lá estão porque vê as sombras; e isso chega.

Tora sente-se maltratada como um gato abandonado que um dia encontrou: “Tornou-se o gato vadio que, por não ter dono, os rapazes na aldeia haviam torturado até à morte. Tinham-no crucificado numa cerca de madeira.” Numa desesperada tentativa de evasão daquela realidade insuportável, a menina entrega-se a longos devaneios, primeiro sobre o pai, depois acerca da avó paterna (que nunca conheceu), ansiando que um dia ela apareça na aldeia, a resgate e a leve para Berlim.

Como contraponto à tristeza e ao sentimento de culpa de Tora e de Ingrid, aos seus medos silenciados, à aparente resignação perante o destino, há a personagem Rakel. Enquanto mãe e filha têm de “abafar e ocultar” o que as perturba, “de o esconder tão bem que elas próprias vão acabar por esquecer”, a solar Rakel, irmã mais velha de Ingrid, não se resigna, não se rende, mesmo quando tudo se desmorona em seu redor. Em A Casa Com Alpendre de Vidro Cego são as mulheres que não se deixam abater perante as adversidades, que resistem – “os homens não eram tão rijos”. O machismo silencioso, protegido por normas religiosas, rege o sistema de relações entre homens e mulheres. Não sendo este propriamente um “romance de género”, Herbjørg Wassmo, enquanto analisa o complicado mecanismo das relações humanas, faz uma espécie de apologia da luta dos movimentos laborais feministas (mostrando, por exemplo, a diferença de tratamento na fábrica de conserva de peixe).

As vicissitudes da vida da pequena Tora acompanharão a memória do leitor por muito tempo. A compaixão sentida pelas personagens criadas por esta escritora norueguesa é a mesma que sentimos por pessoas reais, pois Wassmo consegue extrair esse sentimento da ilusão da sua escrita, e nisto é clara a influência do compatriota Knut Hamsun, sobretudo dos romances Fome e Mistérios.