Porta de embarque 47A
Embarcar num avião comercial para a América é uma forma de tortura voluntária. Ninguém leva a sério o que traz escrito em inglês no peito da t-shirt, e os olhos habituam-se rapidamente a tudo. Texas, aqui vou eu.
Diante da porta de embarque espera-se, e as coisas metem-se pelos olhos dentro como dedos impiedosos. Nos pés de um homem, uns sapatos de berloques de sola de borracha branca, cabedal em dois tons de azul, azul-claro e azul-escuro, tão feios que parece impossível. Entrou na sapataria, viu as centenas de modelos disponíveis, escolheu estes.
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Diante da porta de embarque espera-se, e as coisas metem-se pelos olhos dentro como dedos impiedosos. Nos pés de um homem, uns sapatos de berloques de sola de borracha branca, cabedal em dois tons de azul, azul-claro e azul-escuro, tão feios que parece impossível. Entrou na sapataria, viu as centenas de modelos disponíveis, escolheu estes.
No peito, “Ver atrás” e uma seta para o lado. Nas costas, “Ver à frente” e uma seta igual para o lado.
A um canto, entre fiadas de cadeiras, em cima de uma mala de viagem deitada no chão a fazer de mesa, um quarteto de homens em peúgas joga às cartas com gestos exuberantes, cartas batidas com a violência de palmadas na cara. As palavras estampadas nas t-shirts saltam-nos ao caminho. Metade dos presentes, se interrogado, talvez já nem se lembrasse dos dizeres que ostenta no peito, quase todos em inglês. Ninguém parece ligar ao que traz escrito no próprio peito, só as cores contam, o tamanho das letras, o tipo de caracteres. Traduzidas para português, as frases soam estranhamente ousadas e provocadoras.
“Deus prefere os ateus”, com um desenho propositadamente pueril de Deus a traço grosso.
Invade-me um medo atávico de perder o passaporte e o cartão de embarque, procuro-os constantemente com as mãos dentro do bolso.
Já vi bocejar duas pessoas que não puseram a mão à frente da boca. Bocejos vigorosos, leoninos, saídos de um documentário da vida selvagem. É isso mesmo, somos um bando de leões saciados, reunidos em volta da acácia 47A. O bocejo prolongado do leão é um clássico obrigatório destes programas, no curso de documentaristas da vida selvagem há uma cadeira de Ecossistemas Africanos, e um dos tópicos do programa é “Bocejos felinos”.
Uma voz anuncia que, por razões de segurança, os passageiros terão de abandonar a porta de embarque 47A. Ao terceiro aviso, repetido na mesma voz monocórdica, metade das pessoas afasta-se para o corredor, a 20 metros dali. As restantes ficam sentadas com ar sonolento, a mexer nos telemóveis.
“Sou o maior.” Gordas letras negras sobre fundo azul-claro.
Há pessoas, na sua maioria rapazes e homens feitos, que nunca tiram o boné. Há pessoas que nunca tiram os óculos escuros. Há pessoas que nem por um segundo param de mexer no telemóvel. Há pessoas que nunca tiram o boné, nunca tiram os óculos escuros e nem por um segundo param de mexer no telemóvel. Há pessoas, homens e mulheres, com os óculos escuros no alto da cabeça, a prender o cabelo. Há pessoas com os óculos escuros ao pescoço, suspensos por um cordão. Há pessoas, na sua esmagadora maioria homens, com os óculos escuros entalados no pescoço, de hastes estendidas, mas presos na nuca, voltados para trás. Em certas zonas da Índia, para evitar os ataques dos tigres, os habitantes usam máscaras na nuca quando vão à floresta ou quando conduzem as suas canoas nos pantanais. Aparentemente, os tigres nunca atacam de frente, o olhar humano trava-os em plena arremetida. Os tigres e os leões são primos, quase irmãos. Um estratagema que resulte com os tigres deve resultar com os leões. À falta de máscara, os óculos escuros voltados para trás devem servir de protecção bastante contra os homens-leões que nos queiram atacar pelas costas.
A segurança está aparentemente reposta, a voz ameaçadoramente suave e monocórdica chama-nos de volta para a porta de embarque 47A. Mesmo sabendo que os meus esforços e temores são ridículos, procuro nos rostos indícios de intentos terroristas, sem saber ao certo que sinais procurar.
“Quem sabe?” Letras multicores sobre fundo branco.
O avião levanta voo, arrancando-se à sucção avassaladora da gravidade, cavando-me no estômago sucessivos remoinhos vertiginosos. Dois minutos de pavor seguidos de oito horas de infinito aborrecimento e desconforto. Por baixo de mim, a América desliza, vagarosa, ao meu encontro.
Ao sair de casa, manhã bem cedo, deixei para trás um país desesperado, um país à venda, em que uma mulher recortou uma folha de papel A4 em quadradinhos e manuscreveu em cada um o seu nome, o seu número de telemóvel e a mensagem: “Procuro emprego. Doméstica. 5 anos de casa. Sei fazer tudo. Vivo aqui na zona. Obrigada”. Depois andou de prédio em prédio, a enfiar os quadradinhos de papel por baixo das portas de entrada. Quadradinhos que, reparando melhor, não foram recortados com uma tesoura, foram vincados com a unha e cuidadosamente rasgados pelo vinco, deixando na margem do papel aquela inconfundível penugem. E agora, enquanto este avião corta ou rasga ou verruma os ares, ela espera que o telemóvel toque.
Esta é a primeira de uma série de crónicas de Paulo Faria, autor do texto Oswald passou por aqui, publicado neste domingo na revista 2.