Velázquez Álbum de família

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Cortesia Metropolitan Museum

A corte espanhola era uma das mais modernas e sofisticadas da Europa. O rei, apesar das tragédias pessoais e do complexo xadrez político em que era obrigado a mover-se, com guerras à mistura e graves problemas de tesouraria, continuava a interessar-se pela arte e pela literatura, e gostava de ter intelectuais, pintores, poetas e homens de teatro à sua volta. A pintura e a arquitectura — a primeira com os retratos que fazia circular entre familiares e potenciais aliados, a segunda com as grandes obras de regime — eram instrumentos de propaganda que Filipe IV não desprezava, muito pelo contrário. Diego Velázquez (1599-1660), que aos 24 anos trocara Sevilha por Madrid para trabalhar para o monarca, fazia parte do seu círculo de indispensáveis, em que se incluíam poetas e dramaturgos como Luis de Góngora, Calderón de la Barca e Lope de Vega.

“Velázquez estava perfeitamente inserido na corte e Filipe IV não lhe poupou promoções e honrarias, mesmo o pintor não tendo raízes nobres. Uma atitude que não era nada comum na época”, explica ao Ípsilon Javier Portús, o comissário da exposição Velázquez y la família de Felipe IV, que até 9 de Fevereiro mostra no Museu do Prado, em Madrid, a “produção de génio” dos últimos dez anos do autor de As Meninas, um dos mais complexos e famosos retratos da pintura europeia do século XVII.

Pouco se sabe da relação entre estes dois homens que conviveram durante 40 anos, num período que chegou a ser bastante conturbado para Espanha já que, a dada altura do reinado, Filipe IV estava na bancarrota e em guerra com França, Inglaterra e Portugal, onde reinou como Filipe III entre 1620 e 1640. “Nada indica que se dessem mal”, embora o monarca tenha chegado a escrever que Velázquez o enganara mil vezes e fosse pública a relutância com que o pintor regressara a Madrid da sua segunda viagem a Roma. “O rei teve de insistir, e Velázquez veio de má vontade”, lembrava Portús, também director do Departamento de Pintura Espanhola do Prado (até 1700), na inauguração da exposição.

Era natural que o mestre de Sevilha preferisse manter-se na corte papal de Inocêncio X, por onde passavam muitos dos maiores pintores europeus e onde se afirmara já como um grande retratista, executando algumas das obras que agora se podem ver pela primeira vez em Espanha, no primeiro dos seis núcleos da exposição do Prado, com 29 obras, que em termos cronológicos começa em 1650, ano em que Velázquez está em Roma, e termina em 1680, 20 anos depois da sua morte, centrando-se então em obras dos seus principais seguidores: Juan Carreño de Miranda e Juan Bautista Martínez del Mazo, que era também seu genro. “Aqui é evidente o grande poder de comunicação de Velázquez, quer com o retratado, quer com quem vê. Há uma enorme empatia”, diz o comissário, apontando para os retratos do próprio Papa e do cardeal Camillo Massimo, um erudito que foi mecenas de dois dos pintores do barroco francês, Nicolas Poussin e Claude Lorrain.

E se Velázquez não tivesse regressado a Espanha, a pedido do rei, depois de Filipe IV se ter casado com a sua sobrinha, Mariana da Áustria? “Velázquez chegou a Roma como retratista e lá continuou a dedicar-se ao retrato com grande êxito. Provavelmente teria continuado por esta via, ainda que o exemplo e o estímulo de artistas como Poussin e Cassiano del Pozzo o pudessem ter tentado a cultivar também a ‘pintura de história’”, defende Portús.

Certo é, assegura o comissário, que não se pode entender a sua arte sem a corte deste monarca que parece sempre ausente ou entristecido a cada pintura, mesmo nas feitas quando ambos eram ainda muito jovens. É assim no retrato de Felipe IV (1605-1665) que pertence ao Prado e que está na exposição (com 15 obras do mestre, as restantes do atelier e dos seus seguidores). Executado em meados da década de 1650, faz parte de uma “série” de versões que mostram um rei que, escreve o próprio muitas vezes, se sente envelhecido e cansado. “É fenomenal”, diz entusiasmado, fazendo referência aos elementos que apontam para o estilo que Velázquez procurou imprimir ao retrato cortesão espanhol mal chegou a Madrid: uma gama de cores reduzida que favorece os pretos e os cinzentos, servindo uma composição em que todos os elementos se conjugam para obrigar o espectador a olhar para o rosto do retratado.

Sem Filipe IV, sublinha o comissário, Velázquez não seria o Velázquez que hoje conhecemos porque o monarca foi o seu maior cliente, da família real saíram os seus principais modelos e as colecções palacianas foram as suas grandes fontes de inspiração: “Sem estes estímulos estaríamos a falar de um pintor de dons extraordinários, mas com um reportório temático e recursos estilísticos provavelmente muito diferentes. Se tivesse permanecido em Sevilha, onde nasceu, ter-se-ia dedicado a temas religiosos ou mitológicos e não teria dado ao retrato de corte a imensa dignidade e projecção internacional que teve mal chegou a Madrid.”

Se é verdade que Velázquez transforma o retrato cortesão, deixando raízes profundas na arte europeia e vindo a influenciar, de maneiras bem diversas e séculos depois, artistas como Édouard Manet, Pablo Picasso e Francis Bacon, também é verdade que a sua linguagem se altera no regresso a Madrid. Em Itália apaixonara-se, entre outras, pela obra de Caravaggio, em toda a sua exuberância e eficácia.

No mundo das mulheres

Quando deixa a corte de Filipe IV na sua segunda viagem para Roma, a mais determinante, com o pretexto de comprar arte para a colecção do Palácio do Bom Retiro, Velázquez deixa apenas um rei viúvo com a sua filha, a infanta Maria Teresa. Quando regressa, o monarca voltou a casar e a nova mulher, a sua sobrinha Mariana da Áustria, está a dias de ser mãe de Margarida, que viria a ser a mulher mais retratada pelo artista. De repente, o palácio está de novo à espera de um herdeiro ao trono que fica, no entanto, adiado até ao nascimento de Filipe Próspero, que morreu ainda criança.

“Os retratos que faz ao regressar de Roma mostram um pintor que é, em alguns aspectos, muito diferente. A composição torna-se mais complexa, a gama cromática mais variada e quente. Esta é, sem dúvida, a etapa mais sensual da carreira de Velázquez”, em que os pormenores dos vestidos, acessórios e cenários disputam a atenção, criando uma ambiência dramática e, ao mesmo tempo, uma história.

Olhamos para A Infanta Margarida em vestido rosa (no plano anterior, a primeira imagem), quando a princesa teria cinco anos, pintado na mesma altura de As Meninas, e começamos a imaginar como seria o temperamento daquela criança que é retratada em pose de adulto num enquadramento suavizado pelo azul de uma toalha e um vaso de flores, como correria pelos corredores do palácio ou o que fazia dela a favorita do pai (na exposição, a infanta aparece em 11 obras e em oito delas sozinha). Olhamos para Filipe Próspero e queremos saber para que servem os sinos e objectos em ouro que traz pendurados e que cão é aquele que tem ao seu lado.

Nesta fase final da carreira — os últimos dez anos na casa de Filipe IV — o pintor cuida muitos dos detalhes, que se tornam, como diz o comissário, “substantivos”. É com eles que constrói “o clímax emotivo das suas pinturas” e demonstra a sua mestria técnica. “Velázquez era um mago da cor, capaz de criar a ilusão da realidade em poucos golpes de pincel. E nestes anos revela uma capacidade extraordinária para recriar um mundo de crianças e mulheres. Estes retratos são de génio, obras-primas sucessivas, que provam que a sua última década não é de continuidade, mas de evolução.”

É por isso que, referindo-se aos retratos de infância de Margarida e Filipe Próspero, mas também aos de Maria Teresa e de Mariana da Áustria, Jonathan Brown, o académico norte-americano a quem se deve uma das grandes obras de referência sobre o artista sevilhano, garantiu à edição espanhola da revista Arte que “o último Velázquez é simplesmente mágico”.

Os espaços que cria são profundos e, por vezes cheios de mistério. A roupa que vestem os infantes e a rainha está coberta de bordados, rendas e laços, com mudanças de tons subtis, volumes e dobras que sugerem movimento, mesmo que a pose das figuras seja estática. E há apontamentos deliciosos, como as borboletas do cabelo de Maria Teresa que, graças à endogamia que marca as cortes europeias da época, era ao mesmo tempo prima e enteada da nova rainha, Mariana, que veio a casar com o tio porque o primo a quem estava prometida, Baltazar Carlos, filho do primeiro casamento de Filipe IV, morreu prematuramente.

Retratos e alianças

No retrato de Maria Teresa, as borboletas, acrescenta Javier Portús, são uma metáfora da arte de Velázquez, que está sempre num processo de transformação, num jogo permanente entre o acabado e o inacabado. Esta importante obra veio do Metropolitan Museum de Nova Iorque, um dos muitos que emprestaram pinturas para esta exposição, como a Apsley House (Londres) ou Kingston Lacy, propriedade do National Trust britânico que guarda na sua colecção As Meninas, de Mazo, que não se viam em Espanha há 200 anos e estão no centro de uma polémica que opõe alguns dos maiores estudiosos do mestre a um antigo conservador do Prado, Matías Díaz Padron, que, ao fim de 20 anos de investigação, defende que o quadro é um esboço do próprio Velázquez.

Mas a maior embaixada de empréstimos, e que permite preencher uma grande lacuna da colecção do Prado, a dos retratos dos príncipes ainda crianças, vem do Kunsthistorisches, o museu de história de Viena.

“Velázquez é um artista muito versátil e rápido a adaptar-se a cada público e a cada situação. Pintar a ‘nova’ família de Filipe IV tornava-se urgente porque era preciso, por exemplo, mandar retratos para a corte do avô [o imperador Fernando III da Áustria].”

Do avô e não só. Divulgar a imagem das infantas Maria Teresa e, mais tarde, Margarida, permitia à corte espanhola forjar alianças com outros reis europeus através do matrimónio. A filha mais velha do rei, por exemplo, casou com o primo direito, Luís XIV, para cimentar a paz com França. Margarida casou com o tio, Leopoldo I, o imperador romano-germânico.



O que faz um Velázquez?

A procura de retratos dos infantes fez com que o atelier de Velázquez, sobre o qual pouco se sabe, e os seus seguidores fossem forçados a aumentar o ritmo. Na exposição há vários retratos de Margarida que não foram pintados pelo mestre, mas distinguir uns dos outros não é nada fácil para um não-especialista. O que faz, afinal, um Velázquez? Portús está habituado à pergunta e, por isso, a sua resposta é sistemática: “O gosto pelos paradoxos narrativos, um conceito muito avançado de paisagem, o império da cor, uma reflexão contínua sobre o naturalismo, a distância emotiva, a solidez compositiva, uma busca constante de originalidade, grande consciência das suas capacidades e uma extraordinária destreza técnica.”

Ainda assim a tarefa de distinguir o mestre dos discípulos é complexa e, tendo já ocupado gerações de académicos, complica-se porque, com um atelier, há que considerar a intervenção de Velázquez em várias fases da obra (sabe-se, por exemplo, que nas cópias algumas das figuras eram decalcadas para a tela). Hoje são-lhe atribuídas cerca de 120 pinturas, assegura o comissário, 48 das quais fazem parte da colecção do Prado, uma das pinacotecas mais importantes do mundo.

Mas se há zonas cinzentas que suscitam discussão, outras há em que Javier Portús não tem dúvidas em afirmar que se trata de uma cópia. É o caso de As Meninas, de Mazo, que Díaz Padron continua a defender ser um estudo do mestre: “É uma cópia porque representa o resultado final do processo pictórico que culminou no quadro de Velázquez e não o seu ponto de partida, que era diferente na zona esquerda da obra.”

Portús lembra que o original, que faz parte da exposição, mas não saiu da Sala 12 do museu para não perturbar o percurso da exposição permanente, foi alterado pelo pintor durante a execução. O resultado é um labirinto visual que exige a participação activa do espectador, já que há várias coisas a acontecer ao mesmo tempo.

“Durante séculos As Meninas têm seduzido pelo seu extraordinário ilusionismo, pela capacidade de testar os limites entre a realidade e a sua representação. Desde meados do século XX, a estes valores soma-se o sofisticado jogo que se estabelece entre o pintor, o quadro e os seus espectadores, que passam a fazer parte da narração pictórica.”

Junto à obra da polémica, bem menor que a da Sala 12, está La familia del pintor, também do genro do mestre. Nesta pintura, Mazo faz uma desconstrução de As Meninas — quase todos os seus elementos estão lá, mas em lugares diferentes, como se tivessem sido baralhados, explica o comissário. Velázquez, que aparece de frente no retrato colectivo mais famoso da pintura espanhola, vira as costas ao espectador no quadro de Mazo e deixa-nos espreitar o que está a pintar, muito provavelmente a princesa Margarida.

É por causa desta obra e de outras - como o retrato de Carlos II, de Carreño de Miranda, ou Margarida da Áustria de luto pelo pai, de Mazo - que o norte-americano Jonathan Brown diz que esta é uma “exposição pioneira” porque permite avaliar o impacto do sevilhano nos seus discípulos, que souberam partir das suas raízes e inovar com grande qualidade, adaptando-se às novas realidades políticas e sem ter o reconhecimento que merecem.

O Prado está a contar com esta mostra para equilibrar o orçamento de 2013 e travar uma acentuada queda no número de visitantes (de 2,8 milhões em 2012 para uma estimativa de 2,3 até ao final de Dezembro). O museu, que é autofinanciado a 60%, teve este ano um corte de quase um terço na subvenção que recebe do Estado, de acordo com a imprensa espanhola. No total (Estado, receitas próprias e mecenato) tem para gerir 38,2 milhões de euros, menos 5,8 milhões do que em 2012, segundo dados oficiais.

A exposição que promete transformar por uns meses, como disse o director do Prado, Miguel Zugaza, “a casa de Velázquez no atelier de Velázquez”, já foi vista por 80 mil pessoas. Javier Portús acredita que muitos mais virão porque os retratos do mestre de Sevilha que chegou a vestir-se de mulher para representar para Filipe IV fazem parte da memória colectiva e continuam sedutores.



O Ípsilon viajou a convite do Turismo de Espanha

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A corte espanhola era uma das mais modernas e sofisticadas da Europa. O rei, apesar das tragédias pessoais e do complexo xadrez político em que era obrigado a mover-se, com guerras à mistura e graves problemas de tesouraria, continuava a interessar-se pela arte e pela literatura, e gostava de ter intelectuais, pintores, poetas e homens de teatro à sua volta. A pintura e a arquitectura — a primeira com os retratos que fazia circular entre familiares e potenciais aliados, a segunda com as grandes obras de regime — eram instrumentos de propaganda que Filipe IV não desprezava, muito pelo contrário. Diego Velázquez (1599-1660), que aos 24 anos trocara Sevilha por Madrid para trabalhar para o monarca, fazia parte do seu círculo de indispensáveis, em que se incluíam poetas e dramaturgos como Luis de Góngora, Calderón de la Barca e Lope de Vega.

“Velázquez estava perfeitamente inserido na corte e Filipe IV não lhe poupou promoções e honrarias, mesmo o pintor não tendo raízes nobres. Uma atitude que não era nada comum na época”, explica ao Ípsilon Javier Portús, o comissário da exposição Velázquez y la família de Felipe IV, que até 9 de Fevereiro mostra no Museu do Prado, em Madrid, a “produção de génio” dos últimos dez anos do autor de As Meninas, um dos mais complexos e famosos retratos da pintura europeia do século XVII.

Pouco se sabe da relação entre estes dois homens que conviveram durante 40 anos, num período que chegou a ser bastante conturbado para Espanha já que, a dada altura do reinado, Filipe IV estava na bancarrota e em guerra com França, Inglaterra e Portugal, onde reinou como Filipe III entre 1620 e 1640. “Nada indica que se dessem mal”, embora o monarca tenha chegado a escrever que Velázquez o enganara mil vezes e fosse pública a relutância com que o pintor regressara a Madrid da sua segunda viagem a Roma. “O rei teve de insistir, e Velázquez veio de má vontade”, lembrava Portús, também director do Departamento de Pintura Espanhola do Prado (até 1700), na inauguração da exposição.

Era natural que o mestre de Sevilha preferisse manter-se na corte papal de Inocêncio X, por onde passavam muitos dos maiores pintores europeus e onde se afirmara já como um grande retratista, executando algumas das obras que agora se podem ver pela primeira vez em Espanha, no primeiro dos seis núcleos da exposição do Prado, com 29 obras, que em termos cronológicos começa em 1650, ano em que Velázquez está em Roma, e termina em 1680, 20 anos depois da sua morte, centrando-se então em obras dos seus principais seguidores: Juan Carreño de Miranda e Juan Bautista Martínez del Mazo, que era também seu genro. “Aqui é evidente o grande poder de comunicação de Velázquez, quer com o retratado, quer com quem vê. Há uma enorme empatia”, diz o comissário, apontando para os retratos do próprio Papa e do cardeal Camillo Massimo, um erudito que foi mecenas de dois dos pintores do barroco francês, Nicolas Poussin e Claude Lorrain.

E se Velázquez não tivesse regressado a Espanha, a pedido do rei, depois de Filipe IV se ter casado com a sua sobrinha, Mariana da Áustria? “Velázquez chegou a Roma como retratista e lá continuou a dedicar-se ao retrato com grande êxito. Provavelmente teria continuado por esta via, ainda que o exemplo e o estímulo de artistas como Poussin e Cassiano del Pozzo o pudessem ter tentado a cultivar também a ‘pintura de história’”, defende Portús.

Certo é, assegura o comissário, que não se pode entender a sua arte sem a corte deste monarca que parece sempre ausente ou entristecido a cada pintura, mesmo nas feitas quando ambos eram ainda muito jovens. É assim no retrato de Felipe IV (1605-1665) que pertence ao Prado e que está na exposição (com 15 obras do mestre, as restantes do atelier e dos seus seguidores). Executado em meados da década de 1650, faz parte de uma “série” de versões que mostram um rei que, escreve o próprio muitas vezes, se sente envelhecido e cansado. “É fenomenal”, diz entusiasmado, fazendo referência aos elementos que apontam para o estilo que Velázquez procurou imprimir ao retrato cortesão espanhol mal chegou a Madrid: uma gama de cores reduzida que favorece os pretos e os cinzentos, servindo uma composição em que todos os elementos se conjugam para obrigar o espectador a olhar para o rosto do retratado.

Sem Filipe IV, sublinha o comissário, Velázquez não seria o Velázquez que hoje conhecemos porque o monarca foi o seu maior cliente, da família real saíram os seus principais modelos e as colecções palacianas foram as suas grandes fontes de inspiração: “Sem estes estímulos estaríamos a falar de um pintor de dons extraordinários, mas com um reportório temático e recursos estilísticos provavelmente muito diferentes. Se tivesse permanecido em Sevilha, onde nasceu, ter-se-ia dedicado a temas religiosos ou mitológicos e não teria dado ao retrato de corte a imensa dignidade e projecção internacional que teve mal chegou a Madrid.”

Se é verdade que Velázquez transforma o retrato cortesão, deixando raízes profundas na arte europeia e vindo a influenciar, de maneiras bem diversas e séculos depois, artistas como Édouard Manet, Pablo Picasso e Francis Bacon, também é verdade que a sua linguagem se altera no regresso a Madrid. Em Itália apaixonara-se, entre outras, pela obra de Caravaggio, em toda a sua exuberância e eficácia.

No mundo das mulheres

Quando deixa a corte de Filipe IV na sua segunda viagem para Roma, a mais determinante, com o pretexto de comprar arte para a colecção do Palácio do Bom Retiro, Velázquez deixa apenas um rei viúvo com a sua filha, a infanta Maria Teresa. Quando regressa, o monarca voltou a casar e a nova mulher, a sua sobrinha Mariana da Áustria, está a dias de ser mãe de Margarida, que viria a ser a mulher mais retratada pelo artista. De repente, o palácio está de novo à espera de um herdeiro ao trono que fica, no entanto, adiado até ao nascimento de Filipe Próspero, que morreu ainda criança.

“Os retratos que faz ao regressar de Roma mostram um pintor que é, em alguns aspectos, muito diferente. A composição torna-se mais complexa, a gama cromática mais variada e quente. Esta é, sem dúvida, a etapa mais sensual da carreira de Velázquez”, em que os pormenores dos vestidos, acessórios e cenários disputam a atenção, criando uma ambiência dramática e, ao mesmo tempo, uma história.

Olhamos para A Infanta Margarida em vestido rosa (no plano anterior, a primeira imagem), quando a princesa teria cinco anos, pintado na mesma altura de As Meninas, e começamos a imaginar como seria o temperamento daquela criança que é retratada em pose de adulto num enquadramento suavizado pelo azul de uma toalha e um vaso de flores, como correria pelos corredores do palácio ou o que fazia dela a favorita do pai (na exposição, a infanta aparece em 11 obras e em oito delas sozinha). Olhamos para Filipe Próspero e queremos saber para que servem os sinos e objectos em ouro que traz pendurados e que cão é aquele que tem ao seu lado.

Nesta fase final da carreira — os últimos dez anos na casa de Filipe IV — o pintor cuida muitos dos detalhes, que se tornam, como diz o comissário, “substantivos”. É com eles que constrói “o clímax emotivo das suas pinturas” e demonstra a sua mestria técnica. “Velázquez era um mago da cor, capaz de criar a ilusão da realidade em poucos golpes de pincel. E nestes anos revela uma capacidade extraordinária para recriar um mundo de crianças e mulheres. Estes retratos são de génio, obras-primas sucessivas, que provam que a sua última década não é de continuidade, mas de evolução.”

É por isso que, referindo-se aos retratos de infância de Margarida e Filipe Próspero, mas também aos de Maria Teresa e de Mariana da Áustria, Jonathan Brown, o académico norte-americano a quem se deve uma das grandes obras de referência sobre o artista sevilhano, garantiu à edição espanhola da revista Arte que “o último Velázquez é simplesmente mágico”.

Os espaços que cria são profundos e, por vezes cheios de mistério. A roupa que vestem os infantes e a rainha está coberta de bordados, rendas e laços, com mudanças de tons subtis, volumes e dobras que sugerem movimento, mesmo que a pose das figuras seja estática. E há apontamentos deliciosos, como as borboletas do cabelo de Maria Teresa que, graças à endogamia que marca as cortes europeias da época, era ao mesmo tempo prima e enteada da nova rainha, Mariana, que veio a casar com o tio porque o primo a quem estava prometida, Baltazar Carlos, filho do primeiro casamento de Filipe IV, morreu prematuramente.

Retratos e alianças

No retrato de Maria Teresa, as borboletas, acrescenta Javier Portús, são uma metáfora da arte de Velázquez, que está sempre num processo de transformação, num jogo permanente entre o acabado e o inacabado. Esta importante obra veio do Metropolitan Museum de Nova Iorque, um dos muitos que emprestaram pinturas para esta exposição, como a Apsley House (Londres) ou Kingston Lacy, propriedade do National Trust britânico que guarda na sua colecção As Meninas, de Mazo, que não se viam em Espanha há 200 anos e estão no centro de uma polémica que opõe alguns dos maiores estudiosos do mestre a um antigo conservador do Prado, Matías Díaz Padron, que, ao fim de 20 anos de investigação, defende que o quadro é um esboço do próprio Velázquez.

Mas a maior embaixada de empréstimos, e que permite preencher uma grande lacuna da colecção do Prado, a dos retratos dos príncipes ainda crianças, vem do Kunsthistorisches, o museu de história de Viena.

“Velázquez é um artista muito versátil e rápido a adaptar-se a cada público e a cada situação. Pintar a ‘nova’ família de Filipe IV tornava-se urgente porque era preciso, por exemplo, mandar retratos para a corte do avô [o imperador Fernando III da Áustria].”

Do avô e não só. Divulgar a imagem das infantas Maria Teresa e, mais tarde, Margarida, permitia à corte espanhola forjar alianças com outros reis europeus através do matrimónio. A filha mais velha do rei, por exemplo, casou com o primo direito, Luís XIV, para cimentar a paz com França. Margarida casou com o tio, Leopoldo I, o imperador romano-germânico.



O que faz um Velázquez?

A procura de retratos dos infantes fez com que o atelier de Velázquez, sobre o qual pouco se sabe, e os seus seguidores fossem forçados a aumentar o ritmo. Na exposição há vários retratos de Margarida que não foram pintados pelo mestre, mas distinguir uns dos outros não é nada fácil para um não-especialista. O que faz, afinal, um Velázquez? Portús está habituado à pergunta e, por isso, a sua resposta é sistemática: “O gosto pelos paradoxos narrativos, um conceito muito avançado de paisagem, o império da cor, uma reflexão contínua sobre o naturalismo, a distância emotiva, a solidez compositiva, uma busca constante de originalidade, grande consciência das suas capacidades e uma extraordinária destreza técnica.”

Ainda assim a tarefa de distinguir o mestre dos discípulos é complexa e, tendo já ocupado gerações de académicos, complica-se porque, com um atelier, há que considerar a intervenção de Velázquez em várias fases da obra (sabe-se, por exemplo, que nas cópias algumas das figuras eram decalcadas para a tela). Hoje são-lhe atribuídas cerca de 120 pinturas, assegura o comissário, 48 das quais fazem parte da colecção do Prado, uma das pinacotecas mais importantes do mundo.

Mas se há zonas cinzentas que suscitam discussão, outras há em que Javier Portús não tem dúvidas em afirmar que se trata de uma cópia. É o caso de As Meninas, de Mazo, que Díaz Padron continua a defender ser um estudo do mestre: “É uma cópia porque representa o resultado final do processo pictórico que culminou no quadro de Velázquez e não o seu ponto de partida, que era diferente na zona esquerda da obra.”

Portús lembra que o original, que faz parte da exposição, mas não saiu da Sala 12 do museu para não perturbar o percurso da exposição permanente, foi alterado pelo pintor durante a execução. O resultado é um labirinto visual que exige a participação activa do espectador, já que há várias coisas a acontecer ao mesmo tempo.

“Durante séculos As Meninas têm seduzido pelo seu extraordinário ilusionismo, pela capacidade de testar os limites entre a realidade e a sua representação. Desde meados do século XX, a estes valores soma-se o sofisticado jogo que se estabelece entre o pintor, o quadro e os seus espectadores, que passam a fazer parte da narração pictórica.”

Junto à obra da polémica, bem menor que a da Sala 12, está La familia del pintor, também do genro do mestre. Nesta pintura, Mazo faz uma desconstrução de As Meninas — quase todos os seus elementos estão lá, mas em lugares diferentes, como se tivessem sido baralhados, explica o comissário. Velázquez, que aparece de frente no retrato colectivo mais famoso da pintura espanhola, vira as costas ao espectador no quadro de Mazo e deixa-nos espreitar o que está a pintar, muito provavelmente a princesa Margarida.

É por causa desta obra e de outras - como o retrato de Carlos II, de Carreño de Miranda, ou Margarida da Áustria de luto pelo pai, de Mazo - que o norte-americano Jonathan Brown diz que esta é uma “exposição pioneira” porque permite avaliar o impacto do sevilhano nos seus discípulos, que souberam partir das suas raízes e inovar com grande qualidade, adaptando-se às novas realidades políticas e sem ter o reconhecimento que merecem.

O Prado está a contar com esta mostra para equilibrar o orçamento de 2013 e travar uma acentuada queda no número de visitantes (de 2,8 milhões em 2012 para uma estimativa de 2,3 até ao final de Dezembro). O museu, que é autofinanciado a 60%, teve este ano um corte de quase um terço na subvenção que recebe do Estado, de acordo com a imprensa espanhola. No total (Estado, receitas próprias e mecenato) tem para gerir 38,2 milhões de euros, menos 5,8 milhões do que em 2012, segundo dados oficiais.

A exposição que promete transformar por uns meses, como disse o director do Prado, Miguel Zugaza, “a casa de Velázquez no atelier de Velázquez”, já foi vista por 80 mil pessoas. Javier Portús acredita que muitos mais virão porque os retratos do mestre de Sevilha que chegou a vestir-se de mulher para representar para Filipe IV fazem parte da memória colectiva e continuam sedutores.



O Ípsilon viajou a convite do Turismo de Espanha