Nos 40 anos da Cornucópia
Foi a 13 de Outubro de 1973 que se deu a conhecer ao público, com O Misantropo, de Molière, encenação e protagonismo de Luís Miguel Cintra, uma nova companhia, o Teatro da Cornucópia. Há 40 anos pois; 40, já?!
Seguir ao longo destes anos o trabalho e a aventura da companhia tem sido um imenso privilégio, como poucos, muito poucos: não somos só espectadores, mais ou menos fiéis — os que tiveram a possibilidade de seguir a aventura desde o início, os que entretanto, ao longo dos anos, se foram também agregando —, mas por assim dizer cúmplices, compartilhando prazeres, reflexões e aproximações, lendo aqueles criteriosos programas — com o recorrente título Este Espectáculo — que eram uma das marcas distintivas da companhia, e se constituíram também num objecto ímpar da memória do teatro em Portugal, até recentemente terem sido “vítimas” dos omnipresentes “cortes orçamentais” do nosso descontentamento.
Também por isso aliás, este momento de aniversário, como a temporada que se seguirá, não constitui apenas uma celebração, mas a prossecução, em momento tão agudo, de um trabalho e de uma relação de reflexão connosco, espectadores.
Certamente que neste momento é impossível não termos tantas e tão exaltantes memórias de muitos grandes espectáculos (e também de outros menos felizes, num ou noutro caso mesmo de opções problemáticas, que também não são de esquecer), e com eles igualmente um rol imenso de grandes intérpretes, mas, ainda mais, de um trabalho que mudou a nossa percepção do teatro. São tantas memórias e questões que poderão vir a ser evocadas e debatidas ao longo desta temporada, esta sendo uma breve aproximação, no intuito de ao menos aflorar alguns aspectos matriciais.
Ao princípio havia Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo, que no grupo de teatro da Faculdade de Letras de Lisboa tinham feito Anfitrião, de António José da Silva, “O Judeu” (Cornucópia é o nome de uma personagem dessa peça). Dois pontos importantes ainda: tinham o tirocínio da crítica e, com Osório Mateus, dirigiam uma colecção de textos teatrais que era concomitante ao projecto da companhia. E com eles estava também nomeadamente, quase co-fundadora, Glícinia Quartin — “Eles falavam, falavam comigo da companhia até que eu um dia lhes disse: ‘mas afinal o que querem de mim?’” —, que, entre outras coisas, tinha conseguido montar em Cascais As Criadas, de Genet, na encenação de Victor Garcia.
Na convulsão teatral que então se vivia, com o surgimento de grupos de teatro independentes na busca de novos horizontes estéticos e culturais, o “classicismo” dos primeiros espectáculos — O Misantropo e depois A Ilha dos Escravos e A Herança, de Marivaux, em encenação de Silva Melo — foi quase desarmante, tanto mais face ao impacto, verdadeiramente de choque, por entre as malhas da censura e da repressão, de espectáculos como As Criadas, Para Onde Is? ou A Ceia, da Comuna, e A Comédia Moscheta ou A Grande Imprecação Diante das Muralhas da Cidade, pelos Bonecreiros.
Dir-me-ia muito mais tarde Silva Melo, evocando esses gestos fundadores: “Éramos muito althusserianos.” A expressão será hoje quase incompreensível, face ao apagamento desse então tão influente teórico do estruturalismo marxista, Louis Althusser, mas é de reter: ler, publicar, encenar os clássicos e tentar interpretá-los no quadro teórico do materialismo histórico era uma perspectiva que viria a ser parte fulcral do ADN da Cornucópia.
Veio enfim o 25 de Abril, e com ele o inevitável e apressado Brecht, com Terror e Miséria do III Reich, de um imediatismo político a que a companhia seria posteriormente quase sempre alérgica e digo “quase” porque em 80/81 houve ainda ressurgências, com um inexplicável Capitão Schelle, Capitão Eçço, de Rezvani, e Não Se Paga! Não Se Paga!, de Dario Fo.
Mas há um factor relevantíssimo que tem sido muitas vezes ofuscado: se o imediatismo foi contornado, a aproximação política manteve-se subjacente ao trabalho da Cornucópia — e isto desde, logo a seguir ao Brecht, Os Pequenos Burgueses, de Górki, primeiro espectáculo naquele que ficaria a ser o espaço da companhia, o Teatro do Bairro Alto, até ao recente Fingido e Verdadeiro, a partir de Lope de Vega, ou Ai Amor sem Pés nem Cabeça, com entremezes do teatro de cordel, propostas também políticas enquanto resposta à situação generalizada de penúria que também atinge a companhia de modo muito duro.
Voltando a Os Pequenos Burgueses, diria que o primeiro “grande espectáculo” da Cornucópia, encenação de Silva Melo, não apenas pelo espectáculo em si, e por ter sido o primeiro no espaço próprio da companhia, mas porque encetou um ciclo dedicado à pequena-burguesia e depois também ao quotidiano, ciclo distintivo de um trabalho e de uma aproximação.
Enquanto tantos outros proclamavam fazer “teatro para o povo”, a Cornucópia teve o entendimento de que ela própria e os seus espectadores eram parte da pequena-burguesia (conceito sociológico esquecido hoje, como outros, na ditadura semântica, política e mediatamente imposta, da “classe média”), sobretudo com trabalhadores do sector terciário, estudantes e intelectuais, e assim propôs um teatro reflexivo, na proximidade das inscrições sociais, de que foram extraordinários exemplos Casimiro e Carolina, de Odon von Horváth, ou Música para Si, de Franz-Xavier Kroetz, este último um incrível solo sem palavras de Isabel de Castro — que Solveig Nordlund captou num admirável filme, em exibição quarta-feira na Cinemateca.
“Novas perspectivas” — para retomar o título de outra peça — se tinham aberto. Eram os ventos dramatúrgicos que vinham da Schaubühne de Berlim, via Jean Jourdheuil em França, e o surgimento de Cristina Reis. que modificaria radicalmente o espaço cénico e a nossa percepção teatral, em Ah Q, de Jourdheuil e Bernard Chartreux (1976), espectáculo decisivo e extraordinário, encenação de Cintra e genial interpretação de Silva Melo — entretanto, em finais da década, o segundo viria a deixar a companhia, ficando Cintra e Cristina Reis como co-directores.
E Não Se Pode Exterminá-lo? (ao capitalismo), com textos de Karl Valentin, e ainda mais Não Se Paga! Não Se Paga! colocaram a Cornucópia face a um dado inesperado: o sucesso público, enorme mesmo no segundo caso. Num dos aspectos que mais importará discutir neste trajecto de 40 anos, Cintra reagiu como se de uma “cedência” ou mesmo de um “pecado” se tratasse. E a resposta foi hard, paradigmaticamente com uma colagem de textos, Oratória (1983), que o era mesmo.
Até à caricatura, se criaria a partir de então a ideia de “espectáculos difíceis”, chegando às quatro horas de duração, a que se assiste em bancadas pouco confortáveis. É um estereótipo, com as marcas dessa puritana concepção de voltar as costas ao “êxito”, numa prática por vezes mesmo difícil, mas que, note-se, supõe também o desafio a um espectador inteligente e a absoluta recusa ética de “cortar” na duração dos espectáculos para os “facilitar”.
E muito mais haverá a dizer, de tantos espectáculos e actores a recordar, do rejuvenescimento da companhia a partir dos anos 90, do difícil equilíbrio entre o estatuto sempre reafirmado de “grupo independente” e o facto de a Cornucópia ter sido também na prática o “teatro nacional” que não havia. São tópicos de reflexão; entretanto, que haja a celebração desta imensa aventura.
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Foi a 13 de Outubro de 1973 que se deu a conhecer ao público, com O Misantropo, de Molière, encenação e protagonismo de Luís Miguel Cintra, uma nova companhia, o Teatro da Cornucópia. Há 40 anos pois; 40, já?!
Seguir ao longo destes anos o trabalho e a aventura da companhia tem sido um imenso privilégio, como poucos, muito poucos: não somos só espectadores, mais ou menos fiéis — os que tiveram a possibilidade de seguir a aventura desde o início, os que entretanto, ao longo dos anos, se foram também agregando —, mas por assim dizer cúmplices, compartilhando prazeres, reflexões e aproximações, lendo aqueles criteriosos programas — com o recorrente título Este Espectáculo — que eram uma das marcas distintivas da companhia, e se constituíram também num objecto ímpar da memória do teatro em Portugal, até recentemente terem sido “vítimas” dos omnipresentes “cortes orçamentais” do nosso descontentamento.
Também por isso aliás, este momento de aniversário, como a temporada que se seguirá, não constitui apenas uma celebração, mas a prossecução, em momento tão agudo, de um trabalho e de uma relação de reflexão connosco, espectadores.
Certamente que neste momento é impossível não termos tantas e tão exaltantes memórias de muitos grandes espectáculos (e também de outros menos felizes, num ou noutro caso mesmo de opções problemáticas, que também não são de esquecer), e com eles igualmente um rol imenso de grandes intérpretes, mas, ainda mais, de um trabalho que mudou a nossa percepção do teatro. São tantas memórias e questões que poderão vir a ser evocadas e debatidas ao longo desta temporada, esta sendo uma breve aproximação, no intuito de ao menos aflorar alguns aspectos matriciais.
Ao princípio havia Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo, que no grupo de teatro da Faculdade de Letras de Lisboa tinham feito Anfitrião, de António José da Silva, “O Judeu” (Cornucópia é o nome de uma personagem dessa peça). Dois pontos importantes ainda: tinham o tirocínio da crítica e, com Osório Mateus, dirigiam uma colecção de textos teatrais que era concomitante ao projecto da companhia. E com eles estava também nomeadamente, quase co-fundadora, Glícinia Quartin — “Eles falavam, falavam comigo da companhia até que eu um dia lhes disse: ‘mas afinal o que querem de mim?’” —, que, entre outras coisas, tinha conseguido montar em Cascais As Criadas, de Genet, na encenação de Victor Garcia.
Na convulsão teatral que então se vivia, com o surgimento de grupos de teatro independentes na busca de novos horizontes estéticos e culturais, o “classicismo” dos primeiros espectáculos — O Misantropo e depois A Ilha dos Escravos e A Herança, de Marivaux, em encenação de Silva Melo — foi quase desarmante, tanto mais face ao impacto, verdadeiramente de choque, por entre as malhas da censura e da repressão, de espectáculos como As Criadas, Para Onde Is? ou A Ceia, da Comuna, e A Comédia Moscheta ou A Grande Imprecação Diante das Muralhas da Cidade, pelos Bonecreiros.
Dir-me-ia muito mais tarde Silva Melo, evocando esses gestos fundadores: “Éramos muito althusserianos.” A expressão será hoje quase incompreensível, face ao apagamento desse então tão influente teórico do estruturalismo marxista, Louis Althusser, mas é de reter: ler, publicar, encenar os clássicos e tentar interpretá-los no quadro teórico do materialismo histórico era uma perspectiva que viria a ser parte fulcral do ADN da Cornucópia.
Veio enfim o 25 de Abril, e com ele o inevitável e apressado Brecht, com Terror e Miséria do III Reich, de um imediatismo político a que a companhia seria posteriormente quase sempre alérgica e digo “quase” porque em 80/81 houve ainda ressurgências, com um inexplicável Capitão Schelle, Capitão Eçço, de Rezvani, e Não Se Paga! Não Se Paga!, de Dario Fo.
Mas há um factor relevantíssimo que tem sido muitas vezes ofuscado: se o imediatismo foi contornado, a aproximação política manteve-se subjacente ao trabalho da Cornucópia — e isto desde, logo a seguir ao Brecht, Os Pequenos Burgueses, de Górki, primeiro espectáculo naquele que ficaria a ser o espaço da companhia, o Teatro do Bairro Alto, até ao recente Fingido e Verdadeiro, a partir de Lope de Vega, ou Ai Amor sem Pés nem Cabeça, com entremezes do teatro de cordel, propostas também políticas enquanto resposta à situação generalizada de penúria que também atinge a companhia de modo muito duro.
Voltando a Os Pequenos Burgueses, diria que o primeiro “grande espectáculo” da Cornucópia, encenação de Silva Melo, não apenas pelo espectáculo em si, e por ter sido o primeiro no espaço próprio da companhia, mas porque encetou um ciclo dedicado à pequena-burguesia e depois também ao quotidiano, ciclo distintivo de um trabalho e de uma aproximação.
Enquanto tantos outros proclamavam fazer “teatro para o povo”, a Cornucópia teve o entendimento de que ela própria e os seus espectadores eram parte da pequena-burguesia (conceito sociológico esquecido hoje, como outros, na ditadura semântica, política e mediatamente imposta, da “classe média”), sobretudo com trabalhadores do sector terciário, estudantes e intelectuais, e assim propôs um teatro reflexivo, na proximidade das inscrições sociais, de que foram extraordinários exemplos Casimiro e Carolina, de Odon von Horváth, ou Música para Si, de Franz-Xavier Kroetz, este último um incrível solo sem palavras de Isabel de Castro — que Solveig Nordlund captou num admirável filme, em exibição quarta-feira na Cinemateca.
“Novas perspectivas” — para retomar o título de outra peça — se tinham aberto. Eram os ventos dramatúrgicos que vinham da Schaubühne de Berlim, via Jean Jourdheuil em França, e o surgimento de Cristina Reis. que modificaria radicalmente o espaço cénico e a nossa percepção teatral, em Ah Q, de Jourdheuil e Bernard Chartreux (1976), espectáculo decisivo e extraordinário, encenação de Cintra e genial interpretação de Silva Melo — entretanto, em finais da década, o segundo viria a deixar a companhia, ficando Cintra e Cristina Reis como co-directores.
E Não Se Pode Exterminá-lo? (ao capitalismo), com textos de Karl Valentin, e ainda mais Não Se Paga! Não Se Paga! colocaram a Cornucópia face a um dado inesperado: o sucesso público, enorme mesmo no segundo caso. Num dos aspectos que mais importará discutir neste trajecto de 40 anos, Cintra reagiu como se de uma “cedência” ou mesmo de um “pecado” se tratasse. E a resposta foi hard, paradigmaticamente com uma colagem de textos, Oratória (1983), que o era mesmo.
Até à caricatura, se criaria a partir de então a ideia de “espectáculos difíceis”, chegando às quatro horas de duração, a que se assiste em bancadas pouco confortáveis. É um estereótipo, com as marcas dessa puritana concepção de voltar as costas ao “êxito”, numa prática por vezes mesmo difícil, mas que, note-se, supõe também o desafio a um espectador inteligente e a absoluta recusa ética de “cortar” na duração dos espectáculos para os “facilitar”.
E muito mais haverá a dizer, de tantos espectáculos e actores a recordar, do rejuvenescimento da companhia a partir dos anos 90, do difícil equilíbrio entre o estatuto sempre reafirmado de “grupo independente” e o facto de a Cornucópia ter sido também na prática o “teatro nacional” que não havia. São tópicos de reflexão; entretanto, que haja a celebração desta imensa aventura.